A
Retórica nada tem que ver com a atividade das mãos, e todos
os seus atos e realizações são alcançados
por meio de discursos.
Por isto, eu considero a Retórica a arte do discurso.
A
Retórica não recorre, por assim dizer, à ação,
e se o faz é muito pouco, como a Aritmética, o Cálculo,
a Geometria, o gamão e muitas mais, em que os discursos se equilibram
com as ações; mas, na maioria, os
discursos
predominam, de forma que toda a eficiência de suas realizações
depende essencialmente da palavra.
A
Retórica
é
a arte cuja força consiste no discurso.
A
Retórica
é a mestra da persuasão, mas não é a única
mestra da persuasão, pois, por exemplo, a Aritmética também
é mestra da persuasão, já que ensina a conhecer a grandeza
do par e do ímpar, da mesma forma que as artes são mestras
da persuasão nas modalidades a que se aplicam. Particularmente, então,
a persuasão da Retórica
se relaciona com o justo e o injusto.
Quem
ensina, seja lá o que for, deve persuadir os outros a respeito do
que ensina.
O
Cálculo é como a Aritmética, pois também diz
respeito
ao par e ao ímpar, diferençando-se o Cálculo em não
considerar apenas em si mesmo o valor numérico do par e do ímpar,
mas também em suas relações recíprocas.
Haverá
maior bem para os homens do que a saúde?
Há
crença falsa e crença verdadeira; mas não há
Sabedoria [ShOPhIa]
falsa
e Sabedoria
verdadeira.
Logo, crer e saber são coisas diferentes. Então, podemos admitir
duas espécies de persuasão: uma, que é a fonte da crença,
sem Sabedoria;
a outra, que
é a fonte só
da Sabedoria.
A
Sabedoria
deverá sempre ser usada com justiça.
É
fora de dúvida que o orador é capaz de falar contra todos
a respeito de qualquer assunto, conseguindo, por isto mesmo, convencer as
multidões melhor do que qualquer pessoa, e, para dizer tudo, no assunto
que bem lhe parecer. Porém, não será por isto que ele,
por exemplo, irá privar o médico de sua fama — o que
lhe seria possível — nem qualquer outro profissional. Pelo
contrário, deverá usar sempre a Retórica com justiça.
Infelizmente, é comum o antagonista
se deixar arrastar pelo amor à discussão, sem procurar elucidar
o problema em debate.
No
meu modo de pensar, não há nada de tão nocivas conseqüências
para o homem como admitir opinião errônea sobre um determinado
assunto.
Diante
das multidões quer dizer: diante de ignorantes.
O
ignorante, se for convincente, tem maior poder de persuasão junto
de ignorantes do que o sábio.
Se
o homem justo pratica ações justas, e se o justo nunca
há
de querer cometer alguma injustiça, será, portanto, forçoso
que o orador, se for justo, pratique ações justas. E assim,
o
retórico jamais
haverá de querer cometer uma injustiça.
A
Retórica
não
é arte de espécie alguma; é uma espécie de rotina
para produzir prazer e satisfação. O que denomino Retórica
é apenas uma parte de certa coisa que está longe de ser bela.
É uma prática que nada tem de arte, e que só exige
um espírito sagaz e corajoso e com a disposição natural
de saber lidar com os homens. Em conjunto, dou-lhe o nome de adulação.
A
Retórica
é
o simulacro de uma parte da política.
Há
muita gente que aparenta saúde, mas não é fácil
a um ser humano perceber que se encontra em condições precárias.
Na alma digo que a mesma coisa se passa, o que faz que a alma pareça
estar em boas condições, embora na realidade não esteja.
A
bajulação só visa o prazer, sem se preocupar com o
bem.
Não dou o nome de arte ao
que carece de razão.
Na
Medicina, insinuou-se a bajulação culinária; na ginástica,
seguindo o mesmo processo, as capelistas, falsas, nocivas, ignóbeis
e indecorosas formas das cores, dos esmaltes e das indumentárias,
de tal modo seduzindo os homens, que, andando estes sempre
no
encalço da beleza estranha, descuidam da que lhes é própria,
e que só se obtém por meio da ginástica. Para não
ser prolixo, vou usar a linguagem dos geômetras para
dizer que o gosto da indumentária está para a ginástica
como a culinária está para a Medicina, ou melhor, a indumentária
está para a ginástica assim como a Retórica está
para a legislação. E também: a culinária está
para a Medicina como a Retórica está para a Justiça.
Esta, como disse, é a diferença natural de todas elas. Mas,
em conseqüência da vizinhança, sofistas e oradores se
misturam e passam a se ocupar com as mesmas coisas, sem que eles próprios
saibam qual seja, ao certo, seu fim, e muito menos os homens. De fato, se
a alma não estivesse sobreposta ao corpo e se este se governasse
a si mesmo, e se aquela não tivesse discernimento e não separasse
da Medicina a culinária, e apenas o corpo tivesse de julgar de acordo
com os prazeres que pudesse auferir de cada uma delas, predominaria aquilo
de Anaxágoras, a saber: todas as coisas se confundiriam sem que fosse
possível distinguir a Medicina, a saúde e a culinária.
Em resumo, eis o que penso a respeito da Retórica: ela é a
antítese para a alma do que a cozinha é para o corpo.
Na
verdade, de todos os cidadãos, são os oradores os que têm
menor poder.
Os
oradores e os tiranos são os que menos podem nas cidades, pois não
fazem o que querem, por assim dizer, mas apenas o que se lhes afigura melhor.
Achas
que seja um bem para qualquer pessoa fazer o que lhe parece ser o melhor,
quando está privado da razão? Julgas que isto é poder
muito?
Quem
faz alguma coisa visando a determinado fim, não quer aquilo que faz,
mas o fim que tinha em vista, quando fez o que fez.
As
coisas que não são nem boas nem más ora participam
do bem, ora do mal, ora de nenhum deles.
O
que não é nem bom nem mau não queremos, como também
não queremos o que é mau.
Não
devemos invejar nem os que não são para invejar nem os infelizes,
porém, devemos nos compadecer deles.
O
maior dos males não é sofrer alguma injustiça; antes,
é cometer uma injustiça. Assim, se me visse obrigado a optar
entre praticar alguma injustiça ou sofrê-la, preferiria sofrê-la,
não praticá-la. Enfim, é pior cometer alguma injustiça
do que ser vítima de injustiça.1
Considero feliz quem é honesto
e bom, quer seja homem, quer seja mulher. O desonesto, injusto e mau é
sempre infeliz.
Eu,
porém, embora sozinho, não me rendo. Não me deixarei
embalar com a ilusão.
O homem injusto ou que comete injustiça,
de qualquer forma é infeliz. E mais infeliz será, ainda, se
não for punido, porém algum tanto menos se for castigado e
punido pelos deuses e pelos homens.
A Verdade nunca poderá
ser contestada. (Verdade
com letra V maiúscula e grifo meu).
É
por causa do prazer ou da utilidade ou por ambas que as coisas são
chamadas de belas.
No
que respeita às leis e às ocupações, nenhuma
é bela por outro motivo, mas, apenas, por ser útil ou agradável
ou por ambas as coisas.
Sempre
que, entre duas coisas belas, uma é superior à outra, a que
ultrapassa a outra por uma específica qualidade virá a ser
a mais bela, ou pelo prazer ou pela utilidade ou por estes dois fatores
ao mesmo tempo. E, do mesmo modo, entre duas coisas feias, quando uma é
mais feia do que a outra, é porque a ultrapassa em sofrimento ou
em maldade para ser mais feia.
Na
[personalidade-]alma
pode haver maldade, como, por exemplo, a injustiça, a ignorância,
a intemperança, a covardia, os vícios e seus semelhantes.
Vale
a pena suportar dor para recuperar a saúde.
A
felicidade não consiste em alguém
se
livrar dos males, mas em se conservar de todo livre deles.
A
justiça é a medicina da maldade.
É
muito mais de lastimar a convivência com uma alma doente – corrompida,
injusta e ímpia – do
que com um corpo nas mesmas condições.
O
que há de mais feio é a injustiça e os vícios
da alma em geral.
Cometer
injustiça é o segundo mal em importância; o maior de
todos é cometer alguma injustiça e não ser punido.2
O
injusto deveria se esforçar para que a doença da injustiça
não se torne crônica e venha a se transformar em uma úlcera
incurável da alma.
Se
não houvesse entre os homens identidade de sentimentos, comuns a
todos, embora com diferenças individuais, não seria fácil
a ninguém explicar aos outros o que se passa consigo mesmo.
A
Filosofia3
diz sempre a mesma coisa.
Quem
comete alguma injustiça e fica impune fica em desarmonia consigo
para o resto da vida. Eu sou de parecer que me fora preferível ter
a lira desafinada e desarmônica ou até mesmo não concordar
com minhas opiniões a maioria dos homens, a ficar em desarmonia comigo
mesmo e vir a me contradizer.
Para tirar a prova completa que permita
saber se uma alma vive bem ou mal, são necessários três
requisitos: conhecimento, boa vontade e franqueza.
No que me diz respeito, se eu cometo
na vida alguma falta, podes estar certo de que não o faço
de caso pensado, porém por ignorância.
As
leis estabelecidas pela maioria são as leis dos mais fortes.4
Cada
um deve se comandar a si mesmo, isto é, ser temperante e dono de
si mesmo, e dominar em si próprio os prazeres e os apetites.
'Quem
nos dirá que não é morte a vida, e estar morto, viver?'
(Eurípides, apud
Platão). Eu próprio já ouvi certo sábio
declarar que estamos realmente mortos e temos por sepultura o corpo, e que
a porção da alma em que residem os desejos é facilmente
sugestionável e conduzida de um lado para o outro.
Daí,
alguém ter tido a idéia de dar o nome de pipa à alma,
por se deixar facilmente encher de sugestões. Aos infensos ao estudo
chamou de não-iniciados, e a porção da alma dos não-iniciados
em que se localizam as paixões, justamente por ser incontentável
e nada reter, comparou a um tonel furado, porque nunca revela saciedade.
E assim, no mundo das sombras – o mundo invisível, conforme
ele se exprime – os mais infelizes são os não-iniciados,
pois carregam água para o tonel furado em um crivo também
cheio de furos. Por este crivo ele entendia a alma. Comparou a alma dos
insensatos a um crivo que é cheio de furos, pois nada consegue reter,
visto carecer de fé e memória.
Os
indivíduos comedidos são mais felizes do que os intemperantes.
Se
pudéssemos encontrar alguma coisa que o homem, ao mesmo tempo, pudesse
ter e não ter, é mais do que claro que não seria nem
o bem nem o mal.
O bem não é a mesma
coisa que o agradável, nem o mal o mesmo que o desagradável,
porque uns cessam ao mesmo tempo, e outros não, por serem diferentes.
Pois, como poderia o agradável ser idêntico ao bem, e o desagradável
ao mal?
Todos
os nossos atos devem ser pautados só em vista do bem. O bem deve
ser a meta exclusiva de nossos atos, e tudo deve ser feito por amor ao bem,
não o bem por amor de tudo o mais. Tudo, portanto, até mesmo
o agradável, deve ser feito em vista do bem, não o bem em
vista do agradável.
É
preciso satisfazer apenas os desejos cuja realização deixa
melhores os homens, não os que os deixam piores.
O
homem correto só tem em mira o bem quando discursa, sem nunca falar
ao acaso, mas com determinado fim. Comporta-se como os artesãos,
que, sem perderem de vista o próprio trabalho, nunca reúnem
por acaso o material de que se servem, mas sempre com a intenção
de imprimir uma forma particular em tudo o que manipulam. A mesma coisa
poderá ser observada nos pintores, nos arquitetos, nos construtores
de navios e em qualquer outro trabalhador, pois colocam no lugar preciso
a peça de que lançam mão, e a obrigam a se ajustar
e a ficar em harmonia com as mais próximas, até compor um
todo bem feito e equilibrado.
Harmonia
e ordem na alma —› legalidade e lei —› benignidade
e disciplina —› justiça e temperança.
O
orador honesto e competente deverá dirigir seus discursos à
alma dos homens quando lhes falar. E quer lhes dê ou tire alguma coisa,
deverá sempre fazer nascer a justiça na alma de seus concidadãos
e banir a injustiça, implantando a temperança e afastando
a intemperança.
A
virtude de qualquer coisa, seja instrumento, seja corpo, seja alma, seja
criatura viva, não lhes vem por acaso e já completa; é
o resultado de uma certa ordem, de retidão e da arte adaptada à
natureza de cada um.
É
por meio da ordem que se promove devidamente a virtude de cada coisa. Uma
espécie de ordem inerente a cada coisa é que a deixa boa com
a sua presença. Assim, a alma que tem a sua ordem peculiar é
melhor do que a que for desordenada. A alma em que há ordem é
bem regulada. E a alma bem regulada é temperante. E a alma temperante
é boa.
O
indivíduo temperante só faz o que é direito, tanto
em relação aos Deuses como em relação aos homens,
pois deixaria de ser temperante se procedesse de outro modo.
Quem
procede com justiça e piedade forçosamente será justo
e pio.
O
homem bom fará bem e com perfeição tudo o que faz,
e quem vive bem e feliz é bem-aventurado, ao passo que o indivíduo
ruim, que vive mal, é miserável. Quem quiser ser feliz terá
de fugir da intemperança, procurar a temperança e viver de
acordo com ela.
Se
quisermos ser felizes, tanto nos negócios particulares como nos públicos,
deveremos envidar esforços para que imperem a justiça e a
temperança, não permitindo que os apetites fiquem desenfreados
nem devemos procurar satisfazê-los, o que seria um mal imenso –
verdadeira vida de bandoleiro.
Afirmam
os sábios que o céu, a Terra, os deuses e os homens são
mantidos em harmonia pela amizade, pelo decoro, pela temperança e
pela justiça. Por este motivo, o Universo é denominado 'kosmos'
(ou ordem), não desordem nem intemperança.
A
igualdade geométrica tem muita força, tanto entre os Deuses
como entre os homens.
De
acordo com a grandeza do mal, é belo poder combatê-lo nas mesmas
proporções, e vergonhoso não estar em condições
de fazê-lo.
Qualquer
indivíduo será tanto mais amigo de outro quanto mais se lhe
assemelhar.
Para
um homem flagicioso não é vantagem viver, pois só terá
de viver mal.
De
maneira geral, todos gostam dos discursos acomodados a seus hábitos
e se aborrecem dos que lhes são contrários.
Há duas maneiras de cultivar
o corpo e a alma: uma só tem em vista o prazer; a outra, o bem, sem
procurar agradar, mas lutando para alcançar o seu objetivo. A que
só visa ao prazer é vil e baixa, não passando de simples
adulação. A outra, porém, só se esforça
para deixar o melhor possível o objeto de seus cuidados, seja o corpo,
seja a alma.
Se
os cidadãos de um país não se tornarem tão perfeitos
quanto possível, se os seus sentimentos não forem belos e
nobres, é absolutamente inútil qualquer benefício que
lhes prestemos.5
É dever
do homem político tornar os cidadãos melhores.
Os justos, como diz Homero, são
mansos.
Não é pela lentidão,
quero crer, que os homens procedem injustamente, mas pela injustiça.
Quem
adquire algo de maneira injusta só poderá usá-lo injustamente.
Jamais um homem bom acusará
um inocente.
A melhor
defesa que alguém pode apresentar para si mesmo é nunca ter
dito ou feito nada injusto nem contra os homens nem contra os Deuses.
Em si mesma, a morte não
é de temer, salvo por quem for insensato e pusilânime. O que
é de temer é cometer injustiça. A maior infelicidade
é chegar ao Hades com a alma pejada de malfeitorias.
Conforme
Homero nos relata, Zeus, Posido e Plutão dividiram entre si o poder
que tinham recebido do pai. Ora, no tempo de Crono havia uma lei relativa
aos homens, que sempre vigorou e que ainda se conserva entre os deuses,
a saber: que o homem que houvesse passado a vida com justiça e santidade,
depois de morto iria para a Ilha dos Bem-aventurados, onde permaneceria
livre do mal, em completa felicidade, e que, pelo contrário, quem
tivesse vivido impiamente e sem justiça, iria para o cárcere
da punição e da pena, a que dão o nome de Tártaro.
No tempo de Crono, e mesmo depois, no começo do reinado de Zeus,
os juizes eram vivos e julgavam os vivos no próprio dia em que deveriam
morrer. Este o motivo de ser o julgamento cheio de falhas; por isto, Plutão
e os zeladores da Ilha dos Bem-aventurados foram a Zeus e lhe comunicaram
que para ambos os lugares chegavam homens de todo em todo indignos. Então,
Zeus lhes falou: Vou remediar tal inconveniente. As sentenças, realmente,
têm sido mal dadas, porque as pessoas são julgadas com vestes,
uma vez que ainda estão vivas. Deste modo, continuou, muitos homens
de alma ruim são adornados de belos corpos, posição
e riqueza, aparecendo por ocasião do julgamento infinitas testemunhas
que afirmam terem eles vivido com justiça. Nestas circunstâncias
os juízes ficam perturbados, tanto mais que eles também julgam
vestidos, servindo-lhes de véu para a alma os olhos, os ouvidos e
todo o corpo. Tudo isto atua como empecilho, tanto as suas próprias
vestimentas como as dos que vão ser julgados. Em primeiro lugar,
disse ele, será preciso tirar dos homens o conhecimento da morte,
pois presentemente eles têm notícia dela com antecedência;
nesse sentido, já foram dadas instruções a Prometeu.
Em segundo lugar, passarão a ser julgados desprovidos de tudo, a
saber, só depois de mortos. O juiz, também terá de
estar morto e nu, para examinar apenas com sua alma as demais almas, logo
após a morte de cada um, que estará desassistido de toda a
parentela e depois de haver deixado na Terra todos aqueles adornos, para
que o julgamento possa ser justo. Percebi estes inconvenientes antes de
vós, e como juízes nomeei três de meus filhos, sendo
dois da Ásia: Minos e Radamanto, e um da Europa: Éaco. Depois
de morrerem, julgarão no prado que se acha na altura da encruzilhada
dos dois caminhos: o que vai dar na Ilha dos Bem-aventurados e o que vai
para o Tártaro. Radamanto julgará os que vierem da Ásia;
Éaco, os da Europa. A Minos darei o privilégio de se pronunciar
por último, nos casos de indecisão dos outros dois, para que
seja o mais justo possível o julgamento que decide a viagem dos homens.
Desta história eu tiro a seguinte conclusão: a morte, conforme
penso, nada mais é do que a separação de duas coisas:
a alma do corpo. Uma vez separados um do outro, nem por isto deixa nenhum
deles de apresentar a mesma constituição do tempo em que ainda
vivia o homem. O corpo conserva sua natureza e os sinais de quanto pudesse
ter feito, bem como os tratamentos a que foi submetido, tudo facilmente
reconhecível. Se um indivíduo foi em vida corpulento, ou por
natureza ou por sua maneira de viver, ou por ambas as causas, depois de
morto será também grande o seu cadáver. Se era gordo,
o cadáver será gordo, e assim com tudo o mais. Se gostava
de deixar crescer os cabelos, o cadáver também apresentará
cabelos soltos. Por outro lado, se apresentava no corpo cicatrizes de azorrague
ou marcas de sevícias, ou de ferimentos outros, recebidos em vida,
será possível perceber tudo isto no cadáver. E se,
porventura, tivesse em vida algum membro fraturado ou defeituoso, isto também
se poderá reconhecer depois de morto. Em uma palavra: tudo pelo que
em vida o corpo passou continua por algum tempo visível, em sua quase
totalidade, depois da morte. A mesma coisa penso que se passe com relação
à alma; tudo nela se torna visível, depois de despida do corpo,
tanto suas características naturais como as modificações
supervenientes no empenho de o homem alcançar isto ou aquilo. Ao
se apresentarem diante do juiz – os da Ásia vão para
Radamanto que os coloca em sua frente e examina alma por alma, sem saber
a quem pertenceram, a não ser, por vezes, quando acontece tomar a
do Grande Rei ou a de qualquer outro soberano ou potentado, e verificar
não haver nela nada são, por estar cheia de lanhos e de marcas
de perjuros e de injustiças, que as diferentes ações
foram deixando na alma, e de encontrar tudo retorcido pela mentira e pela
vaidade, sem estar nada direito, visto ter sido criada sem a verdade; e
como conseqüência da licença, da luxúria, da insolência
e da incontinência de conduta, mostra-se a alma cheia de deformidades
e de feiúra. Contemplando-a deste jeito, envia-a Radamanto ignominiosamente
para a prisão, onde terá de sofrer o castigo merecido. A pena
merecida para quem recebe castigo, quando é punido com justiça,
é se tornar melhor e tirar algum proveito com o castigo ou servir
de exemplo para outros, a fim de que estes, vendo-os sofrer o que sofrem,
se atemorizem e se tornem melhores. Os que aproveitam com o seu próprio
castigo, seja ele imposto pelos deuses, seja pelos homens, são os
que cometem faltas remediáveis. Todavia, este proveito só
é alcançado por meio de dores e sofrimento, tanto aqui na
Terra como no Hades; não há outro modo de se limparem da injustiça.
Os culpados dos piores crimes, que, por isto mesmo, são incuráveis,
são os que ficam para exemplo, sem que eles próprios tirem
a menor vantagem disto, visto não serem passíveis de cura.
Para os outros, porém, é proveitoso vê-los expiar eternamente
os próprios erros por meio dos maiores, mais dolorosos e mais terríveis
suplícios, expostos para exemplo na prisão do Hades, espetáculo
e advertência, a um tempo, para quantos criminosos ali chegarem. Arquelau
será um destes, é o que eu digo, e bem assim todos os tiranos
iguais a ele. Estou convencido de que a maioria de tais exemplos é
tirada da classe dos tiranos, dos reis, dos potentados e dos demais administradores
dos bens públicos, por serem, justamente, os que têm a possibilidade
de cometer os maiores e mais ímpios crimes. Homero é testemunha
disto, pois nos mostra reis e potentados a sofrer castigos eternamente no
Hades, como Tântalo, Sísifo e Tício. Tersites ou qualquer
outro vilão de maus costumes, ninguém nos apresenta como sujeito
a penas eternas, por incurável. É que, no meu modo de pensar,
carecia de poder para isto, motivo por que era mais feliz do que os que
dispuseram deste poder. De fato, é entre os tiranos que se encontram
os tipos mais perversos; porém, nada impede que entre eles também
se nos deparem homens virtuosos, dignos em todo o ponto de nossa admiração.
Pois é sumamente difícil e grandemente merecedor de elogios,
levar vida de justo quem tem o poder de fazer o mal. Contudo, são
poucos os homens nestas condições. Todavia, tanto aqui como
alhures, tem havido, e no futuro, quero crer, não faltarão
homens excelentes na virtude de administrar honestamente o que lhes confiarem.
Um, até, já se tornou famoso em toda a Hélade –
Aristides, filho de Lisímaco. Entretanto, a maioria dos potentados
é gente criminosa. Como disse, quando aquele Radamanto recebe um
tipo desses, ignora tudo a seu respeito, quem seja ou de que família
provém; sabe apenas que é um celerado. Vendo isto, envia-o
para o Tártaro, não sem o ter previamente assinalado, para
indicar se é ou não passível de cura. Uma vez lá
chegado, o criminoso recebe o castigo merecido. Mas, quando acontece perceber
uma alma que viveu santamente e na verdade, de um simples particular ou
de quem quer que seja, mas principalmente, segundo penso, de algum filósofo
que durante a vida só se ocupou com seus interesses, sem se ingerir
nos negócios dos outros, mostra-se satisfeito e o encaminha para
a Ilha dos Bem-aventurados. O mesmo faz Éaco. Ambos julgam com um
bastão na mão. Minos se conserva à parte, sentado,
e é o único que empunha um cetro de ouro, como em Homero nos
declara Odisseu, que o viu com cetro de ouro na mão, assentado, e
entre os mortos a distribuir justiça. Eu, de minha parte, dou crédito
a esta narrativa e me esforço para me apresentar diante do juiz com
a alma tão limpa quanto possível. Não dou nenhuma importância
às honrarias que a maioria dos homens tanto preza. Empenhando-me
na busca da verdade, tenho procurado me tornar o melhor possível
enquanto viver, e assim também morrer, quando chegar a minha hora.
Exorto também os demais homens, na medida das minhas forças,
a fazer o mesmo e a adotar este modo de vida, tomando parte nesta luta –
a mais importante, sem nenhuma dúvida, que se trava aqui na Terra.
Devemos, com todo empenho, nos precaver
mais de cometer injustiça do que de ser vítima de injustiça.
Cada um de nós deve se esforçar, acima de tudo, não
para parecer que é bom, mas para sê-lo realmente, tanto na
vida particular como na pública. Se alguém se tornar mau sob
qualquer aspecto, deverá ser castigado, sendo este o segundo bem
depois do de ser justo, que é se tornar justo por meio do castigo
e da expiação da culpa. Toda adulação deve ser
evitada, tanto em relação a si próprio como a estranhos,
quer sejam poucos, quer sejam muitos, e que tanto a faculdade de bem falar
como os demais recursos deste gênero só devem ser empregados
a serviço do bem e da justiça.
Aceita, portanto, meu conselho, e
acompanha-me para onde, uma vez chegado, serás feliz, assim na vida
como na morte, conforme nosso argumento o certifica. Deixa que te desprezem
como insensato, que te insulte quem quiser insultar, sim, por Zeus, recebe
sem te perturbar até mesmo aquele tapa ignominioso; não virás
a sofrer mal nenhum, se fores um homem verdadeiramente bom e se praticares
a virtude. E depois de a termos praticado em comum, se julgarmos conveniente,
dedicar-nos-emos à política ou ao que melhor nos parecer,
o que decidiremos oportunamente, quando, para isto, ficarmos mais aptos
do que estamos agora. Pois é vergonhoso, sendo nós o que mostramos
ser neste momento, blasonar como se valêssemos alguma coisa, quando
nem sequer pensamos do mesmo modo sobre qualquer assunto, principalmente
os de mais importância, tão grande é nossa ignorância!
Tomemos como guia a verdade que acaba
de nos ser revelada e que nos indica ser a melhor maneira de viver: a que
consiste na prática da justiça e das demais virtudes, na vida
como na morte. Aceitemos esta norma de vida e exortemos os outros a fazer
o mesmo.
Em
virtude de tudo isto...
Com
nobreza, seja justo,
seja
lá qual for o custo.
Com
gentileza, seja bom,
não
espere o ano-bom.
Com
benquerença, seja amigo,
não
se importe com o umbigo.
Com
leveza, seja comedido,
não
dê bola para o alarido.
Com
humildade, seja magnânimo,
nunca
deixe de inspirar ânimo.
Com
siso, não seja indecoroso,
não
adule um ignominioso.
Com
nobreza, não seja improbo,
e
daí se o chamarem de bobo?
Estas
coisas causam mal-estares?
Sim;
mas só nos papa-jantares.
Todavia, só vingam altercações
quando
prevaricam os Corações.