GÓRGIAS

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Introdução e Objetivo do Estudo

 

 

 

Este estudo é uma coletânea de fragmentos editados sobre o Górgias, obra platônica que tem como temas centrais a Retórica como arte e instrumento político, a avaliação dos que exercem esta atividade e a Ética na atividade política. A disputa de Sócrates acerca da Retórica e o seu valor vai permitir a Platão estabelecer o confronto entre dois usos opostos da linguagem, ou seja, a linguagem como instrumento de poder e a linguagem como instrumento de verdade. No final da obra, é narrado um mito sobre a alma e o seu julgamento. No entanto, advirto mais uma vez que alguns fragmentos são contraditórios, isto porque a Maiêutica Socrática (parto intelectual ou instrumentação argumentativa que conduz à verdade no interior do homem) provoca, primeiro, dúvida, para, depois, permitir a concepção de uma nova idéia sobre o assunto em questão. Bem, mas se o indivíduo não souber somar nem subtrair não chegará a conclusão alguma de quanto seja uma dúzia e meia de bananas menos meia dúzia de bananas. A Maiêutica, neste caso, é inútil.

 

O Górgias, de certa forma, dá início a um processo de afastamento de Platão dos ensinamentos de Sócrates, o que o levou à elaboração de uma filosofia pessoal, expressa particularmente em obras como a República.

 

Quando o Górgias foi escrito por Platão (depois da primeira viagem de Platão à Sicília, em 387 a.C.), Atenas vivia uma profunda crise econômica e política. Após uma longa guerra contra Esparta (431 – 404 a.C), Atenas perde a guerra e o poder que tinha entre os gregos. Por imposição de Esparta, o regime democrático é substituído por uma tirania. A Democracia, que é restaurada em 403 a.C, está mais frágil do que nunca. Os recursos econômicos dos atenienses estão bastante mais escassos, e, a custo, a Cidade procura recuperar a sua prosperidade. A antiga aristocracia culpa os oradores e os democratas por esta perda de poder, e exige um Governo forte. No início do século IV a.C., devido ao elevado absentismo dos cidadãos nas sessões da Assembléia, foi decidido remunerá-los sempre que o fizessem. A Assembléia, dirá Aristóteles, torna-se rapidamente um local de ociosos e de cidadãos empobrecidos, que, desta forma, procuram adquirir algum sustento. O exército passa a ser constituído por mercenários, afastando-se dos cidadãos. As sucessivas guerras empobrecem ainda mais a vida dos atenienses. A Democracia continua a resistir, mas a tendência é para a adoção de regimes fortes (tirânicos). No final do século IV a.C., Atenas deixa de ser independente, e a Democracia é substituída definitivamente por uma oligarquia.

 

Se você tiver interesse em ler o texto integral do Górgias, há uma tradução muito boa de Carlos Alberto Nunes digitalizada pelos Membros do Grupo de Discussão Acrópolis (Filosofia) no endereço:

http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/gorgias.pdf

 

 

 

Fragmentos do Górgias

 

 

 

A Retórica nada tem que ver com a atividade das mãos, e todos os seus atos e realizações são alcançados por meio de discursos. Por isto, eu considero a Retórica a arte do discurso.

 

A Retórica não recorre, por assim dizer, à ação, e se o faz é muito pouco, como a Aritmética, o Cálculo, a Geometria, o gamão e muitas mais, em que os discursos se equilibram com as ações; mas, na maioria, os discursos predominam, de forma que toda a eficiência de suas realizações depende essencialmente da palavra.

 

A Retórica é a arte cuja força consiste no discurso.

 

A Retórica é a mestra da persuasão, mas não é a única mestra da persuasão, pois, por exemplo, a Aritmética também é mestra da persuasão, já que ensina a conhecer a grandeza do par e do ímpar, da mesma forma que as artes são mestras da persuasão nas modalidades a que se aplicam. Particularmente, então, a persuasão da Retórica se relaciona com o justo e o injusto.

 

Quem ensina, seja lá o que for, deve persuadir os outros a respeito do que ensina.

 

O Cálculo é como a Aritmética, pois também diz respeito ao par e ao ímpar, diferençando-se o Cálculo em não considerar apenas em si mesmo o valor numérico do par e do ímpar, mas também em suas relações recíprocas.

 

 

 

 

Haverá maior bem para os homens do que a saúde?

 

Há crença falsa e crença verdadeira; mas não há Sabedoria [ShOPhIa] falsa e Sabedoria verdadeira. Logo, crer e saber são coisas diferentes. Então, podemos admitir duas espécies de persuasão: uma, que é a fonte da crença, sem Sabedoria; a outra, que é a fonte só da Sabedoria.

 

A Sabedoria deverá sempre ser usada com justiça.

 

É fora de dúvida que o orador é capaz de falar contra todos a respeito de qualquer assunto, conseguindo, por isto mesmo, convencer as multidões melhor do que qualquer pessoa, e, para dizer tudo, no assunto que bem lhe parecer. Porém, não será por isto que ele, por exemplo, irá privar o médico de sua fama — o que lhe seria possível — nem qualquer outro profissional. Pelo contrário, deverá usar sempre a Retórica com justiça.

 

Infelizmente, é comum o antagonista se deixar arrastar pelo amor à discussão, sem procurar elucidar o problema em debate.

 

No meu modo de pensar, não há nada de tão nocivas conseqüências para o homem como admitir opinião errônea sobre um determinado assunto.

 

 

 

 

Diante das multidões quer dizer: diante de ignorantes.

 

O ignorante, se for convincente, tem maior poder de persuasão junto de ignorantes do que o sábio.

 

Se o homem justo pratica ações justas, e se o justo nunca há de querer cometer alguma injustiça, será, portanto, forçoso que o orador, se for justo, pratique ações justas. E assim, o retórico jamais haverá de querer cometer uma injustiça.

 

A Retórica não é arte de espécie alguma; é uma espécie de rotina para produzir prazer e satisfação. O que denomino Retórica é apenas uma parte de certa coisa que está longe de ser bela. É uma prática que nada tem de arte, e que só exige um espírito sagaz e corajoso e com a disposição natural de saber lidar com os homens. Em conjunto, dou-lhe o nome de adulação.

 

A Retórica é o simulacro de uma parte da política.

 

Há muita gente que aparenta saúde, mas não é fácil a um ser humano perceber que se encontra em condições precárias. Na alma digo que a mesma coisa se passa, o que faz que a alma pareça estar em boas condições, embora na realidade não esteja.

 

A bajulação só visa o prazer, sem se preocupar com o bem.

 

Não dou o nome de arte ao que carece de razão.

 

 

 

 

Na Medicina, insinuou-se a bajulação culinária; na ginástica, seguindo o mesmo processo, as capelistas, falsas, nocivas, ignóbeis e indecorosas formas das cores, dos esmaltes e das indumentárias, de tal modo seduzindo os homens, que, andando estes sempre no encalço da beleza estranha, descuidam da que lhes é própria, e que só se obtém por meio da ginástica. Para não ser prolixo, vou usar a linguagem dos geômetras para dizer que o gosto da indumentária está para a ginástica como a culinária está para a Medicina, ou melhor, a indumentária está para a ginástica assim como a Retórica está para a legislação. E também: a culinária está para a Medicina como a Retórica está para a Justiça. Esta, como disse, é a diferença natural de todas elas. Mas, em conseqüência da vizinhança, sofistas e oradores se misturam e passam a se ocupar com as mesmas coisas, sem que eles próprios saibam qual seja, ao certo, seu fim, e muito menos os homens. De fato, se a alma não estivesse sobreposta ao corpo e se este se governasse a si mesmo, e se aquela não tivesse discernimento e não separasse da Medicina a culinária, e apenas o corpo tivesse de julgar de acordo com os prazeres que pudesse auferir de cada uma delas, predominaria aquilo de Anaxágoras, a saber: todas as coisas se confundiriam sem que fosse possível distinguir a Medicina, a saúde e a culinária. Em resumo, eis o que penso a respeito da Retórica: ela é a antítese para a alma do que a cozinha é para o corpo.

 

 

 

 

Na verdade, de todos os cidadãos, são os oradores os que têm menor poder.

 

Os oradores e os tiranos são os que menos podem nas cidades, pois não fazem o que querem, por assim dizer, mas apenas o que se lhes afigura melhor.

 

Achas que seja um bem para qualquer pessoa fazer o que lhe parece ser o melhor, quando está privado da razão? Julgas que isto é poder muito?

 

Quem faz alguma coisa visando a determinado fim, não quer aquilo que faz, mas o fim que tinha em vista, quando fez o que fez.

 

As coisas que não são nem boas nem más ora participam do bem, ora do mal, ora de nenhum deles.

 

O que não é nem bom nem mau não queremos, como também não queremos o que é mau.

 

Não devemos invejar nem os que não são para invejar nem os infelizes, porém, devemos nos compadecer deles.

 

O maior dos males não é sofrer alguma injustiça; antes, é cometer uma injustiça. Assim, se me visse obrigado a optar entre praticar alguma injustiça ou sofrê-la, preferiria sofrê-la, não praticá-la. Enfim, é pior cometer alguma injustiça do que ser vítima de injustiça.1

 

Considero feliz quem é honesto e bom, quer seja homem, quer seja mulher. O desonesto, injusto e mau é sempre infeliz.

 

Eu, porém, embora sozinho, não me rendo. Não me deixarei embalar com a ilusão.

 

O homem injusto ou que comete injustiça, de qualquer forma é infeliz. E mais infeliz será, ainda, se não for punido, porém algum tanto menos se for castigado e punido pelos deuses e pelos homens.

 

A Verdade nunca poderá ser contestada. (Verdade com letra V maiúscula e grifo meu).

 

É por causa do prazer ou da utilidade ou por ambas que as coisas são chamadas de belas.

 

 

 

 

No que respeita às leis e às ocupações, nenhuma é bela por outro motivo, mas, apenas, por ser útil ou agradável ou por ambas as coisas.

 

Sempre que, entre duas coisas belas, uma é superior à outra, a que ultrapassa a outra por uma específica qualidade virá a ser a mais bela, ou pelo prazer ou pela utilidade ou por estes dois fatores ao mesmo tempo. E, do mesmo modo, entre duas coisas feias, quando uma é mais feia do que a outra, é porque a ultrapassa em sofrimento ou em maldade para ser mais feia.

 

Na [personalidade-]alma pode haver maldade, como, por exemplo, a injustiça, a ignorância, a intemperança, a covardia, os vícios e seus semelhantes.

 

Vale a pena suportar dor para recuperar a saúde.

 

A felicidade não consiste em alguém se livrar dos males, mas em se conservar de todo livre deles.

 

A justiça é a medicina da maldade.

 

É muito mais de lastimar a convivência com uma alma doente – corrompida, injusta e ímpiado que com um corpo nas mesmas condições.

 

O que há de mais feio é a injustiça e os vícios da alma em geral.

 

Cometer injustiça é o segundo mal em importância; o maior de todos é cometer alguma injustiça e não ser punido.2

 

O injusto deveria se esforçar para que a doença da injustiça não se torne crônica e venha a se transformar em uma úlcera incurável da alma.

 

Se não houvesse entre os homens identidade de sentimentos, comuns a todos, embora com diferenças individuais, não seria fácil a ninguém explicar aos outros o que se passa consigo mesmo.

 

A Filosofia3 diz sempre a mesma coisa.

 

Quem comete alguma injustiça e fica impune fica em desarmonia consigo para o resto da vida. Eu sou de parecer que me fora preferível ter a lira desafinada e desarmônica ou até mesmo não concordar com minhas opiniões a maioria dos homens, a ficar em desarmonia comigo mesmo e vir a me contradizer.

 

Para tirar a prova completa que permita saber se uma alma vive bem ou mal, são necessários três requisitos: conhecimento, boa vontade e franqueza.

 

No que me diz respeito, se eu cometo na vida alguma falta, podes estar certo de que não o faço de caso pensado, porém por ignorância.

 

As leis estabelecidas pela maioria são as leis dos mais fortes.4

 

Cada um deve se comandar a si mesmo, isto é, ser temperante e dono de si mesmo, e dominar em si próprio os prazeres e os apetites.

 

'Quem nos dirá que não é morte a vida, e estar morto, viver?' (Eurípides, apud Platão). Eu próprio já ouvi certo sábio declarar que estamos realmente mortos e temos por sepultura o corpo, e que a porção da alma em que residem os desejos é facilmente sugestionável e conduzida de um lado para o outro.

 

Daí, alguém ter tido a idéia de dar o nome de pipa à alma, por se deixar facilmente encher de sugestões. Aos infensos ao estudo chamou de não-iniciados, e a porção da alma dos não-iniciados em que se localizam as paixões, justamente por ser incontentável e nada reter, comparou a um tonel furado, porque nunca revela saciedade. E assim, no mundo das sombras – o mundo invisível, conforme ele se exprime – os mais infelizes são os não-iniciados, pois carregam água para o tonel furado em um crivo também cheio de furos. Por este crivo ele entendia a alma. Comparou a alma dos insensatos a um crivo que é cheio de furos, pois nada consegue reter, visto carecer de fé e memória.

 

 

 

 

Os indivíduos comedidos são mais felizes do que os intemperantes.

 

Se pudéssemos encontrar alguma coisa que o homem, ao mesmo tempo, pudesse ter e não ter, é mais do que claro que não seria nem o bem nem o mal.

 

O bem não é a mesma coisa que o agradável, nem o mal o mesmo que o desagradável, porque uns cessam ao mesmo tempo, e outros não, por serem diferentes. Pois, como poderia o agradável ser idêntico ao bem, e o desagradável ao mal?

 

Todos os nossos atos devem ser pautados só em vista do bem. O bem deve ser a meta exclusiva de nossos atos, e tudo deve ser feito por amor ao bem, não o bem por amor de tudo o mais. Tudo, portanto, até mesmo o agradável, deve ser feito em vista do bem, não o bem em vista do agradável.

 

É preciso satisfazer apenas os desejos cuja realização deixa melhores os homens, não os que os deixam piores.

 

O homem correto só tem em mira o bem quando discursa, sem nunca falar ao acaso, mas com determinado fim. Comporta-se como os artesãos, que, sem perderem de vista o próprio trabalho, nunca reúnem por acaso o material de que se servem, mas sempre com a intenção de imprimir uma forma particular em tudo o que manipulam. A mesma coisa poderá ser observada nos pintores, nos arquitetos, nos construtores de navios e em qualquer outro trabalhador, pois colocam no lugar preciso a peça de que lançam mão, e a obrigam a se ajustar e a ficar em harmonia com as mais próximas, até compor um todo bem feito e equilibrado.

 

Harmonia e ordem na alma —› legalidade e lei —› benignidade e disciplina —› justiça e temperança.

 

O orador honesto e competente deverá dirigir seus discursos à alma dos homens quando lhes falar. E quer lhes dê ou tire alguma coisa, deverá sempre fazer nascer a justiça na alma de seus concidadãos e banir a injustiça, implantando a temperança e afastando a intemperança.

 

A virtude de qualquer coisa, seja instrumento, seja corpo, seja alma, seja criatura viva, não lhes vem por acaso e já completa; é o resultado de uma certa ordem, de retidão e da arte adaptada à natureza de cada um.

 

 

 

 

 

É por meio da ordem que se promove devidamente a virtude de cada coisa. Uma espécie de ordem inerente a cada coisa é que a deixa boa com a sua presença. Assim, a alma que tem a sua ordem peculiar é melhor do que a que for desordenada. A alma em que há ordem é bem regulada. E a alma bem regulada é temperante. E a alma temperante é boa.

 

O indivíduo temperante só faz o que é direito, tanto em relação aos Deuses como em relação aos homens, pois deixaria de ser temperante se procedesse de outro modo.

 

Quem procede com justiça e piedade forçosamente será justo e pio.

 

O homem bom fará bem e com perfeição tudo o que faz, e quem vive bem e feliz é bem-aventurado, ao passo que o indivíduo ruim, que vive mal, é miserável. Quem quiser ser feliz terá de fugir da intemperança, procurar a temperança e viver de acordo com ela.

 

Se quisermos ser felizes, tanto nos negócios particulares como nos públicos, deveremos envidar esforços para que imperem a justiça e a temperança, não permitindo que os apetites fiquem desenfreados nem devemos procurar satisfazê-los, o que seria um mal imenso – verdadeira vida de bandoleiro.

 

 

 

 

Afirmam os sábios que o céu, a Terra, os deuses e os homens são mantidos em harmonia pela amizade, pelo decoro, pela temperança e pela justiça. Por este motivo, o Universo é denominado 'kosmos' (ou ordem), não desordem nem intemperança.

 

A igualdade geométrica tem muita força, tanto entre os Deuses como entre os homens.

 

 

 

 

De acordo com a grandeza do mal, é belo poder combatê-lo nas mesmas proporções, e vergonhoso não estar em condições de fazê-lo.

 

Qualquer indivíduo será tanto mais amigo de outro quanto mais se lhe assemelhar.

 

Para um homem flagicioso não é vantagem viver, pois só terá de viver mal.

 

De maneira geral, todos gostam dos discursos acomodados a seus hábitos e se aborrecem dos que lhes são contrários.

 

Há duas maneiras de cultivar o corpo e a alma: uma só tem em vista o prazer; a outra, o bem, sem procurar agradar, mas lutando para alcançar o seu objetivo. A que só visa ao prazer é vil e baixa, não passando de simples adulação. A outra, porém, só se esforça para deixar o melhor possível o objeto de seus cuidados, seja o corpo, seja a alma.

 

Se os cidadãos de um país não se tornarem tão perfeitos quanto possível, se os seus sentimentos não forem belos e nobres, é absolutamente inútil qualquer benefício que lhes prestemos.5

 

É dever do homem político tornar os cidadãos melhores.

 

Os justos, como diz Homero, são mansos.

 

Não é pela lentidão, quero crer, que os homens procedem injustamente, mas pela injustiça.

 

Quem adquire algo de maneira injusta só poderá usá-lo injustamente.

 

Jamais um homem bom acusará um inocente.

 

A melhor defesa que alguém pode apresentar para si mesmo é nunca ter dito ou feito nada injusto nem contra os homens nem contra os Deuses.

 

Em si mesma, a morte não é de temer, salvo por quem for insensato e pusilânime. O que é de temer é cometer injustiça. A maior infelicidade é chegar ao Hades com a alma pejada de malfeitorias.

 

Conforme Homero nos relata, Zeus, Posido e Plutão dividiram entre si o poder que tinham recebido do pai. Ora, no tempo de Crono havia uma lei relativa aos homens, que sempre vigorou e que ainda se conserva entre os deuses, a saber: que o homem que houvesse passado a vida com justiça e santidade, depois de morto iria para a Ilha dos Bem-aventurados, onde permaneceria livre do mal, em completa felicidade, e que, pelo contrário, quem tivesse vivido impiamente e sem justiça, iria para o cárcere da punição e da pena, a que dão o nome de Tártaro. No tempo de Crono, e mesmo depois, no começo do reinado de Zeus, os juizes eram vivos e julgavam os vivos no próprio dia em que deveriam morrer. Este o motivo de ser o julgamento cheio de falhas; por isto, Plutão e os zeladores da Ilha dos Bem-aventurados foram a Zeus e lhe comunicaram que para ambos os lugares chegavam homens de todo em todo indignos. Então, Zeus lhes falou: Vou remediar tal inconveniente. As sentenças, realmente, têm sido mal dadas, porque as pessoas são julgadas com vestes, uma vez que ainda estão vivas. Deste modo, continuou, muitos homens de alma ruim são adornados de belos corpos, posição e riqueza, aparecendo por ocasião do julgamento infinitas testemunhas que afirmam terem eles vivido com justiça. Nestas circunstâncias os juízes ficam perturbados, tanto mais que eles também julgam vestidos, servindo-lhes de véu para a alma os olhos, os ouvidos e todo o corpo. Tudo isto atua como empecilho, tanto as suas próprias vestimentas como as dos que vão ser julgados. Em primeiro lugar, disse ele, será preciso tirar dos homens o conhecimento da morte, pois presentemente eles têm notícia dela com antecedência; nesse sentido, já foram dadas instruções a Prometeu. Em segundo lugar, passarão a ser julgados desprovidos de tudo, a saber, só depois de mortos. O juiz, também terá de estar morto e nu, para examinar apenas com sua alma as demais almas, logo após a morte de cada um, que estará desassistido de toda a parentela e depois de haver deixado na Terra todos aqueles adornos, para que o julgamento possa ser justo. Percebi estes inconvenientes antes de vós, e como juízes nomeei três de meus filhos, sendo dois da Ásia: Minos e Radamanto, e um da Europa: Éaco. Depois de morrerem, julgarão no prado que se acha na altura da encruzilhada dos dois caminhos: o que vai dar na Ilha dos Bem-aventurados e o que vai para o Tártaro. Radamanto julgará os que vierem da Ásia; Éaco, os da Europa. A Minos darei o privilégio de se pronunciar por último, nos casos de indecisão dos outros dois, para que seja o mais justo possível o julgamento que decide a viagem dos homens. Desta história eu tiro a seguinte conclusão: a morte, conforme penso, nada mais é do que a separação de duas coisas: a alma do corpo. Uma vez separados um do outro, nem por isto deixa nenhum deles de apresentar a mesma constituição do tempo em que ainda vivia o homem. O corpo conserva sua natureza e os sinais de quanto pudesse ter feito, bem como os tratamentos a que foi submetido, tudo facilmente reconhecível. Se um indivíduo foi em vida corpulento, ou por natureza ou por sua maneira de viver, ou por ambas as causas, depois de morto será também grande o seu cadáver. Se era gordo, o cadáver será gordo, e assim com tudo o mais. Se gostava de deixar crescer os cabelos, o cadáver também apresentará cabelos soltos. Por outro lado, se apresentava no corpo cicatrizes de azorrague ou marcas de sevícias, ou de ferimentos outros, recebidos em vida, será possível perceber tudo isto no cadáver. E se, porventura, tivesse em vida algum membro fraturado ou defeituoso, isto também se poderá reconhecer depois de morto. Em uma palavra: tudo pelo que em vida o corpo passou continua por algum tempo visível, em sua quase totalidade, depois da morte. A mesma coisa penso que se passe com relação à alma; tudo nela se torna visível, depois de despida do corpo, tanto suas características naturais como as modificações supervenientes no empenho de o homem alcançar isto ou aquilo. Ao se apresentarem diante do juiz – os da Ásia vão para Radamanto que os coloca em sua frente e examina alma por alma, sem saber a quem pertenceram, a não ser, por vezes, quando acontece tomar a do Grande Rei ou a de qualquer outro soberano ou potentado, e verificar não haver nela nada são, por estar cheia de lanhos e de marcas de perjuros e de injustiças, que as diferentes ações foram deixando na alma, e de encontrar tudo retorcido pela mentira e pela vaidade, sem estar nada direito, visto ter sido criada sem a verdade; e como conseqüência da licença, da luxúria, da insolência e da incontinência de conduta, mostra-se a alma cheia de deformidades e de feiúra. Contemplando-a deste jeito, envia-a Radamanto ignominiosamente para a prisão, onde terá de sofrer o castigo merecido. A pena merecida para quem recebe castigo, quando é punido com justiça, é se tornar melhor e tirar algum proveito com o castigo ou servir de exemplo para outros, a fim de que estes, vendo-os sofrer o que sofrem, se atemorizem e se tornem melhores. Os que aproveitam com o seu próprio castigo, seja ele imposto pelos deuses, seja pelos homens, são os que cometem faltas remediáveis. Todavia, este proveito só é alcançado por meio de dores e sofrimento, tanto aqui na Terra como no Hades; não há outro modo de se limparem da injustiça. Os culpados dos piores crimes, que, por isto mesmo, são incuráveis, são os que ficam para exemplo, sem que eles próprios tirem a menor vantagem disto, visto não serem passíveis de cura. Para os outros, porém, é proveitoso vê-los expiar eternamente os próprios erros por meio dos maiores, mais dolorosos e mais terríveis suplícios, expostos para exemplo na prisão do Hades, espetáculo e advertência, a um tempo, para quantos criminosos ali chegarem. Arquelau será um destes, é o que eu digo, e bem assim todos os tiranos iguais a ele. Estou convencido de que a maioria de tais exemplos é tirada da classe dos tiranos, dos reis, dos potentados e dos demais administradores dos bens públicos, por serem, justamente, os que têm a possibilidade de cometer os maiores e mais ímpios crimes. Homero é testemunha disto, pois nos mostra reis e potentados a sofrer castigos eternamente no Hades, como Tântalo, Sísifo e Tício. Tersites ou qualquer outro vilão de maus costumes, ninguém nos apresenta como sujeito a penas eternas, por incurável. É que, no meu modo de pensar, carecia de poder para isto, motivo por que era mais feliz do que os que dispuseram deste poder. De fato, é entre os tiranos que se encontram os tipos mais perversos; porém, nada impede que entre eles também se nos deparem homens virtuosos, dignos em todo o ponto de nossa admiração. Pois é sumamente difícil e grandemente merecedor de elogios, levar vida de justo quem tem o poder de fazer o mal. Contudo, são poucos os homens nestas condições. Todavia, tanto aqui como alhures, tem havido, e no futuro, quero crer, não faltarão homens excelentes na virtude de administrar honestamente o que lhes confiarem. Um, até, já se tornou famoso em toda a Hélade – Aristides, filho de Lisímaco. Entretanto, a maioria dos potentados é gente criminosa. Como disse, quando aquele Radamanto recebe um tipo desses, ignora tudo a seu respeito, quem seja ou de que família provém; sabe apenas que é um celerado. Vendo isto, envia-o para o Tártaro, não sem o ter previamente assinalado, para indicar se é ou não passível de cura. Uma vez lá chegado, o criminoso recebe o castigo merecido. Mas, quando acontece perceber uma alma que viveu santamente e na verdade, de um simples particular ou de quem quer que seja, mas principalmente, segundo penso, de algum filósofo que durante a vida só se ocupou com seus interesses, sem se ingerir nos negócios dos outros, mostra-se satisfeito e o encaminha para a Ilha dos Bem-aventurados. O mesmo faz Éaco. Ambos julgam com um bastão na mão. Minos se conserva à parte, sentado, e é o único que empunha um cetro de ouro, como em Homero nos declara Odisseu, que o viu com cetro de ouro na mão, assentado, e entre os mortos a distribuir justiça. Eu, de minha parte, dou crédito a esta narrativa e me esforço para me apresentar diante do juiz com a alma tão limpa quanto possível. Não dou nenhuma importância às honrarias que a maioria dos homens tanto preza. Empenhando-me na busca da verdade, tenho procurado me tornar o melhor possível enquanto viver, e assim também morrer, quando chegar a minha hora. Exorto também os demais homens, na medida das minhas forças, a fazer o mesmo e a adotar este modo de vida, tomando parte nesta luta – a mais importante, sem nenhuma dúvida, que se trava aqui na Terra.


Devemos, com todo empenho, nos precaver mais de cometer injustiça do que de ser vítima de injustiça. Cada um de nós deve se esforçar, acima de tudo, não para parecer que é bom, mas para sê-lo realmente, tanto na vida particular como na pública. Se alguém se tornar mau sob qualquer aspecto, deverá ser castigado, sendo este o segundo bem depois do de ser justo, que é se tornar justo por meio do castigo e da expiação da culpa. Toda adulação deve ser evitada, tanto em relação a si próprio como a estranhos, quer sejam poucos, quer sejam muitos, e que tanto a faculdade de bem falar como os demais recursos deste gênero só devem ser empregados a serviço do bem e da justiça.

 

Aceita, portanto, meu conselho, e acompanha-me para onde, uma vez chegado, serás feliz, assim na vida como na morte, conforme nosso argumento o certifica. Deixa que te desprezem como insensato, que te insulte quem quiser insultar, sim, por Zeus, recebe sem te perturbar até mesmo aquele tapa ignominioso; não virás a sofrer mal nenhum, se fores um homem verdadeiramente bom e se praticares a virtude. E depois de a termos praticado em comum, se julgarmos conveniente, dedicar-nos-emos à política ou ao que melhor nos parecer, o que decidiremos oportunamente, quando, para isto, ficarmos mais aptos do que estamos agora. Pois é vergonhoso, sendo nós o que mostramos ser neste momento, blasonar como se valêssemos alguma coisa, quando nem sequer pensamos do mesmo modo sobre qualquer assunto, principalmente os de mais importância, tão grande é nossa ignorância!

 

Tomemos como guia a verdade que acaba de nos ser revelada e que nos indica ser a melhor maneira de viver: a que consiste na prática da justiça e das demais virtudes, na vida como na morte. Aceitemos esta norma de vida e exortemos os outros a fazer o mesmo.

 

 

 

Em virtude de tudo isto...

 

 

 

Com nobreza, seja justo,

seja lá qual for o custo.

Com gentileza, seja bom,

não espere o ano-bom.

Com benquerença, seja amigo,

não se importe com o umbigo.

Com leveza, seja comedido,

não dê bola para o alarido.

Com humildade, seja magnânimo,

nunca deixe de inspirar ânimo.

Com siso, não seja indecoroso,

não adule um ignominioso.

Com nobreza, não seja improbo,

e daí se o chamarem de bobo?

Estas coisas causam mal-estares?

Sim; mas só nos papa-jantares.

Todavia, só vingam altercações

quando prevaricam os Corações.

 

 

 

 

 

 

 

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Notas:

1. Platão era um Iniciado, e, como tal, só poderia abordar e comentar este tema em termos iniciáticos. O fato é que encarnamos sucessivamente por três motivos básicos: para apre(e)nder, para compensar retributivamente (e, se possível, compreensivamente) os equívocos cometidos e para, um dia, pela compreensão plena, nos libertarmos das encarnações compulsórias neste Plano, porque é exclusivamente pela encarnação que estas coisas são possíveis. Ora, no caleidoscópio da vida, aparentemente, sofremos algumas injustiças e algumas malvadezas. Mas, da mesma forma que não ficamos carecas porque queremos ou porque gostamos, nada em nossas vidas acontece por acaso. Assim, sempre aparecerão em nossos caminhos os injustos e os malvados, enquanto tivermos que compensar nossos erros (passados e presentes) pela dor (que é o primeiro degrau do aprendizado libertador e ascensional). Não há essa coisa de bala perdida e de estar na hora errada no lugar errado. Logo, a dor, enquanto for necessária, sempre será educativa e vantajosa, e, portanto, ainda que contrarie o senso comum, é boa, porque, segundo Platão, torna a alma melhor; mas, ai dos injustos e dos malvados, principalmente se eles queimarem em excesso, a ponto de produzir muita dor! Por isto, Platão, pela boca de Sócrates, disse: — O maior dos males não é sofrer alguma injustiça; antes, é cometer uma injustiça. Assim, se me visse obrigado a optar entre praticar alguma injustiça ou sofrê-la, preferiria sofrê-la, não praticá-la. Enfim, é pior cometer alguma injustiça do que ser vítima de injustiça. Ser vítima de uma injustiça nada mais é do que educativamente compensar malfeitos cometidos, ainda que isto não possa ser justificado pela reciprocidade da lex talionis (lei ou pena de talião). Os primeiros indícios da lei de talião (escrita com iniciais minúsculas, pois não se trata, como muitos pensam, de nome próprio) foram encontrados no Código de Hamurabi, em 1780 a.C., no reino da Babilônia. Esta lei permitia evitar que as pessoas fizessem justiça elas mesmas e de forma desproporcionada, introduzindo um início de ordem na sociedade, no que diz respeito ao tratamento de crimes e delitos, com o princípio olho por olho, dente por dente. Enfim, um Iniciado sempre prescindirá de fazer cumprir (no outro) seja lá o que for que precisar ser cumprido, ainda que saiba da necessidade do cumprimento. Instrumento do mal e da dor Ele não será jamais. Pelo menos conscientemente não será. Já auxiliar, amparar e ensinar são coisas diferentes, porque não deixam de ser obrigações fraternais.

 

Caleidoscópio Ascensional da Vida

 

2. Mais ou menos 2.400 anos depois de Platão ter escrito o Górgias, é exatamente por isto que a Senhora Presidente Dilma Rousseff está tendo extrema dificuldade para governar o Brasil – os senhores parlamentares brasileiros fazem (e desfazem) o que querem e, normalmente, não são punidos, porque o espírito de corpo está acima da lei, da honra e da moral. Os digníssimos parlamentares brasileiros, com raríssimas exceções, reconheço, se acostumaram a votar com o Governo (quando votam) em troca de algum favor, de algum cargo, de alguma vantagem, de alguma nomeação para um afilhado político, de só voto isto se votar antes (ou também) aquilo et cetera. Enfim, é uma verdadeiro estado de desordem, de anarquia, de confusão, de bagunça, de avacalhação, de comportamento anti-republicano. A prática é conhecida: se-me-der-aí-eu-dou-aqui. A bola da vez é a Lei Geral da Copa, cuja votação foi novamente adiada por falta de quorum no Plenário da Câmara; a justificativa é de que é necessário que seja marcada uma data para a votação do Código Florestal. Pode um treco destes? Logo no Brasil, onde o futebol borbulha no sangue do povo, e segundo Neném Prancha, torcedor incondicional do Botafogo, pênalti é tão importante que quem devia cobrar era o presidente do clube. Durma-se com um barulho desses! E como a Senhora Presidente tem feito jogo duro com esses interesseiros anti-republicanos de meia-pataca, paira sobre o Congresso Nacional uma sombria ameaça de crise institucional, porque a própria base aliada (que de aliada parece que não tem nada) está sentida (porque tem sido pouco ouvida) e anda meio rachada (porque está se sentindo alijada). Bolas! É a impunidade e os interessículos de sempre atrapalhando o desenvolvimento do País. É mesmo incompreensível essa coisa de votar com o Governo em troca de algum favorzinho presidencial. Ora, os parlamentares foram eleitos para votar em benefício do povo brasileiro; nada aquém ou além disto. Essa coisa fedorenta de eu só voto se deveria dar perda de mandato, e, dependendo do nível da esculhambação das exigências do toma-lá-dá-cá, até xilindró.

 

 

Doutor Salsaparrilha

Doutor Salsaparrilha

 

 

3. Filosofia —› FiloShOPhIa.

4. E mais: o poder não negocia e não abre mão do poder.

5. Abaixo o ranking 2011 da ONG Transparência Internacional dos países mais e menos corruptos do mundo.

 

Países Mais Corruptos
Países Menos Corruptos
1º – Somália 1º – Nova Zelândia
2º – Coréia do Norte 2º – Dinamarca
3º – Myanmar 3º – Finlândia
4º – Afeganistão 4º – Suécia
5º – Uzbequistão 5º – Cingapura
6º – Turcomenistão 6º – Noruega
7º – Sudão 7º – Holanda
8º – Iraque 8º – Austrália
9º – Haiti 9º – Suíça
10º – Venezuela 10º – Canadá

Fonte:

http://lista10.org/miscelanea/os-10-paises-
mais-e-menos-corruptos-do-mundo-2011/

 

Páginas da Internet consultadas:

http://almanaque.folha.uol.com.br/
esporte_17jan1976.htm

http://www.band.com.br/esporte/futebol/sele
cao/copa-2014/noticia/?id=100000492907

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S151
7-97022011000200013&script=sci_arttext

http://www.realmagick.com/virtues

http://members.aceweb.com/jackdotcom/

http://www.dipity.com/tickr/
Flickr-kaleidoscope/?mode=fs

http://pt.wikipedia.org/wiki/
Lei_de_tali%C3%A3o

http://www.gifsoup.com/view/
175876/beauty-and-the-beast.html

https://plus.google.com/116725716107094
536131#116725716107094536131/posts

http://commons.wikimedia.org/wiki/
Category:Animations_of_geometry

http://commons.wikimedia.org/
wiki/File:Cubo_desarrollo.gif

http://www.mast.queensu.ca/~mikeroth/
oldteaching/calculus/calculus.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/
G%C3%B3rgias_(di%C3%A1logo)

http://afilosofia.no.sapo.pt/12prog2Plat2.htm

http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/gorgias.pdf

 

Fundo musical:

Iliovasilemata

Fonte:

http://www.navis.gr/midi/midi.htm#Greek

 

Direitos autorais:

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