Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Giordano Bruno

 

 

 

 

No sábado passado, resolvi passear no Jardim Botânico, que se localiza no bairro de mesmo nome, na Zona Sul da minha querida Cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. É uma das mais belas e bem preservadas áreas verdes da Cidade, sendo um exemplo da diversidade da flora brasileira e estrangeira. No Jardim Botânico podem ser observadas cerca de 6.500 espécies (algumas ameaçadas de extinção) distribuídas por uma área de 54 hectares, ao ar livre e em estufas. O Jardim abriga ainda monumentos de valor histórico, artístico e arqueológico, além de um importante centro de pesquisas, que inclui a mais completa biblioteca do País especializada em Botânica, com mais de 32 mil volumes.

 

Lá pelas tantas, vi um senhor observando o busto de D. João VI. Achei aquilo interessante, porque, além de imóvel, o homem parecia não respirar. Intrigado, me aproximei e puxei um papinho.

 

Linda tarde — disse eu amigavelmente.

 

Sim, mas vai esfriar — respondeu o homem que não respirava mesmo, sem demonstrar qualquer emoção.

 

Resolvi me apresentar, a ver se conseguia descobrir quem era aquele cavalheiro. — Meu nome é Rodolfo; muito prazer.

 

O meu nome de batismo é Filippo Bruno, mas adotei o nome de Giordano Bruno aos 17 anos ao receber o hábito de São Domingos, no convento de San Domenico Majore, em Nápoles. Com o tempo, fui perdendo o entusiasmo e me desencantei terminantemente. O prazer é meu.

 

Giordano Bruno? Só conheço um Giordano Bruno, que foi teólogo, filósofo, escritor e frade dominicano italiano condenado à morte sem profusão de sangue pela mal-aventurada Congregação da Sacra, Romana e Universal Inquisição do Santo Ofício, de péssima memória.

 

Sou eu mesmo, mas não posso dizer em carne e osso. Mal-aventurado o Santo Ofício mais do que foi. De péssima memória é pouco para qualificar o que ele representou na história da Humanidade. E de romano, o Santo Ofício teve tudo; mas de sacro, não teve nada.

 

Mas... Como? Giordano Bruno?

 

Resolvi, como você, dar um passeio aqui no Jardim Botânico. Nem sei como você me viu, pois nós, de uma maneira geral, não somos percebidos pelos olhos humanos. E como você já observou, não precisamos sequer respirar.

 

O.k. Então, se você não se importar, gostaria de ter uns esclarecimentos sobre algumas coisas que não compreendi acerca de sua vida e dos seus pensamentos. Quero dizer, aqui na Terra. Pelo que vejo, você é um daqueles que não morreram depois da morte, pois não?

 

Não, não morri. Renasci. Mas alguns dos que me mataram morreram para sempre; outros, não queira nem saber.

 

Eu entendo isto muito bem — disse eu.

 

Mas o que você quer me perguntar? Aproveite, pois eu não tenho muito tempo.

 

Li algumas de suas obras, mas, para começar, gostaria de saber o que você pensa sobre a poesia e os poetas.

 

Depois de pensar alguns instantes, Bruno respondeu: Bem, na verdade, a poesia não nasce das regras, a não ser em parte mínima e insignificante. Mas, ao contrário, são as regras que derivam das poesias; e, no entanto, são tantos os gêneros e as espécies de verdadeiras regras, quanto são os gêneros e as espécies de verdadeiros poetas. Poetas, de fato, há poucos.

 

Gostei de sua resposta disse eu. Por falar em poetas, o que você acha da obra de Fernando Pessoa?

 

Ele esteve por aqui depois de mim, mas sempre fomos muito amigos. Eu considero que seja o maior poeta português de todos os tempos. Olhe só o que ele escreveu: 'Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Quem quere passar além do Bojador tem que passar além da dor.' Temos que vencer nossos monstros marinhos interiores para podermos ultrapassar a intransponibilidade do Bojador; Bojador, que nós criamos, encarnação após encarnação. Este é o sentido esotérico do mar salgado de Fernando Pessoa, que era um Iniciado, mas que nunca admitiu publicamente o fato. Mas, penso que isto esteja bem claro no seu poema 'O Encoberto':

 

'Que symbolo fecundo
Vem na aurora anciosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.'


'Que
symbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Christo.'


'Que
symbolo final
Mostra o sol já disperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.'

 

Hum, hum assenti. Diga-me: por que você disse que é uma ingenuidade pedir a quem tem poder para mudar o poder?

 

Porque, infelizmente, em grande medida, o poder é controle efetivo sobre a vida de outro, e, claro, é geralmente utilizado para este fim. Logo, se você souber onde está o poder, o que é quase impossível, você saberá com quem está o controle. Mas como o poder é uma espécie de corporação mundial, ele jamais será visto 'in totum'; você até poderá conhecer um de seus membros aqui, outro ali, mas nada mais do que isto. O Nazismo foi a expressão máxima de um poder estruturado para um fim específico; mas, o Nazismo por trás do Nazismo – o verdadeiro Poder – não foi e jamais será conhecido pela Humanidade. Quantos Irmãos da Grande Loja Negra você conhece? De quantos você sabe o nome? Então, no que concerne aos Governos, de maneira geral, a coisa ainda é como sempre foi, isto é, controle do povo para poder influenciar direta ou indiretamente neste mesmo povo para, principalmente, benefício substantivo do próprio Governo e dos seus aliados e acólitos. Essas coisas de Estado de Direito estabelecido pela lei e de compaixão pelos pobres e necessitados funcionam mais como discurso e menos como efetividade implementada. O que está acontecendo no Congresso Nacional do seu País? Quem alcança o poder, se puder, empenha a própria mãe para não perdê-lo. A 'intelligentsia' que gera o poder é a mesma que o embala e sustenta, e que dele aufere seus benefícios e suas regalias. Logo, é fácil compreender que quem tem poder para mudar prefere usar este poder para manter o poder em suas próprias mãos. O poderoso prefere fazer um transplante de coração do que entregar o poder. Mas, enfim, a coerção funciona até o ponto em que as pessoas se rebelam e dela se libertam. Mas, enquanto isso...

 

 

 

 

Sim, é verdade. Mas o que você quis dizer quando afirmou que só os espíritos fracos pensam com a multidão, por ser ela multidão?

 

Na minha época, como você sabe, não havia televisão. Todavia, basta você assistir, por exemplo, aos programas religiosos que hoje pululam nos diversos canais de televisão, que eles respondem muito bem à sua pergunta. As pessoas, normalmente, não querem se esforçar, não querem queimar as pestanas, não querem se libertar; preferem que os outros façam por elas o que deveriam fazer por si. E se uma parte da multidão diz que ali ou acolá é bom, a outra parte da multidão vai correndo negociar sua vida, sua pós-vida e o que mais puder, ainda que venha até a passar fome ou causar estragos maiores. Se o ócio criativo, entre outras nobres atividades, permite ocupar o tempo com a reflexão, o negócio – literalmente, negação do ócio – só cuida do que é material, do que é ilusório e do traz alguma vantagem. Por isto, os que negociam com Deus jamais tiveram um segundo de Dialética, porque se tivessem tido, no segundo segundo, teriam dado início ao processo de alforria interior. Enfim, se por um lado a multidão reflete o All Are One, o que é bom, por outro, revela a mais abjeta inconveniência da subalternidade, o que é péssimo.

 

E sobre a arrogância?

 

Ignorância e arrogância são duas irmãs inseparáveis, com um só corpo e uma só alma. Você jamais verá um poeta arrogante; Fernando Pessoa foi a simplicidade, a humildade e a delicadeza personificadas. Mas, ouça o que disse John Fitzgerald Kennedy: 'When power leads men towards arrogance, poetry reminds him of his limitations. When power narrows the areas of man's concern, poetry reminds him of the richness and diversity of his existence. When power corrupts, poetry cleanses.' Quando o poder conduz a homens para a arrogância, a poesia lembra-o de suas limitações. Quando o poder estreita as áreas de interesse do homem, a poesia lembra-o da riqueza e da diversidade de sua existência. Quando o poder corrompe, a poesia limpa. 'Mutatis mutandis', estavam certos os estóicos: 'Insaniunt omnes praeter sapientem.' Todos perdem o juízo, com exceção do sábio. O que você achou destes comentários?

 

É mesmo a maior limpeza. Não é preciso dizer mais nada. Agora, outra coisa: e sobre o amor, o que você pensa?

 

Todo o amor deriva do ato de ver: o amor inteligível do ato de ver inteligivelmente; o sensível do ato de ver sensivelmente. Você concorda?

 

Sim, concordo respondi. Mas quem não consegue ver inteligivelmente?

 

Claro que só poderá ver sensivelmente, isto é: sentir. E isto, que apetece e agrada os sentidos, não deixa de ser uma forma de prisão. Mas – sei que você sabe mais além do que apenas ver inteligivelmente, é necessário um esforço concertado para que se possa ver transinteligivelmente. É a transrazão ou transnoesis que você comentou em alguns de seus trabalhos. Seja como for, mantenho o pensamento que se deve retribuir o amor com amor. Quanto ao ódio, ou mesmo rancor, nem pensar, ainda que, por mais paradoxal que possa parecer, o ódio e o amor tenham a mesma substância. Agora, aquela coisa de dar a outra face, para mim, continua sendo muito difícil. Talvez você não saiba, mas, mesmo aqui, onde me encontro, há uns caras muito morrinhas e inconvenientes.

 

Como eu não podia perder tempo, e aquela oportunidade era única, continuei com a minha metralhadora perguntadora: — Sim, eu compreendo. Agora me diga o que você quis dizer com a afirmação: 'O tempo tudo tira e tudo dá; tudo se transforma, nada se destrói.'

 

Ora bem, Rodolfo. O tempo é uma ilusão dos sentidos. Quanto mais estivermos presos às ilusões dos sentidos, mais o tempo tirará e consumirá nossas energias criativas e sagradas. Mas, à medida que nos libertamos de nossos quereres, de nossas paixões e de nossas fantasias, mais o tempo nos dará; mais perceberemos que o tempo só é tempo quando dele dependemos e quando a ele nos escravizamos. É por isto que eu disse que o tempo tudo tira e tudo dá, ainda que, em realidade, o tempo não dê e não tire nada. Nós, sim, é que, imersos no tempo da existência, perdemos ou conquistamos, de acordo com nossa compreensão e nosso maior ou menor grau de liberdade. Mas, o próprio perder é uma forma de ganhar, pois, não há experiência perdida; tudo concertadamente se transforma, nada efetivamente se destrói. Então, meu amigo, o tempo que tira, o mal e o perder relativos são, por assim dizer, catalisadores, do tempo que dá, do bem e do ganhar também relativos, porque, naquilo que você gosta de chamar de Todo-Sempre-Um, mal e bem, perder e ganhar, certo e errado, harmonia e desarmonia, justiça e injustiça, certo e errado 'et cetera' são faces de uma mesma moeda – a moeda desde sempre una, educativa, cosmicamente incriada e indestrutível. Nossa compreensão incipiente e descomposta das coisas, porque é humana, infelizmente absolutizando o que não pode ser absolutizado, é que provoca as dores, as dificuldades e os retardamentos. Para ser franco, eu também não compreendia muito bem estas coisas quando vivi na Terra; achava que sabia tudo, mas não sabia realmente nada.

 

 

 

 

Fiquei pensando sobre aquelas explicações, quando, de repente, percebi que estava anoitecendo e esfriando. Mas eu não queria perder um só segundo daquele encontro inesperado, e, então, continuei: — Bruno, eu apreciaria que você falasse um pouco sobre o Universo.

 

Eu admitia que o Universo fosse infinito e uno. Hoje, vejo diferente. O conceito de infinito dá uma idéia de criação permanente; de uma coisa que, por não ser dada como finita, precisa estar, em termos conceituais, em permanente dilatação ou autogeração incessante para se manter infinita. Ora, isto é meio que um método de raciocínio 'ab absurdo'. Apesar de sempre ter admitido que o observador está a cada instante, sem exceção, no centro das coisas, não sei como, na época, não pensei nas máximas dos filósofos: 'Nihil novum super Terram' (não há nada de novo sobre a Terra), nihil novi sub Luna (não há nada de novo sob a Lua) e nihil novum sub Sole (não há nada de novo sob o Sol). Então, o que poderá haver de novo no Universo? Como ele poderia ser infinito? O Universo, sim, é uno, pois mesmo que se admita a existência de múltiplos universos, o Universo global, a soma, por assim dizer, de todos os universos, não é nem maior nem menor do que um. Nihil ex nihilo; nihil in nihilum. Nada vem do nada; nada vira nada. Muito bem. Se isto tudo é incontestável, repito: como o Universo pode ser infinito? Não; ele é ilimitado. É uno, mas ilimitado no limite-sem-limite do que foi, do que é e do que sempre será. 1 = 1. Depois, com calma, porque agora não tenho tempo para explicar isto a você, dê uma pesquisada nos conceitos teosóficos de 'Mânvântâra' e de 'Prâlâya', que eu mesmo só aprendi séculos depois de ter morrido.

 

 

 

 

 

Mânvântâra/Prâlâya

 

 

Meu caro Bruno, já anoiteceu e está frio. Para concluir, peço a você que fale rapidamente do seu martírio.

 

Bruno deu uma gostosa gargalhada, e comentou: Eu não sinto frio algum. Na verdade, não sinto frio, não sinto calor e não preciso respirar. Você esqueceu que eu já não mais estou neste mundo? Mas, rapidamente responderei à sua pergunta, pois, como você está com frio, eu tenho mesmo que partir. Fui condenado à morte na fogueira, pela Inquisição romana, por heresia, disseram eles, mais ou menos como sucedeu com Sócrates, que teve que beber o veneno chamado cicuta por ter sido acusado de impiedade. Mas, tanto quanto Sócrates – que jamais foi impiedoso e não desistiu da vida justa, prestando obediência tão-somente aos ditames de sua própria consciência – eu jamais fui herético. Tudo começou por eu ter defendido o heliocentrismo de Copérnico. Por que deveríamos acreditar no que Aristóteles afirmou, quando a simples observação da Natureza demonstra exatamente o contrário? Mas o pior, para os inquisidores da época, foi eu ter negado a transubstanciação, ter dado prioridade ideal e real ao Pai com a conseqüente subordinação do Filho, ter admitido a pluralidade dos mundos e ter reconhecido a alma presente no corpo como o piloto no barco, apesar de eu ter negado qualquer interesse particular em questões teológicas e reafirmado o caráter puramente filosófico de minhas especulações. Ora, que diferença pode fazer alguém crer em alguma coisa ou descrer de alguma coisa? Mas eles não podiam admitir a liberdade de pensamento porque ela poderia pôr em cheque a própria autoridade baculina do Papa e a estabilidade do Catolicismo. Papas e papistas sempre utilizaram à saciedade e exuberantemente o argumento 'ad ignorantiam', isto é, o argumento adequado à ignorância da confraria católica, que nunca soube nada de nada e continua, ao que parece, sem saber nada de nada. Eu nunca aceitei imposições, viessem de onde viessem. Na época, a regra era: mandamos nós, os representantes de Deus na Terra; obedece toda a orbe. Não obedeceu? Até fogueira, se necessário for. Foi o que aconteceu comigo por ordem do Papa Clemente VIII, que determinou papalmente ('Roma locuta; causa finita') que eu deveria ser sentenciado como impenitente e herege pertinaz Eu só obedecia à minha consciência, e isto eles não podiam tolerar. Por fim, para arrematar, repudiei, sim, o crucifixo, que, para mim, era apenas um símbolo do poder temporal, secular, não o Poder-em-si, e, como se hoje fosse, lembro-me de ter dito aos meus juízes: 'Maiori forsan cum timore sententiam in me fertis quam ego accipiam, que quer dizer: Talvez vocês pronunciem esta sentença contra mim com mais medo do que eu em recebê-la'. Hoje, sei que não me mataram por qualquer tipo de convicção religiosa, real ou imaginosa, mas por cagaço diarréico e por interesse em conservar o 'statu quo ante', que mantinha o rebanho sob domínio e rendia dinheiro para alavancar o negócio. Não tinham medo de mim, propriamente, mas das minhas idéias. Só que eu rapidamente me libertei, e a maioria desses cagalhufas (refiro-me aos que não foram reciclados) ainda está presa às suas imodestas e hipotéticas presunções. O pior, para gentes como eles, é que ninguém pode ajudar; ou eles se libertam por si ou ficarão, de inanidade em inanidade, de pesadelo em pesadelo, de opressão em opressão, imantados, como pequenas limalhas, à esfera em que se encontram, sem possibilidade de seguir em frente. Rodolfo, guarde este ensinamento: não há nada pior do que a crueldade. A crueldade envenena, primeiro, o sangue, depois, a mente e, finalmente, a alma. Pode parecer meio demoníaco, mas, fatalmente, mais do que imantar à Oitava Esfera, a crueldade produz a morte depois da morte. Esta Lei Cósmica é terminativa; nada nem ninguém podem mudá-La!

 

Ao acabar de fazer este pequeno relato, Bruno cordialmente se despediu e desapareceu. Meu corpo estremeceu em um arrepio involuntário, e eu me dei conta que havia dormido encostado a uma árvore do Jardim Botânico (que eu não sei se é permitido).

 

 

 

 

 

 

Páginas da Internet consultadas:

http://www.comunidadeespirita.com.br/
temas/socrates.htm

http://www.uff.br/feuffrevistaquerubim/
images/arquivos/artigos/001_2005-02.doc

http://www.esotericarchives.com/
bruno/umbris.htm

http://setimasinfonia.blogspot.com/
2009/02/giordano-bruno.html

http://www.geocities.com/
liviozuc/pag3_eng.html

http://www.infinitum-nihil.com/
images/splash.gif

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jardim_Bot%
C3%A2nico_do_Rio_de_Janeiro

http://en.wikipedia.org/
wiki/Giordano_Bruno

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Giordano_Bruno

http://www.antroposmoderno.com/
antro-articulo.php?id_articulo=78

 

Fundo musical:

Learnin' the Blues
Composilção: Dolores "Vicki" Silvers
Intérprete: Frank Sinatra

Fonte:

http://www.pcdon.com/FrankSinatra.html