O Guardador de Rebanhos

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Objetivo Desta Divulgação

 

 

 

Relendo O Guardador de Rebanhos, de Fernando Pessoa – sob o heterônimo de Alberto Caeiro – resolvi garimpar, aqui e ali, uns fragmentos deste poema sem rimas (Não me importo com as rimas, escreveu Pessoa em um passo do poema) para divulgá-los. Mas, cuidado! Alguns passos devem ser lidos de cabeça para baixo!

 

 

 

 

O Guardador de Rebanhos
(Fragmentos)

 

 

 

Fernando Pessoa

 

 

Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o Sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.

 

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa...

 

Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha;
É a minha maneira de estar sozinho.

 

Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

 

Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

 

Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o Sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós...

 

O mistério das cousas?
Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver
quem pense no mistério.

 

A luz do Sol não sabe o que faz,
E por isso não erra e é comum e boa.

 

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca O vi.
Se Ele quisesse que eu acreditasse Nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me: — Aqui estou!

 

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o Sol e o luar,
Então acredito Nele,
Então acredito Nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o Sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e Sol e luar;
Porque, se Ele se fez, para eu O ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se Ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e Sol e flores,
É que Ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e Sol...
E amo-O sem pensar Nele,
E penso-O vendo e ouvindo,
E ando com Ele a toda a hora.

 

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que O não conhecêssemos,
Por isso Se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

 

Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
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... a nossa única riqueza é ver.

 

Vi Jesus Cristo descer à Terra.
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Tinha fugido do céu.
........................................................
No céu tinha que estar sempre sério...
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.

 

A mim [Jesus Cristo] ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que Ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.

 

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

 

O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina...

 

Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

 

 

Tudo vale a pena!

 

 

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo...

 

Ele [o Menino Jesus] dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

 

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos...

 

O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.

 

As minhas irmãs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza...

 

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...
Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...

 

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer,
lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

 

Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço.
Para não parecer que penso nisso...

 

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

 

... tristes de nós que trazemos a alma vestida!

 

A nossa alma e o céu e a Terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.

 

Que pensará o meu muro da minha sombra?

 

E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso,
como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!

 

Mas sei que a verdade está nelas [nas flores] e em mim
E na nossa comum divindade...

 

Bendito seja o mesmo Sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens,
um momento no dia, o olham como eu,
E nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural – mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral...

 

Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão...
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos...

 

Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a ação humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o Sol é sempre pontual todos os dias.

 

A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

 

 

 

 

Eu Digo Assim:

 

 

 

Eu me enterneço se a mula manca;

já não penso em rosetar.

Mas não me importo com a tranca;

já não tenho o que trancar.

 

 

Era lingrinhas, quando menino;

andava sem saber andar.

Pela Ordem Rosacruz, Pequenino;

hoje, o Universo é meu lar!

 

 

Você, que cisma de viver deitado,

come-em-vão e reza o terço:

Ora, acorde! Pare de pedir fiado!

Já é hora de sair do berço.

 

 

 

O vai-e-vem do berço!





 

 

 

Página da Internet consultada:

http://commons.wikimedia.org/
wiki/File:Newtons_cradle.gif

 

Bibliografia:

PESSOA, Fernando. Obra poética e em prosa. Volume I. Introduções, organização, biobibliografia e notas de António Quadros e Dalila Pereira da Costa. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986.

 

Música de fundo:

Vou Dar De Beber A Dor
Compositor: Alberto Janes
Intérprete: Amália Rodrigues

Fonte:

http://www.umnovoencontromusical.com/
portuguesas.htm

 

Foi no domingo passado que passei
à casa onde vivia a Mariquinhas,
mas 'stá tudo tão mudado
que não vi em nenhum lado
as tais janelas que tinham tabuinhas.
Do rés-do-chão ao telhado
não vi nada, nada, nada
que pudesse recordar-me a Mariquinhas,
e há um vidro pregado e azulado
onde havia as tabuinhas.

Entrei e onde era a sala agora está
à secretária um sujeito que é lingrinhas,
mas não vi colchas com barra
nem viola, nem guitarra,
nem espreitadelas furtivas das vizinhas.
O tempo cravou a garra
na alma daquela casa
onde as vezes petiscávamos sardinhas
quando em noites de guitarra e de farra
estava alegre a Mariquinhas.

As janelas tão garridas que ficavam
com cortinados de chita às pintinhas
perderam de todo a graça
porque é hoje uma vidraça
com cercadura de lata às voltinhas.
E lá p'ra dentro quem passa
hoje é p'ra ir aos penhores
entregar ao usurário umas coisinhas,
pois chega a esta desgraça toda a graça
da casa da Mariquinhas.

P'ra terem feito da casa o que fizeram
melhor fora que a mandassem p'rás alminhas,
pois ser casa de penhores
o que foi viveiro d'amores
é idéia que não cabe cá nas minhas
Recordações do calor
e das saudades o gosto
que eu vou procurar esquecer
numas ginginhas,
pois dar de beber à dor é o melhor,
já dizia a Mariquinhas.