Uma
parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?
|
Somos
todos irmãos não porque dividamos o mesmo teto e a mesma mesa;
divisamos a mesma espada sobre nossa cabeça.
Em face da imprevisibilidade da vida,
inventamos Deus, que nos protege da bala perdida.
A
arte existe porque a vida não basta!
Mona
Lisa
(Leonardo da Vinci)
Que
a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba.
Aqui
me tenho como não me conheço nem me quis, sem começo
nem fim. Aqui me tenho sem mim, nada lembro, nem sei.
Não
quero saber do sofrimento; quero é felicidade. Não gosto de
fazer lamúrias. Uma vez, discuti feio sobre determinada situação.
Fiquei sozinho em casa, cheio de razão e triste pra cacete. Então,
pra que querer ter sempre razão? Não quero ter razão;
quero é ser feliz!
Que
a força do medo que eu tenho
não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de
tudo o que acredito
não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de
mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio...
Que a música
que eu ouço ao longe
seja linda, ainda que triste...
Que a mulher que
eu amo
seja para sempre amada,
mesmo que distante.
Porque metade de
mim é partida,
mas a outra metade é saudade.
Que as palavras
que eu falo
não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas
como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos.
Porque metade de
mim é o que ouço,
mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha
vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz
que eu mereço.
E que essa tensão
que me corrói por dentro
seja um dia recompensada.
Porque metade de
mim é o que eu penso,
mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão
se afaste
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita
em meu rosto
um doce sorriso,
que me lembro ter dado na infância.
Porque metade de
mim
é a lembrança do que fui;
a outra metade eu não sei.
Que não
seja preciso
mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio
me fale cada vez mais.
Porque metade de
mim é abrigo,
mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos
aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba.
E que ninguém
a tente complicar
porque é preciso simplicidade
para fazê-la florescer.
Porque metade de
mim é platéia
e a outra metade é canção.
E que a minha loucura
seja perdoada.
Porque metade de
mim é amor,
e a outra metade...
|
Estou
na caridade da evolução do meu ser. Quero ser menina, encontro-me
mulher... Quero ser mulher, vejo-me menina...
Saio
do sono como
de uma batalha
travada em
lugar algum...
Do
mesmo modo que te abriste à alegria,
abre-te agora ao sofrimento,
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Mas
essa é a natureza do amor, comparável à do vento: fluido
e arrasador.
Como
dois e dois são quatro,
Sei que a vida vale a pena.
Embora o pão seja caro
E a liberdade pequena,
Como teus olhos são claros
E a tua pele morena
como é azul o oceano
E a lagoa, serena.
Como um tempo de alegria
Por trás do terror me acena
E a noite carrega o dia
No seu colo de açucena,
sei que dois e dois são
quatro,
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena.
|
...
porque nada do que foi feito satisfaz a vida;
nada enche a vida. A vida é viver.
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém,
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão;
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
De
noite, como a luz é pouca, a gente tem impressão de que o
tempo não passa ou pelo menos não escorre como escorre de
dia.
Muito
me criticam por ter feito uma reavaliação da arte de vanguarda.1
Conservadora é a vanguarda,que tem nas mãos todos os prêmios
oficiais. A vanguarda ampliou nosso campo de visão, mas chegou ao
esgotamento.
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não
possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não
possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não
possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
|
Durante
boa parte da vida achei que o poeta, o artista, tinha de mudar a consciência
das pessoas e fazer da sua obra um instrumento dessa mudança. Hoje,
acho que, antes de fazer arte com esta ou aquela finalidade, você
tem que fazer arte de fato.
Sinceramente,
eu sei que não é o presidente que decide tudo, mas o que está
acontecendo aí não é por acaso. Tem coisas que surpreenderam
a todo mundo, inclusive a mim, que é a corrupção. Aí,
realmente, com essa eu não contava. Eu contava com um fracasso administrativo,
agora, com roubo, realmente, eu não contava.
Eu
não decido o que vou escrever; eu decido as minhas contas.
No
Dia do Trabalho ninguém trabalha!
Em
minha casa não havia livros; só o X-9.2
Em
1949, estava chegando a São Luís [Maranhão]
o
Movimento de 1922!3
Promessa
depende quem promete.
Nós
somos a nossa história. Somos o que nascemos, o que comemos, o que
vivemos, o que inventamos... Nós somos isso.
Eu
não ando de avião!
Não Há
Vagas
O preço do feijão
não cabe no poema.
O preço do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema
o gás, a luz, o telefone,
a sonegação do leite,
da carne, do açúcar, do pão.
O funcionário
público
não cabe no poema,
com seu salário de fome
sua vida fechada em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário que esmerila
seu dia de aço e carvão
nas oficinas escuras,
porque o poema,
senhores,
está fechado:
'não há vagas.'
Só cabem
no poema
o homem sem estômago,
a mulher de nuvens,
a fruta sem preço,
O poema, senhores,
não fede nem cheira.
|
Todos
nós escrevemos para o outro.
Escrevo
sem planejamento, à medida que a vida me surpreende e me comove.
É
impossível definir o que é poesia. Para mim, a poesia sempre
foi uma grande aventura.
A
poesia nasce de repente; não faz barulho. Pode acontecer no meio
da rua e ninguém vai perceber.
A
poesia chega à hora que ela quer; não é o poeta que
decide. A poesia é um estado da alma. Todas as possibilidades passam
a existir diante da página em branco. Então, começa
a nascer uma coisa que poderia não ter nascido, que poderia ter nascido
diferente...
A
poesia é mágica!
Exílio...
Perplexidade... Indagação sem fim... Sem sentido... Viver
ou sobreviver?
Eu
não posso castigar quem não faz melhor porque não pode.
Quem quer fazer poesia e não pode não merece castigo. Eu jamais
fiz uma crítica implacável contra qualquer artista. Eu sempre
fui contra qualquer crítica brutal, esmagadora, destruidora.
Ferreira
Gullar
A
vida é acaso e probabilidade.
O
poema é uma aventura que não se sabe aonde vai chegar. Ele
nasce das circunstâncias.
A
vida é inventada, não é só o poema. Nós
nos inventamos.
As
coisas são feitas por acaso; depois, se tornam necessárias
em nossa vida, e acabam correspondendo às nossas necessidades.
A
poesia não pode ser feita matematicamente.4
Solidariedade!
(Fatorial de Solidariedade)
A
poesia é um fenômeno cultural, espiritual, como outro qualquer.
Não
faço planos. Vivo o presente e invento a cada momento o futuro.
Alguns
poetas tiveram grande importância em minha formação,
entre eles Rilke, Eliot, Drummond, Rimbaud e Murilo Mendes.
Nova Canção
do Exílio
Minha amada tem palmeiras
Onde cantam passarinhos,
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos.
Ao brincarmos sós à noite
nem me dou conta de mim:
seu corpo branco na noite
luze mais do que o jasmim.
Minha amada tem palmeiras
tem regatos tem cascata,
e as aves que ali gorjeiam
são como flautas de prata.
Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos,
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos,
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos.
|
A
poesia é o presente.
A
poesia,
Quando chega,
Não respeita nada.
E
promete incendiar o País.
Estou
convencido de que a gente inventa a fala a cada momento, a cada pergunta
que nos fazem ou idéia que queremos comunicar.
Para internar uma pessoa antes
da aprovação da lei federal 10.216 (aprovada em 2001),
a família precisaria pedir autorização de um juiz.
Felizmente, isto foi retirado do texto final. Imagine o que é ter
em casa um garoto em estado delirante – às vezes, falando sem
parar da noite até o dia seguinte. Os pais tentam dar remédio,
tentam conversar; nada funciona. Nesta situação, o único
recurso é internar. Você sente que a pessoa está saindo
do controle, e pode fazer uma loucura qualquer. Imagine ter de aguardar
autorização de um juiz para internar um paciente numa situação
de emergência. Que juiz? Aquele que nunca encontramos na justiça
eficiente que temos? Imagine o desastre que isto seria... Ninguém
agüenta uma pessoa em estado de delírio dentro de casa.
A raiz ideológica da psiquiatria
democrática é a idéia de que não existe doença.
A sociedade é que é culpada porque é burguesa. Quando
eu estava exilado em Buenos Aires, nos anos 70, fui conversar com os médicos
no hospital onde meu filho Paulo (hoje com 50 anos) havia sido internado
depois de um surto. Uma médica veio conversar comigo e disse que
o problema não era do meu filho. Era da família e da sociedade.
Disse para ela: 'então me interna.'
Aos
oitenta anos, não há diferença. A vida segue, independentemente
de idade.
Esse
é o meu lado maluco! Eu queria ir além do que é possível
ir; sempre busquei o impossível! Eu queria que a linguagem nascesse
junto com o poema! Isto é uma coisa difícil!
O
que faz eu saber que tenho oitenta anos de idade são as perdas, os
amigos, as pessoas queridas... Só com oitenta anos a gente acumula
tanta perda!
Eu
escrevo pouco sobre Literatura. Escrevo mais sobre reflexões, convívios,
descobertas. Teoria sobre Literatura não me interessa; eu não
quero saber disso.
Eu
não escrevo por encomenda.
Que
a luta não esmorece
agora
que o camponês,
cansado
de fazer prece
e
de votar em burguês,
se
ergue contra a pobreza
e
outra voz já não escuta,
só
a que o chama pra luta
–
voz da Liga Camponesa.
Naquela terra querida,
que
era sua e que não era,
onde
sonhara com a vida,
mas
nunca viver pudera,
ia
morrer sem comida
aquele
de cuja lida
tanta
comida nascera.
Aparecida,
esta moça
cuja
história vou contar,
não
teve glória nem fama
de
que se possa falar.
Não
teve nome distinto:
criança
brincou na lama,
fez-se
moça sem ter cama,
nasceu
na Praia do Pinto,
morreu
no mesmo lugar.
Tio
Sam também chegou
todo
de fraque e cartola.
Virou-se pra Zé Molesta
e lhe disse: 'Tome um dólar,
que brasileiro só presta
para receber esmola.'
Está acabada a disputa,
meta no saco a viola.
Zé Molesta olhou pra ele,
lhe
disse: 'Não quero não.
Não
vim lhe pedir dinheiro
mas
lhe dar uma lição.
Não
pense que com seu dólar
compra
minha opinião,
que
eu não me chamo Lacerda
nem
vivo de exploração.'
A
arte quer ir além da razão.
No
processo do movimento concretista, eu, que sempre fui uma pessoa muito crítica
– e autocrítica – percebi que aquilo, que se justificava
pelo momento histórico, tinha se esgotado, e que caminhar na mesma
direção seria destruir a poesia mesmo.
O
homem não faz poesia para sair da vida; ele faz poesia para ter coragem
de viver. Além disso, há o fato de que o homem nasce para
morrer. Então, nada tem sentido. E por isso a religião existe,
porque ela é a resposta para isso, porque ninguém agüenta...
Em
uma certa altura da sua vida, quando você leva uma porção
de cacetadas, é que a morte passa a existir, porque, no começo,
a morte é apenas ficção. Você sabe que se morre,
mas você não pensa que você vai morrer. Mas, no momento
que ela passa a existir, no momento que morre seu filho, aí é
verdade... Na hora que morre o seu amigo querido, aquele que lutou com você,
que era seu companheiro (ou sua companheira) e que não existe mais,
aí...
A
morte é um tema permanente em minha poesia, e eu sempre achei insuportável
ter que morrer. A minha poesia está cheia disso, dessa luta com a
morte.
Talvez,
o homem seja constituído de maneira a não conhecer a realidade
toda de uma vez, porque, se fosse assim, acho que ele não agüentava...
A
verdade absoluta não existe.
Não
é possível imaginar que algum dia era nada, mas é fascinante
imaginar que cada um de nós faça parte dessa coisa extraordinária
que é o Universo.
Cada
poema, que nasce de uma experiência, de uma emoção,
de uma descoberta, tem que gerar sua própria forma.
Eu
sempre fiz poesia a partir da vida, a partir da experiência.
As
pêras, no prato,
apodrecem.
O relógio, sobre elas,
mede a sua morte.
Se
você não chegar à emoção, você não
chegará à poesia.
A
Academia [Brasileira
de Letras]
é anacrônica, é. Não serve para nada. Para que
serve a Academia? A Academia não tem função alguma.
É uma instituição meramente consagratória. Mas
aí ela peca. Porque ela consagra, muitas vezes, quem não tem
razão de ser consagrado.
O
Conselho Federal de Cultura é outra inutilidade. Veja vem, o Conselho
não 'aconselha'! Pode até aconselhar, mas o Ministro [da
Cultura] não ouve! Então, serve para quê?
Não serve para nada.
O
poema é um processo de transformação da linguagem.
É o local onde este processo se dá. É como uma caldeira,
na siderurgia, onde se bota cascalho e vira metal. E o local onde a expressão
'filho-da-puta' vira poesia.
A
única função da poesia é comover as pessoas,
e não apenas no sentido de despertar emoções. Porque
a poesia lida com o teu lado de vida verdadeiro, com o teu lado de existência:
com o amor, com o afeto, com a morte, com a perda. E isto não há
computador que resolva. Porque o cara pode estar lá no computador
escrevendo, mas se a mulher que ele ama for embora, ele endoida, e vai sofrer
da mesma forma que sofria o cara que escrevia com pena de pato. Se a vida
do cara não tem alegria, não se preenche, ele sofre, independente
da televisão estar botando festa sem parar. Sofre até mais.
A poesia é permanente porque lida com o que é permanente no
ser humano. Há muita festa na televisão. Hoje, essa multidão
que vai ver o Lulu Santos — centenas de pessoas pulando e berrando,
parece coisa primitiva, primária. Nem a música que o cara
está tocando está sendo ouvida. É só pular e
gritar. Isto é para passar o tempo, é uma forma da juventude
se enganar, se atordoar, e isto tem muito a ver com os tóxicos também.
Não está desligado. Esta música, esta histeria, esta
gritaria, é tudo um delírio. É tudo junto. E a verdade
é que um garoto que agora tem 17 anos, daqui a pouco terá
37, depois 47. E aí? Então, se o cara não se enriquece
com o teatro, com a poesia, com o romance, com a música, que dão
o que a realidade não dá – e empobrece a arte com banalidades
– com essa arte de massa, aí é o fim. Porque a arte
de massa é o contrário da arte: é a banalidade. Quando
a arte procura criar um mundo permanente, um mundo da fantasia, um outro
mundo para o homem, a arte de massa banaliza, e isto é conseqüentemente
a banalização do ser humano. Alguns podem dizer: 'Ah, esses
caras que ficam pensando em emoção são uns babacas,
uns velhos'. Mas eles vão descobrir, mais tarde, que a vida está
esperando por eles na esquina. E, de repente, eles se sentem uns bostas
que não têm onde se apoiar. E aí vem aquela pergunta
de Verlaine: 'O que fizeste da tua juventude?' Eu não estou dizendo
que o cara deva ficar encucado, lendo o tempo todo, mas estou dando uma
opinião crítica sobre esta ilusão que supõe
que a poesia acabou porque um pessoal vive tocando guitarra e pulando. No
meio disso, no entanto, tem muito jovem que está noutra. E, a cada
dia que passa, tem mais jovens que estão noutra, por que aquilo é
uma minoria. Parece maioria porque se colocam 20 mil pessoas berrando no
Maracanãzinho. Mas o que são 20 mil em uma Cidade de 8 milhões
de pessoas? Não é nada. E mesmo que você multiplique
isso pela televisão e dê 1 milhão, continua minoria...
A
Literatura
e a arte são mundos fantásticos, são criações
extraordinárias do ser humano. O 'mundo' que o homem criou com a
sua fantasia foi para ele 'habitar', porque a Natureza é freqüentemente
burocrática e assustadora. A Natureza é boa quando você
está na praia. Mas, na verdade, ela é impenetrável,
e o homem só se sente bem no universo humano. Por isto, ele criou
a cultura, a arte, a linguagem, os significados e até a religião.
A religião é uma das mais fantásticas criações
do ser humano. Primeiro porque ela é a resposta à Pergunta
Fundamental, ao problema do Sentido da Existência. Ela é a
resposta, pois a Filosofia não tem resposta pra isto.
É
uma coisa tão poderosa essa fantasia do ser humano criando a religião
que gerou obras de arte fantásticas. É só você
imaginar todas as catedrais góticas, românicas, barrocas, toda
uma arquitetura, toda uma escultura, espalhadas pelo mundo inteiro e criadas
pela religião, pela idéia de que existe um Deus. É
uma coisa fantástica! E veja bem: se Deus não existe, é
mais fantástico ainda! Porque aí é piração
total! Mas isto é o mundo humano, que o ser humano criou em cima
da Natureza. E ao mesmo tempo um rio cheio de significados. Porque o homem
quando ergue uma catedral, a quantidade de elementos simbólicos que
potencialmente existem ali nem ele sabe, e que depois vai se multiplicando
e se tornando indecifrável, e se reproduzindo na imaginação
de outros homens, mulheres e crianças.
O
Socialismo é uma tentativa de o homem criar a sociedade justa. Porque
o homem não tolera injustiça. É próprio do ser
humano não aceitar a injustiça, a desigualdade. Você
pode até ser injusto, mas você quer justificar o seu ato porque
não aceita ser injusto. Então, o Socialismo, como o Comunismo,
é uma tentativa de chegar a esta sociedade justa. Porque o Capitalismo
é uma força da Natureza: ele fecunda e destrói. Gera
riqueza mas não gera igualdade. Então, morra quem morrer,
porque ele vai levando tudo de roldão que nem um rio caudaloso. O
que o Socialismo pretende é que o processo social seja gerador de
riquezas, mas sem injustiça. E a divisão da riqueza é
a igualdade. Logo, todas as concepções que compõem
os ideários socialista e comunista visam estabelecer a eqüidade
da distribuição da riqueza, acabar com a injustiça.
Porém, o que a história mostrou foi que, ao por em prática
essa idéia, não deu certo. E por "n" razões
que não cabe analisar aqui. Mas os problemas surgidos na tentativa
de por em prática o Socialismo, de chegar à sociedade comunista,
à sociedade sem classes, foram de tal ordem, que inviabilizaram sua
realização. E você poderá dizer: 'não,
mas é porque o caminho tomado foi errado, ou porque se sectarizou,
ou por isto ou por aquilo'. Mas a verdade é que a vida é muito
complexa para ser planejada inteiramente. O que a experiência mostrou
na União Soviética e nos outros países socialistas
é que, quando você planeja, tende a enrijecer, e quando você
tira os meios de produção da mão da iniciativa individual
e põe na mão do Estado, ele tem que planejar tudo, tem que
produzir tudo, então, ele tem que virar uma espécie de entidade
onisciente que sabe tudo... E aí chegamos ao centro da contradição:
se o Marxismo produz automóveis demais, irá ter prejuízo,
desempregar gente, e aí há um desastre porque produziu mais
do que o mercado poderia consumir. Mas aí você planeja e produz
ou de mais ou de menos, e começa a escassear, como ocorria na União
Soviética. Eles produziam, por exemplo, presunto de qualidade 'x'.
Você conseguia comprar este presunto uma vez na sua vida e nunca mais
achava de novo, porque sumia de tudo que é lugar. E isto era no calçado,
na roupa, no eletrodoméstico, e você terminava empobrecendo.
Se você planeja a produção de paletó em escala,
você produz tamanhos pequeno, médio e grande. Mas aí
tem gente magra demais, gorda demais, e você encontra na rua um cara
com paletó pequeno demais, outro com um enorme. Isto sem contar que
não tem a sofisticação da roupa ocidental, e outras
coisas. Estes exemplos são só para não entrar em questões
mais complexas da Economia. Então, o que a experiência demonstrou
é que o projeto de planejamento centralizado não dá
certo. E sem contar que no plano cultural isto gera coisas absurdas. Eu
conversei com um poeta, lá (em Moscou) sobre o problema da revista
literária, e questionei se um poeta jovem, que fizesse uma poesia
diferente, levasse seus poemas para revista literária — que
é do Estado — se eles publicariam? Ele disse: 'não,
não publicam, porque quem dirige a revista do Estado não é
um grande poeta, mas um escritor que preferiu ser diretor de revista do
que ser poeta'. Aí ele me perguntou: 'Lá na sua terra é
o Drummond que dirige os suplementos literários ou grandes revistas,
não é?' 'Aqui é mais grave' – ele falou –
' porque o cara que está dirigindo a revista é membro do Partido,
para poder dirigi-la. Se ele publicar um poema literariamente subversivo
ele é cobrado e destituído do cargo.' Então, 'a priori',
ele não aceita mudança nenhuma. Tudo que é diferente
ele não publica. Logo, a Literatura pára. E isto se estende
à arte e por aí afora porque começam a existir interesses
partidários dentro do processo cultural. O cara quer defender o cargo
dele...
O
esforço todo do poeta é revelar que a palavra é vida.