FERNANDO PESSOA
(Reflexões em Prosa)

 

 

 

Fernando Pessoa

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Objetivo do Estudo

 

 

 

O poeta e crítico brasileiro Frederico Barbosa (Recife, Pernambuco, 20 de fevereiro de 1961) declarou que Fernando Pessoa foi o enigma em pessoa. E este enigma aparece tanto em sua poesia quanto em sua prosa – esta última pouco conhecida.

 

Este estudo inacabado teve por objetivo examinar e colecionar o que Fernando Pessoa escreveu (como Fernando Pessoa ou como um dos seus heterônimos), nomeadamente em prosa, e apresentar para reflexão alguns fragmentos destas meditações, como, por exemplo, este: Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.

 

Entretanto, não posso deixar de advertir: ler tão-só as linhas, em Fernando Pessoa, é ler pouco ou não ler nada; ler (n)as entrelinhas é preciso. Por exemplo: ver nem sempre é ver, e ouvir nem sempre é ouvir; às vezes, ver é Ver, e ouvir é Ouvir. Em Pessoa, o Segredo, o Mistério e a Tradição estão em toda parte, como no poema Eros e Psique, que o Poeta – que nunca foi um fingidor – terminou assim:

 

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

 

 

 

Androginia Pictural

 

 

 

 

Breve Biografia

 

 

 

Fernando Pessoa

Fernando Pessoa

 

 

 

Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de junho de 1888 – Lisboa, 30 de novembro de 1935), mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta e escritor português.

 

É considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Luís de Camões. O professor, humanista e crítico literário estadunidense Harold Bloom (Nova Iorque, 11 de julho de 1930) considerou a sua obra um legado da língua portuguesa ao mundo.

 

Por ter crescido na África do Sul, para onde foi aos sete anos em virtude do casamento de sua mãe, Pessoa aprendeu a língua inglesa. Das quatro obras que publicou em vida, três são na língua inglesa. Fernando Pessoa dedicou-se também a traduções desse idioma.

 

Ao longo da vida trabalhou em várias firmas como correspondente comercial. Foi também empresário, editor, crítico literário, ativista político, tradutor, jornalista, inventor, publicitário e publicista, ao mesmo tempo em que produzia a sua obra literária. Como poeta, desdobrou-se em múltiplas personalidades conhecidas como heterônimos, objeto da maior parte dos estudos sobre sua vida e sua obra. Centro irradiador da heteronímia, autodenominou-se um drama em gente.

 

Fernando Pessoa morreu de cirrose hepática aos 47 anos, na cidade onde nasceu. Sua última frase foi escrita em Inglês: I don't know what tomorrow will bring… Não sei o que o amanhã trará...

 

 

 

 

Reflexões em Prosa

 

 

 

Fernando Pessoa

 

 

 

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra, todos os dias são meus.

 

Tenho pensamentos que, se conseguisse exprimi-los e dar-lhes vida, acrescentariam uma nova luz às estrelas, uma nova beleza ao mundo e um grande amor ao coração dos homens.

 

Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação. O meu espírito vive constantemente no estudo e no cuidado da Verdade, e no escrúpulo de deixar – quando eu despir a veste que me liga a este mundo uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade.

 

Asseguro, agora, e sempre assegurarei, que o homem ficou aquém do Mistério Universal unicamente devido à relutância de pensar com profundidade.

 

Tudo é encontrar qualquer coisa. Mesmo perder é achar o estado de ter essa coisa perdida. Nada se perde; só se encontra qualquer coisa. Há no fundo deste poço, como na fábula, a Verdade.

 

Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário. Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas. Se achar que precisa voltar, volte! Se perceber que precisa seguir, siga! Se estiver tudo errado, comece novamente. Se estiver tudo certo, continue. Se sentir saudades, mate-a. Se perder um amor, não se perca! Se o achar, segure-o!

 

O amor do corpo pelo corpo morre com o corpo; o amor do Espírito pelo Espírito, no Espírito dura sempre.

 

Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final... Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos; o que importa é deixar no passado os momentos da vida que já se acabaram.

 

O que passou não voltará. Não podemos ser eternamente meninos, adolescentes tardios, filhos que se sentem culpados ou rancorosos com os pais, amantes que revivem noite e dia uma ligação com quem já foi embora e não tem a menor intenção de voltar. As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas realmente possam ir embora... Por isso, é tão importante (por mais doloroso que seja!) destruir recordações, mudar de casa, dar muitas coisas para orfanatos, vender ou doar os livros que tem.

 

Tudo neste mundo visível é uma manifestação do mundo invisível, do que está acontecendo em nosso coração... e o desfazer-se de certas lembranças significa também abrir espaço para que outras tomem o seu lugar.

 

Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas; portanto, às vezes ganhamos, e às vezes perdemos.

 

 

 

 

 

O amor romântico é como um traje, que, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e, em breve, sob a veste do ideal que formamos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em que o vestimos. O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceite desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura, por eles vestida.

 

O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto.

 

Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.

 

O verdadeiro sábio é aquele que assim se dispõe – os acontecimentos exteriores o alterem minimamente. Para isso, precisa couraçar-se cercando-se de realidades mais próximas de si do que os fatos, e através das quais os fatos, alterados para de acordo com elas, lhe chegam.

 

Sábio é quem monotoniza a existência, pois, então, cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão. Para o meu cozinheiro monótono, uma cena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a Terra não encontra, de cinco mil milhas em diante, novidade, porque encontra só coisas novas; outra vez a novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstrato de novidade ficou no mar com a segunda delas.

 

Agir – eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se não o fizerem ali?

 

A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar; é saber viver. Para mim, pensar é viver; e sentir não é mais que o alimento de pensar.

 

Querer não é poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há de poder, porque se perde em querer.

 

O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.

 

Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso, toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem sempre todas as qualidades de desalento com o presente que os levaram à luta que lhes deu a vitória. Ficam satisfeitos, e satisfeito só pode estar aquele que se conforma, que não tem a mentalidade do vencedor. Vence só quem nunca consegue. Só é forte quem desanima sempre. O melhor e o mais púrpura é abdicar. O Império Supremo é o do Imperador que abdica de toda a vida normal, dos outros homens, em que o cuidado da supremacia não pesa como um fardo de jóias.

 

Pacto estabelecido entre Alexander Search (um heterônimo da juventude de Fernando Pessoa) e Jacob Satanás: Nunca desistir ou recuar no propósito de fazer o bem à Humanidade. Nunca escrever coisas, sensuais ou de outra forma más, que possam prejudicar ou fazer mal aos que as leiam. Nunca esquecer, ao atacar a religião em nome da verdade, que a religião dificilmente pode ser substituída, e que o pobre homem chora na escuridão. Nunca esquecer o sofrimento e a dor dos homens.

 

Considero um sonho como considero uma sombra. Uma sombra é real, mas é menos real que uma pedra. Um sonho é real senão não era sonho mas é menos real que uma coisa. Ser real é ser assim.

 

Eu não tenho teorias. Eu não tenho filosofia. Eu vejo, mas não sei nada. Chamo a uma pedra uma pedra para a distinguir de uma flor ou de uma árvore, enfim, de tudo quanto não seja pedra. Ora, cada pedra é diferente de outra pedra, mas não é por não ser pedra: é por ter outro tamanho e outro peso e outra forma e outra cor. E também por ser outra coisa. Chamo a uma pedra e a outra pedra – ambas pedras porque são parecidas uma com a outra naquelas coisas que fazem a gente chamar pedra a uma pedra. Mas, na verdade, a gente devia dar a cada pedra um nome diferente e próprio, como se faz aos homens; isso não se faz porque seria impossível arranjar tanta palavra, mas não porque fosse erro...

 

A única coisa boa que há em qualquer pessoa é o que ela não sabe.

 

Nós não podemos viver sem idéias abstratas, porque sem elas não podemos pensar. O que devemos é furtar-nos a atribuir-lhes uma realidade que não derive da matéria de onde as extraímos. Assim acontece aos deuses. As idéias abstratas não têm realidade verdadeira: têm, porém, uma realidade humana, relativa apenas ao lugar que o animal homem tem na Terra. Os deuses pertencem à categoria das abstrações, no que respeita à sua relação com a realidade; mas não pertencem a essa categoria como abstrações, porque o não são. Como as idéias abstratas nos servem para nos conduzirmos entre as coisas, os deuses servem-nos também para nos conduzirmos entre homens. Os deuses são, portanto, reais e irreais ao mesmo tempo. São irreais porque não são realidades; mas são reais porque são abstrações concretizadas. Uma abstração concretizada passa a ser pragmaticamente real; uma abstração não-concretizada não é real mesmo pragmaticamente. Platão, erigindo em pessoas abstratas as idéias, seguiu o velho processo pagão da criação de deuses; colocou, porém, os seus deuses longe demais. Uma idéia só se torna um Deus quando é devolvida à concreção. Passa, então, a ser uma força da Natureza. Isso é um Deus. Se isto é uma realidade ou não, não sei. Pessoalmente, creio na existência dos deuses; creio no seu número infinito, na possibilidade de o homem ascender a Deus. O criador de civilização é uma força da Natureza; é, portanto, um Deus ou um semi-deus.

 

Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo – que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (exceto a Maçonaria anglo-saxônica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquiteto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação direta com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto à «Iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma.

 

A Consciência é, para nós, incognoscível; só podemos saber que Ela é Consciência. Mas não é só isto. Não pode ser conhecida; não há que haver conhecimento dela. Aquilo a que se chama «conhecimento» é uma coisa que só se pode ter do mundo exterior. Conhecer uma coisa é apreendê-la sob quantos aspectos ela comporta sob os nossos sentidos. Não pode, portanto, haver conhecimento da Consciência; porque, mesmo que conhecimento signifique propriamente consciência, não há consciência da Consciência, por muito que pareça que a há. A Consciência é.

 

O mundo-exterior é real como nos é dado. A diferença que há entre a minha visão do mundo e a dos outros é uma diferença de sistemas nervosos. Os sistemas nervosos são partes dessa realidade exterior. A ciência estuda – não as leis fundamentais do mundo-exterior ou Realidade, porque não há leis fundamentais do mundo-exterior: ela é a sua própria lei mas as normas segundo as quais os fenômenos se manifestam, isto, não com o fim de saber, mas com o fim de utilizar para nosso conforto e proveito os «conhecimentos» adquiridos.

 

Toda a Filosofia labora num p[rimeir]o erro que consiste fundamentalmente em atribuir à Matéria qualidades que nos vêm de analisar ou «ter consciência» do nosso espírito, e num segundo erro maior que consiste em atribuir ao (nosso) espírito, à Consciência em geral, qualidades que provêm de termos cada um um psiquismo; o que afinal depende de termos, cada um, um corpo. A Filosofia é um antropomorfismo em todos os sistemas; atribuímos à Natureza as qualidades que nós temos – ter um todo, como nós etc. E a espontânea atitude poética de atribuir sentimentos aos rios, às pedras etc. provém precisamente do mesmo antropomorfismo fundamental do nosso espírito.

 

Quanto mais a evolução se complica, mais complexo e nítido vai sendo o nosso senso da Realidade. Ela é cada vez mais real, mais material. Se a «espiritualidade» importa um apagamento do senso das coisas, nada há tão espiritual como uma ameba, e um pargo ou uma pescada têm vantagens espirituais sobre o homem. O espiritualismo e o idealismo são estados regressivos da mentalidade humana; como que saudades de épocas pré-humanas do cérebro em que o exterior era menos complexo. A tendência espiritualista ou idealista é uma incapacidade de arcar de frente com a complexidade da Natureza. Querer simplificar a Natureza é querer ter dela um sentido de peixe ou de invertebrado mesmo.

 

Querer encontrar às coisas um íntimo sentido, uma «explicação» qualquer é, no fundo, querer simplificá-las, querer pô-las em um nível em que caiam sob um sentido só – o que aconteceu em épocas idas a bichos nossos antepassados pouco abundantes de sentidos.

 

A função própria da inteligência é servir à vida. O emprego da inteligência, em filosofar, só pode ter, pois, legitimamente, um qualquer sentido utilitário. (Querer descobrir a verdade pode ter um fim utilitário no conceito religioso de querer saber qual deve ser a nossa conduta, para obter o paraíso, por exemplo). A Ciência deve servir à vida. A arte tem por fim repousar o espírito. É o sono das civilizações. A Filosofia entra na categoria da arte. A Filosofia foi primeiro uma «ciência»: tinha por fim descobrir a verdade para o fim utilitário de nos governarmos na vida; porque, se se julga que há uma vida futura, com castigos e recompensas, não é por certo pouco importante saber-se o que se deve fazer para evitar uns e merecer outros. Hoje, a Filosofia deve passar a ser uma arte – a arte de construir sistemas do Universo, sem outro fim que o de entreter e distrair, publicando belos sistemas.

 

O essencial na arte é exprimir; o que é expresso não interessa... A arte é auto-expressão, fazendo por ser absoluta... A obra de arte é primeiro 0bra, depois obra de arte.

 

O espírito, à medida que aumenta a sua atividade, busca novos modos de repouso. A arte é o mais elevado deles.

 

Todas as manifestações do espírito humano passam por três períodos. No primeiro, elas, rudimentares então, são um modo de procurar repouso e variedade. No segundo, são um modo de procurar repouso ainda, mas buscando-o não já pelo sossego dos sentidos, senão que pelo sossego dos sentimentos. No terceiro período, procura-se ainda obter repouso, mas, então, o processo é procurar sossegar a inteligência. O espírito humano evolui do simples para o complexo, e é preciso notar que o clássico é que é o complexo e o romântico é que é o simples. Na arte, exemplificando: o primitivo, que vive só de sentidos ou predominantemente dos sentidos, busca com a sua arte rudimentar, repousar da vida entretendo os sentidos com cores vivas, ruídos violentos, movimentos excitantes; o homem que avançou mais um passo, e é já civilizado, procura, porque criou sentimentos definidos, sossegar esses sentimentos, entretê-los, e entretê-los é dar expressão ao seu conteúdo; o homem chegado ao limite do seu desenvolvimento criou já um estado definido de inteligência, e esse procura sossegar a sua inteligência não já dando expressão a sentimentos ou satisfazendo as rudimentares exigências dos sentidos. No terceiro período atingiu-se a plena abstração, isto é, o poder pleno de medir uma coisa intelectualmente.

 

O pensamento é um ato que não se socializa.

 

O mundo tem o usufruto da realidade que pertence ao Ser.

 

Com os gregos nasceu a ciência propriamente dita – o espírito científico, a mentalidade superior. Antes disso bastava, ao fazer Filosofia, criar um sistema que não se contradissesse a si próprio; depois passou a ser preciso criar um sistema que não contradissesse os fatos. Os fatos nasceram na Grécia. Só na Grécia é que a Filosofia começou propriamente a separar-se da religião – a não buscar, portanto, satisfazer os nossos sentimentos, mas a noção das coisas.

 

Deus é o existirmos...

 

Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também.

 

 

O Buraco Negro do Não-sonho

 

A minha curiosidade por todas as coisas, ligada à minha curiosidade por mim próprio, conduz à tentativa de entender a minha personalidade.

 

Considerar a nossa maior angústia como um incidente sem importância, não só na vida do Universo, mas da nossa mesma alma, é o princípio da sabedoria.

 

O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte do desenvolvimento superior dela; em segui-la, pois, mimeticamente com uma insubordinação inconsciente e feliz.

 

Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu. Sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir – é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.

 

Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a idéia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos que amamos. Isso é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma idéia nossa.

 

Ver e ouvir são as únicas coisas nobres que a vida contém. Os outros sentidos são plebeus e carnais. A única aristocracia é nunca tocar.

 

O pensamento pode ter elevação sem ter elegância, e, na proporção em que não tiver elegância, perderá a ação sobre os outros. A força sem a destreza é uma simples massa.

 

Tudo o que existe existe, talvez, porque outra coisa existe. Nada é, tudo coexiste: talvez assim seja certo.

 

A vida é para nós o que concebemos dela. Para o rústico, cujo campo lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César, cujo império lhe ainda é pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais do que as nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida.

 

Tudo, em nós, está em nosso conceito do mundo; modificar o nosso conceito do mundo é modificar o mundo para nós; isto é, é modificar o mundo, pois ele nunca será, para nós, senão o que é para nós.

 

Pode ser que nos guie uma ilusão; a consciência, porém, é que nos não guia.

 

O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada sempre que possível, dos interesses alheios.

 

 

 

Para realizar um sonho é preciso esquecê-lo, distrair dele a atenção. Por isso, realizar é não realizar.

 

 

 

Despreza tudo, mas de modo que o desprezar te não incomode. Não te julgues superior ao desprezares. A arte do desprezo nobre está nisso.

 

O gênio, o crime e a loucura provêm, por igual, de uma anormalidade: representam, de diferentes maneiras, uma inadaptabilidade ao meio.

 

Renúncia é libertação. Não querer é poder.

 

Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer.

 

A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo.

 

A única atitude intelectual digna de uma criatura superior é a de uma calma e fria compaixão por tudo quanto não é ele próprio. Não que essa atitude tenha o mínimo cunho de justa e verdadeira; mas é tão invejável que é preciso tê-la.

 

A celebridade é uma contradição. Parecendo que dá valor e força às criaturas, apenas as desvaloriza e enfraquece.

 

O fim da arte inferior é agradar; o fim da arte média é elevar; o fim da arte superior é libertar.

 

Tudo quanto vive vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se torna outra coisa; constantemente se nega, se furta à vida.

 

A experiência direta é o subterfúgio ou o esconderijo daqueles que são desprovidos de imaginação. Os homens de ação são os escravos dos homens de entendimento. As coisas não valem senão na interpretação delas. Uns, pois, criam coisas para que os outros, transmudando-as em significação, as tornem vidas. Narrar é criar, pois viver é apenas ser vivido.

 

Adoramos a perfeição porque não a podemos ter; repugna-la-íamos, se a tivéssemos. O perfeito é desumano porque o humano é imperfeito.

 

Os homens são fáceis de afastar. Basta não nos aproximarmos.

 

Nenhuma idéia brilhante consegue entrar em circulação, se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento coletivo é estúpido porque é coletivo: nada passa às barreiras do coletivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.

 

Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar porque é extrair de uma coisa a sua essência.

 

Outras vezes ouço passar o vento... E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

 

 

 

 

Se tenho de sonhar, porque não os meus próprios sonhos?

 

Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite, única coisa do tamanho do Universo, torna-me, corpo e alma, parte do teu corpo; que eu me perca em ser mera treva e me torne noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem Sol esperado que ilumine do futuro.

 

O verdadeiro cadáver não é o corpo, mas aquilo que deixou de viver...

 

Pedras no caminho? Guardo todas. Um dia vou construir um castelo...

 

A existência do dom de profecia é afirmada por muitos e negada por muitos. Na maioria dos casos, ou a linguagem profética é tão obscura que dela se pode fazer aplicação a qualquer fato, ou a abundância de pormenores é tão grande que dificilmente se encontrará um fato a que um ou outro dos pormenores se não possa ajustar. De sorte que o problema fundamental fica na mesma. Os que afirmam a existência do dom profético apontam o fato justificativo; os que lhe negam a existência apontam que qualquer fato, ainda que fosse contrário do que se deu, serviria igualmente, e, portanto, com igual inutilidade, de justificação. Há, contudo, profecias que são simples e claras, como a célebre quadra das Centúrias de Nostradamo, em que, com mais de dois séculos de antecedência, o advento de Napoleão se indica e o seu caráter se define. É a quadra que começa: «Um imperador nascerá ao pé de Itália» — Un Empereur naistra prés d'Italie... Estas profecias que são claras versam em geral fatos: são como pequenos artigos de pequena enciclopédia, resumindo a história às avessas, isto é, antes de ela existir.1 Há, porém, um caso curioso de profecia clara, que contém, com vinte e dois anos de antecipação, não a indicação de fatos futuros, mas o comentário justo e preciso deles, como se os supusesse conhecidos. E esse vaticínio tem ainda de mais curioso o não ser, suponho, de um profissional da profecia. No jornal italiano Avanti, de 21 de janeiro de 1913, vem inserto um artigo em que se lê o seguinte, que peço ao leitor que, palavra a palavra, acompanhe e medite:

«Estamos na presença de uma Itália nacionalista, conservadora, clerical, que se propõe fazer da espada a sua lei, e do exército a escola da nação. Previmos esta perversão moral: não nos surpreende. Erram porém os que pensam que esta preponderância do militarismo é sinal de força. As nações fortes não têm que descer à espécie de carnaval estúpido a que os italianos hoje estão entregues: as nações fortes têm o sentido das proporções. A Itália nacionalista e militarista mostra que não tem esse sentido. E assim sucede que uma reles guerra de conquista é celebrada como se fosse um triunfo romano..»

Ignoro a que propósito imediato se escreveram essas linhas. Ignoro e não importa. São elas o mais justo, o mais claro e o mais cruel comentário de quanto hoje, vinte e dois anos depois, se está passando na Itália, ou, melhor, com a Itália. Ao jornalista casual coube um lampejo de verdadeiro espírito profético. Felizmente o artigo é assinado, de sorte que não falta o nome, nem, portanto, a honra ao iluminado dessa súbita inspiração. O autor do artigo do Avanti é o Sr. Benito Mussolini.2

 

Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada…

 

Não há normas. Todos os homens são exceção a uma regra que não existe.

 

Nunca ninguém se perdeu. Tudo é Verdade e Caminho.

 

Sentir é criar. Sentir é pensar sem idéias, e, por isso, sentir é compreender, visto que o Universo não tem idéias.

 

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.

 

Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.

 

A dupla essência, masculina e feminina, de Deus – a Cruz. O mundo gerado, a Rosa, crucificado em Deus.

 

Deus é o sentido para onde tendem todas as inteligências que governam este mundo contra a vontade satânica da sua matéria inerte.3 Como o ponto para onde tendem existe já, porque o tempo é uma ilusão, Deus é; como tendem para a Absoluta Perfeição, Deus é Perfeição Absoluta; como tendem para a Suprema Beleza, Deus é a Beleza Suprema. O Universo está já onde estará, e já isto é Deus.

 

Morrer é a curva da Estrada.

 

Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e de contribuir para a evolução da Humanidade.

 

A Verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa!

 

Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.

 

Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa. Tudo que foi, se o vimos quando era, é de nós que foi tirado quando partiu.

 

 

 



 

 

 

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Notas:

1. Acho que aqui se equivocou Fernando Pessoa. Não há profecia que, resumindo a história às avessas, isto é, antes de ela existir, possa vaticinar nada. Ora, se o passado é presente, se o presente é presente e se o futuro também é presente, uma profecia nada mais é do que o presente que está a acontecer, mas que ainda não foi percebido, sentido, vivenciado. O tempo é; não foi nem será. Tanto quanto o passado, o futuro é uma ilusão dos nossos sentidos.

2. Benito Amilcare Andrea Mussolini (Predappio, 29 de julho de 1883 – Mezzegra, 28 de abril de 1945) foi um político italiano que liderou o Partido Nacional Fascista e é creditado como sendo uma das figuras-chave na criação do Fascismo. Tornou-se o Primeiro-ministro da Itália em 1922, e começou a usar o título Il Duce desde 1925. Após 1936, seu título oficial era Sua Excelência Benito Mussolini, Chefe de Governo, Duce do Fascismo e Fundador do Império. Mussolini também criou e sustentou a patente militar suprema de Primeiro Marechal do Império, junto com o Rei Vítor Emanuel III da Itália, quem lhe deu o título, tendo controle supremo sobre as forças armadas da Itália. Mussolini permaneceu no poder até ser substituído em 1943; por um curto período, até a sua morte, ele foi o líder da República Social Italiana.

3. Isto só pode ser entendido em termos simbólicos ou alegóricos, pois, como não há propriamente inércia (falta de ação ou de atividade) no Universo, não pode haver inércia na matéria. Na aparente inércia da matéria sempre há algum tipo intrínseco de [re]ação, de agitamento ou de movimento. (Na Mecânica Clássica e na Teoria da Relatividade Restrita, sistemas inerciais podem ser identificados de uma forma muito simples, a saber: sistema inercial é aquele em que os Símbolos de Christoffel, obtidos a partir da função lagrangeana, se anulam.)

 

 

 

Bibliografia:

PESSOA, Fernando. Obra poética e em prosa. Volume II, prosa; volume III, prosa. Organização, introduções e notas do meu querido e saudoso amigo António Quadros. Porto: Lello & Irmão - Editores, 1986.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Referencial_inercial

http://sushibandit.com/?cat=408

http://www.ronaud.com/frases-
pensamentos-citacoes-de/fernando-pessoa/1/

http://www.ronaud.com/frases-
pensamentos-citacoes-de/fernando-pessoa

http://arquivopessoa.net/textos/1155

http://pensador.uol.com.br/
autor/Fernando_Pessoa/5/

http://media.photobucket.com/

http://meta-humanas.blogspot.com/2010/06/
poemas-de-alvaro-de-campos-fernando.html

http://pensador.uol.com.br/
autor/Fernando_Pessoa/3/

http://pensador.uol.com.br/
autor/Fernando_Pessoa/2/

http://multipessoa.net/
labirinto/filosofia/1

http://multipessoa.net/
labirinto/ocultismo/1

http://multipessoa.net/
labirinto/heteronimia/18

http://multipessoa.net/
labirinto/heteronimia/13

http://multipessoa.net/
labirinto/heteronimia/7

http://pensador.uol.com.br/
autor/Fernando_Pessoa/

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http://pt.wikipedia.org/
wiki/Fernando_Pessoa

 

Música de fundo:

Foi Deus
Composição: Alberto Janes
Interpretação: Amalia Rodrigues

Fonte:

http://mp3skull.com/mp3/
foi_deus_amalia_rodrigues.html