EUTIFRON

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Introdução e Objetivo do Estudo

 

 

 

Este estudo é um resumo fragmentário dos pontos mais relevantes da obra Eutifron, de Platão, que faz parte da Primeira Tetralogia, na qual os dialogadores são Sócrates e Eutifron, conhecido como sendo um experto religioso. A cena do diálogo se passa em Atenas, um pouco antes da morte de Sócrates, possivelmente em 400 a.C. Neste diálogo, também conhecido por Da Religiosidade, predominam as idéias de Sócrates, no qual Platão procura estabelecer um conceito para a piedade, isto é, o respeito devido aos deuses.

 

Neste diálogo, Sócrates pergunta a Eutifron: — Então, a piedade é amada pelos deuses porque é piedade ou é piedade porque é amada pelos deuses? Em termos monoteístas, isto pode ser entendido assim: a moral é comandada por Deus por ser moral ou é moral por ser comandada por Deus? O dilema continuou a apresentar um problema para os teístas desde que Platão discutiu este tema, e ainda é objeto de debates teológicos e filosóficos.

 

 

 

Fragmentos Selecionados

 

 

 

O primeiro zelo da atividade política deve ser para com os jovens, a fim de que sejam tão bons quanto possível. É como faz o bom agricultor, que cuida naturalmente das plantas novas em primeiro lugar e das outras depois.

 

Os atenienses, quando consideram alguém talentoso, desde que incapaz de ensinar a sua sabedoria, pouco se importam. Mas, se é um que eles acham capaz de tornar iguais a si os outros, aí eles se irritam, ou por inveja ou por outras razões.1

 

A maioria das pessoas ignora o que é direito.2

 

 

 

 

Um matador deve ser processado, ainda que ele seja de nossa casa e de nossa mesa. A mácula é igual, e o matador deve ser levando à justiça. O certo é não tolerar nenhuma impiedade, seja lá de onde vier, seja lá de quem for.3

 

Será que, aos olhos dos deuses, sabemos exatamente o que é piedade e o que é impiedade?

 

A piedade é sempre igual a si mesma em todas as ações, e a impiedade, por sua vez, é sempre o contrário da piedade e sempre igual a si mesma. Tem uma feição única de impiedade tudo que se há de ter como ímpio.

 

É comum os homens dizerem uma coisa quando se trata dos deuses e outra quando se trata deles mesmos.

 

Reconheço nada saber a respeito dos deuses, e reluto em acreditar o que falam sobre eles.

 

Por acaso, devemos admitir que existam guerras de uns deuses contra outros? E inimizades tremendas? Batalhas e muitas outras calamidades da mesma ordem descritas pelos poetas e pintadas por hábeis pintores?

 

Quando se discorda quanto a algo ser mais comprido ou mais curto, basta tomar as medidas e acabar com a diferença. E basta ir a uma balança quando se discorda quanto a ser mais leve ou mais pesado.

 

Não é divergindo sobre o justo e o injusto, o belo e o feio, o bom e o mau e por não se atingir uma solução satisfatória a este respeito, que os homens devam se tornar inimigos.

 

 

 

Curiosamente, são pelos mesmos motivos [ou (des)razões] que uns acham certas coisas justas e outros acham injustas, e sobre elas dissentindo, é que os homens se põem em desavença, guerreiam e se matam. E assim, admitem os seres humanos, as mesmas coisas são aborrecedoras e estimadas dos deuses, e as mesmas coisas são agradáveis e desagradáveis aos deuses. Assim, as mesmas coisas seriam piedosas e ímpias.

 

Portanto, quando procedemos ao agrado de Zeus desagradamos Crono e Urano, ao gosto de Hefesto, mas ao desgosto de Hera, da mesma sorte quanto a outros deuses, que pensem diversamente ao mesmo respeito.

 

Há um ponto que ninguém contesta no céu e na Terra: o culpado deve ser punido.

 

Que prova ou certeza poderemos ter de que todos os deuses achem justa ou injusta a morte de quem se tornou assassino?

 

Será desagradável a uns deuses o que é agradável a outros deuses?

 

Corrigindo o conceito, poderemos dizer que é impiedade o que a todos os deuses aborrece, e piedade o que por eles é estimado, e nem uma nem outra coisa, ou ambas, o que uns estimam e o que a outros aborrece.

 

Não devemos admitir como certo ou que está certo toda vez que alguém disser de alguma coisa que 'é assim' ou que 'não é assim'. Devemos sempre examinar o que diz o interlocutor.4

 

O que é levado e o que leva. O que é guiado e o que guia. O que é visto e o que vê. Todas estas coisas diferem umas das outras e no quê. Mas, será porque é visto que o vêem ou, ao contrário, porque o vêem que é visto? Será porque é guiado que o guiam ou porque o guiam que é guiado? Será, ainda, porque é levado que o levam ou porque o levam que é levado?

 

Se algo é produzido ou impressionado, não é por ser produzido que o produzem, mas porque o produzem é que é produzido; nem é por ser impressionado que o impressionam, mas é porque o impressionam que é impressionado.

 

A piedade, na sua expressão, é o que é estimado de todos os deuses.

 

A piedade é estimada por ser piedosa, e não é por ser estimada que é piedosa.

 

O agradável aos deuses é tal por ser deles estimado, e não é por ser agradável que é estimado.

 

Se, porém, fossem a mesma coisa o agradável aos deuses e a piedade, então, se a piedade fosse estimada por ser piedosa, também o agradável aos deuses seria estimado por ser agradável. Continuando: se uma coisa fosse agradável aos deuses por ser deles estimada, também a piedade seria piedosa por ser estimada; mas, uma e outra coisa se opõem como sendo absolutamente diversas. Uma, porque a estimam, é estimável; outra, porque é estimável, a estimam.

 

Tudo o que é piedoso tem que ser também justo. Mas, nem tudo o que é justo é piedoso, sendo a justiça parte piedade e parte não.

 

Não acho que haja vergonha onde há medo. Acho que muitos têm medo das doenças, da pobreza e de tantos outros males, mas, embora tenham medo, nem por isto têm vergonha do que temem. Todavia, onde há vergonha costuma haver medo.

 

O temor, entendo eu, vai mais longe do que a vergonha; a vergonha é uma parte do temor, como o ímpar é uma parte do número, de sorte que nem todo número é ímpar, mas todo ímpar é número.

 

Nem todos sabem cuidar de cavalos; só o palafreneiro [cavalariço]. E nem todos sabem cuidar de cães; só o matilheiro [cachorreiro]. E o ofício de vaqueiro é cuidar de vacas.5

 

Para meditar: a piedade, sendo um cuidado para com os deuses, é proveitosa aos deuses e os melhora? Estaremos melhorando os deuses toda vez que procedemos piedosamente?

 

O serviço prestado pelos médicos visa a saúde. O serviço prestado pelos armadores visa a navegação. O serviço prestado pelos arquitetos visa as casas. O serviço prestado pelos agricultores se resume em extrair da terra os alimentos. O serviço prestado pelos soldados é levar a cabo a vitória na guerra. O serviço prestado pelos deuses, usando os homens como seus servidores...

 

 

 

Quem ama tem de ir atrás do seu amor, aonde quer que este o leve!

 

Sacrificar é presentear os deuses; rezar é pedir aos deuses.6

 

Muitos acreditam que rogar aos deuses é lhes pedir o que necessitamos da parte deles. E dar seria lhes retribuir com aquilo que possam necessitar de nossa parte.

 

Para muitos, a piedade é um escambo, uma permuta, uma espécie de toma-lá-dá-cá entre os deuses e os homens. E, nesta negociata desprezível, muitos se acham mais espertos do que os deuses, a ponto de tentar obter deles todos os bens. E os deuses? Ganham o quê? Nada.

 

 

 

 

 

 

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Notas:

1. Uma das piores formas de vaidade é não admitir que os outros possam ser ou se tornar como nós ou até melhores do que nós. E isto, no âmbito religioso, místico ou iniciático é a maior pedra no caminho. Entretanto, um dia, todos nós aprenderemos que não há melhores nem piores. Em uma moeda, é pior ou melhor a coroa? Na mesma moeda, é pior ou melhor a cara?

2. Algumas vezes, é muito pior, pois admitem o que é direito como erro e o erro como sendo direito. Basta lembrar, por exemplo, o apoio maciço que o povo alemão deu ao Grande Reich Alemão, nome que costuma ser dado ao período do Governo que se estabeleceu na Alemanha entre 1933 e 1945, enquanto era liderada por Adolf Hitler e o Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores (NSDAP), cujo lema nacional era: Ein Volk, ein Reich, ein Führer. Um Povo, um Império, um Líder.

3. O conceito de justiça (do latim iustitia) diz respeito à igualdade de todos os cidadãos. É o principio básico de um acordo que objetiva manter a ordem social através da preservação dos direitos em sua forma legal (constitucionalidade das leis) ou na sua aplicação a casos específicos da sociedade (litígio). Em um sentido mais amplo, pode ser considerado como um termo abstrato que designa o respeito pelo direito de terceiros, a aplicação ou reposição do seu direito por ser maior em virtude moral ou material. Justo é aquilo que é equitativo ou consensual, adequado e legítimo. A justiça pode ser reconhecida por mecanismos automáticos ou intuitivos nas relações sociais ou por mediação através dos tribunais e em ordem à eqüidade. Sua ordem máxima, representada em Roma por uma estátua com os olhos vendados, visa seus valores máximos onde todos são iguais perante a lei e todos têm iguais garantias legais, ou ainda, todos têm iguais direitos. A justiça deve buscar a igualdade entre os cidadãos. Segundo Aristóteles, o termo justiça denota, ao mesmo tempo, legalidade e igualdade. Assim, justo é tanto aquele que cumpre a lei (justiça em sentido estrito) quanto aquele que realiza a igualdade (justiça em sentido universal). Justiça também é uma das quatro virtudes cardinais, e ela, segundo a doutrina da Igreja Católica, consiste na constante e firme vontade de dar aos outros o que lhes é devido. As últimas palavras do Papa Gregório VII foram: Amei a justiça e odiei a iniqüidade, por isto morro no exílio. Já Voltaire ensinou: É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente. E Terêncio: A justiça inflexível é freqüentemente a maior das injustiças. E, para concluir esta nota, disse Romain Rolland: Quando a ordem é injusta, a desordem é já um princípio de justiça. Ainda assim, Sócrates bebeu a cicuta.

4. O argumentum ad verecundiam ou argumentum magister dixit, também conhecido como argumento de autoridade, é uma falácia lógica que apela para a palavra de alguma autoridade a fim de validar o argumento. Este raciocínio é absurdo, pois a conclusão se baseia, exclusivamente, na credibilidade do autor da proposição, e não nas razões que ele tenha apresentado para sustentá-la. Exemplos: 1º) O psicanalista Freud fumava, então o fumo deve ser bom. Mas, o argumento não leva em conta que Freud teve câncer devido ao fumo; 2º) Jesus não faria isto que você faz. Sendo Jesus, supostamente, uma figura de exemplo moral, é usado para recriminar as atitudes de uma pessoa pela comparação; 3º) Sou uma pessoa vivida, por isto você não deve questionar os meus conselhos; e 4º) Tenho um mestrado, dois doutorados e publiquei diversos livros. Como você se atreve a discordar de mim?

5. Quando divulguei o estudo sobre Cármides (que, junto com Teages, Laques e Lísis, faz parte da Quinta Tetralogia platônica), apresentei uma nota de rodapé, que, oportunamente, redigito aqui. No nosso Patropi, o Poder Executivo é atualmente composto por vinte e quatro ministérios, nove secretarias da presidência com status de ministério e seis órgãos, também com status de ministério. A continha é esta: 24 + 9 + 6 = 39! O pior, na minha opinião, não é a desnecessária montanha de titulações de primeiro escalão, mas a reiterada nomeação de figurões e figurinhas para comandar estes ministérios, secretarias e órgãos, que, normalmente, não sabem lhufas de lhufas do métier para o qual estão sendo nomeados. Isto é meio que nomear um padre para chefiar uma casa de tolerância ou designar um ceguinho para ser guarda de trânsito. O padre até que poderá ter algum sucesso na sua investidura, mas o pobre do ceguinho irá criar o maior bulício no tráfego. O fato é que tudo isto, mais do que um horror anti-racional e anti-republicano, é uma (falta de) vergonha. Falta de vergonha na fuça de quem nomeia e falta de vergonha na carantonha de quem aceita a nomeação e assume. E quem paga este desregramento somos nós. Bem, já que são trinta e nove os órgãos de primeiro escalão, não custaria nada criar o quadragésimo: o Ministério do Sem-vergonhismo – que investigaria todas as sem-vergonhices políticas praticadas nos âmbitos federal, estadual e municipal, fosse no(s) executivo(s), fosse no(s) legislativo(s), fosse no(s) judiciário(s). Mas, para que esta providência pudesse ser tomada, seria preciso construir zilhões e zilhões de cadeias Brasil afora, porque as que existem, há muito tempo, não dão conta sequer dos graciosos inquilinos já existentes. Só para registro: estes inquilinos são graciosos não porque sejam engraçados, jocosos, joviais, divertidos, delicados ou gráceis, mas porque nós pagamos para eles morarem de graça.

6. Mas, se os deuses existem, por presumida todo-poderosidade, sabem tudo e são donos de tudo. Então, porque oferecer sacrifícios aos deuses, e pedir, seja lá o que for, se tudo já é deles e eles já sabem tudinho o que necessitamos? Sim, reconheço que a Humanidade vem mudando e evolucionando; mas, nesta matéria, ainda está ritualisticamente genuflexa na Idade da Pedra Lascada, isto quer dizer cerca de 10.000 a.C. Para muitos, como disse Sócrates, a piedade é um [sei-lá-o-quê] de pedir e dar aos deuses. Platão, há mais ou menos 2.400 anos, ensinou tudo isto em pormenores, mas a maioria da Humanidade nada apre(e)ndeu. A maioria das pessoas acha que quanto mais bolhas nos pés e calos nos joelhos mais agrada a Deus e mais próxima está da salvação.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://www.squidoo.com/animated-gifs

http://www.clker.com/clipart-
handshake-agree.html

http://wgss.ca/index.php?page_id=667

http://wp.clicrbs.com.br/pretinhobasico/2011/
09/21/olha-a-mosca/?topo=52,1,1,,224,e224

http://nonciclopedia.wikia.com/
wiki/File:Diamante.gif

http://www.flying.doitproperly.co.uk/
airplane-clipart.php

http://divine-betrothal.blogspot.com/
2011/03/good-to-be-home.html

http://www.twiki.org/cgi-bin/bin5x0/
view/Sandbox/GhnhsFtTest

http://pt.wikipedia.org/wiki/
Argumentum_ad_verecundiam

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Alemanha_Nazi

http://pt.wikipedia.org/wiki/
Dilema_de_Eut%C3%ADfron

http://greciantiga.org/
arquivo.asp?num=0645

http://www.dominiopublico.gov.br/
download/texto/lb001134.pdf

http://www.dominiopublico.gov.br/
download/texto/bk000467.pdf

http://www.consciencia.org/
eutifron-dialogos-de-platao

 

Música de fundo:

Gonia Gonia

Fonte:

http://www.navis.gr/midi/midi.htm#Greek