Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

 

 

O Doutor Eustáquio-Falópio da Imaculada Conceição Silva não era nem alto nem baixo, nem magro nem gordo, nem simpático nem antipático, nem sim nem sopas. Seus amigos e clientes o chamavam de Doutor Falópio. Os muito amigos o chamavam de Fafá. Havia recebido de seus pais o nome de Eustáquio-Falópio porque o pai havia tido, quando criança, uma obstrução da trompa de Eustáquio após uma complicada infecção das vias aéreas superiores, e a mãe, com fortes dores abdominais no início da gravidez, pensou que se tratasse de uma gravidez ectópica. Mas seu pai não ficou com problemas auditivos por causa da obstrução da tuba auditiva, e sua mãe não teve mesmo nenhuma gravidez tubária. Havia sido uma outra coisa que ela nunca quis comentar. E o pai muito menos. Mas o fato é que o garoto, hoje com 41 anos, fora batizado com o nome de Eustáquio-Falópio. E como o parto fora normal e a termo, resolveram meter a Imaculada Conceição no meio do nome da criança. Há dessas coisas por aí. Eu nunca consegui compreender como um pai e uma mãe possam dar aos filhos nomes como Antonio Manso Pacífico de Oliveira Sossegado e Lança Perfume Rodometálico de Andrade. Há também uma tal de senhora Bucetildes, chamada, pelos familiares, de Dona Tide. Eu mesmo conheço uma velha senhora que se chama Kydolina, mas só aceita ser chamada por Lina. No popular: isso tudo é uma grande sacanocratice!

 

       

O Doutor Falópio estudou Medicina e se especializou em urologia, mas aprofundou seus estudos no sistema reprodutor masculino. Era um homem bom, simples, honestíssimo e excelente profissional, mas não tinha sorte com as mulheres. Isso ele nunca teve. Aos 41 anos nunca havia namorado. Talvez fosse pelo seu jeito de ser nem sim nem sopas. Talvez fosse por causa da voz fanho-fininha que possuía – igualzinho a uma taquara rachada. Apesar da cabeleira farta e ondulada, quase não possuía boca; e nos retratos ela nem sequer pintava na fotografia. Seu nariz era tão pequenininho que ele nunca conseguiu tirar uma simples melequinha; e também sumia quando o Fafá era fotografado. A figura do bom Doutor Falópio era digna de dó, e era agravada pelo fato de ainda por cima ele ter um cacoete infernal: ficava balançando a cabeça de um lado para o outro sem parar, como um pêndulo que oscilasse em um plano vertical sob a contra-ação da gravidade. Uma loucura! E quando o movimento periódico oscilatório ininterrupto, de amplitude de movimento constante, chegava ao seu limite no lado esquerdo, a cabeça do Fafá dava um tremelique assustador. Dizem que até dormindo ele oscilava e tremelicava! Como ele podia descansar dessa maneira foi um mistério que morreu com ele. E quando ficava nervoso gaguejava como uma metralhadora. O quadro era mesmo muito triste e digno de pena. Ou de um filme de horror no melhor estilo hollywoodiano.

 

 

Por causa dessas coisinhas, aos trinta anos o Fafá desistiu de casar. Cansou de ser alvo de chacotas e de ser chamado pelas garotas de cornetinha e de Fafinnnnnnn... Eu não desistiria de nada. Poderiam me chamar até de trombone de vara fendida que eu não desistiria. Teria procurado um fonoaudiólogo para curar o problema da voz fanho-fininha de taquara rachada e faria um tratamento homeopático para o cacoete da cabeça pendular tremiculosa. No mínimo eu tomaria Hyosciamus niger de 30ª ou Tarantula hispanica também de 30ª, que é um grande remédio homeopático da histeria e das contradições psicológicas. Desistir? Essa não. Nunca. Homeopatia cura essas coisas. Mas ele não se tratou e resolveu dedicar sua vida inteiramente à Medicina, tornando-se um reconhecido especialista no sistema reprodutor masculino. Sabia tudo de testículos, canais deferentes, vesículas seminíferas, próstata, glândulas bulbo-uretrais, glândulas uretrais, uretra e pênis. Não havia ninguém que entendesse mais de vaselinas samininas mesculíferas. Perdão: vesículas seminíferas masculinas. É que eu não sou médico e confundo esses termos escalafobéticos. E também não sei se há alguma diferença entre uma seminífera masculina e uma seminífera feminina. Vai ver que são iguais. Mas voltando ao bom Doutor Fafá, apesar de sua aparência esquisita tinha uma clientela monumental. Em média, cada consulta demorava uma hora, pois a anamnese era completa e detalhadíssima. Seus pacientes logo percebiam sua dedicação e o indicavam para os amigos. E acabavam se acostumando com aquele cacoete infernal do Doutor Falópio de balançar a cabeça como um pêndulo embriagado.

 

         

Apesar de viver comedidamente e de sua vida ser dedicada à Medicina, inexplicavelmente aceitou o convite de dois amigos para, justamente no dia em que completou 42 anos, ir a um jogo de ronda comemorar seu aniversário. Primeiro recusou o convite, mas acabou cedendo pela insistência dos dois amigos, que asseguraram que o lugar do jogo era seguro, e que o buscariam e o levariam de volta à casa depois da jogatina. Bem, o Doutor Falópio não teve tempo de se arrepender de ter aceito esse convite esdrúxulo, pois...

 

         

Tudo foi arranjado para uma sexta-feira à noite. Às nove horas, os dois amigos buzinaram na porta da casa do Doutor Falópio, e ele desceu para ir ao tal jogo de ronda do qual sairia morto para ser enterrado no Cemitério do Caju, na zona norte do Rio de Janeiro. Naquela noite, talvez como um presságio de que algo tenebroso iria acontecer, o bom Doutor estava cacoeteando mais do que nunca. E a tremelicação do lado esquerdo havia triplicado de intensidade e se espalhara por toda a oscilação pendular da cabeça. Parecia mais uma motocicleta de pobre do que um pêndulo oscilando isócrona e desajustadamente. Só de olhar dava pra ficar tonto. Pode um treco desses?

 

 

Tá nervoso Fafá? — perguntou um dos amigos.

Cacá... caqui... quiqui... calmi... Calmimi... mimi... míssimo — respondeu o nervosíssimo Doutor Falópio.

Ainda bem! — desconversou o amigo.

 

         

Ao chegar ao Bairro da Saúde, localizado no centro carioca, o carro foi estacionado quase em frente à casa onde ia ter o tal jogo de ronda. O Doutor Falópio, que gaguejava até em pensamento quando seu sistema nervoso estava desequilibrado, pensou: Que... que ... que... que eu eu tô... tô... tôtô... fá... fafá... fá... fá... fafá... fazendo aquiqui?

Vamos entrar, Fafá? — Convidou um dos amigos.

Vá... vá... vá... vavá... vamos — respondeu o Doutor Falópio apavorado.

 

         

Na porta da casa havia um super-armário tomando conta da entrada.

Vai ser o quê, malandragem? — perguntou simpaticamente o armário.

Viemos fazer uma fezinha — respondeu um dos amigos do Doutor Falópio.

É. Uma fé... fefé... u... u... u... uma fefé... — o Doutor Falópio não conseguiu acabar de falar porque o armário o interrompeu e perguntou apontando para o bom Doutor:

Ele é gaguinho?

Só quando está com sorte — gracejou um dos amigos.

Hum — murmurou monossilabicamente o armário, achando aquilo tudo muito esquisito. Gago com sorte? Eu nunca vi. Pensou com seus botões.

Podem entrar, senhores. A casa é de vocês — autorizou o armário-de-pedra medindo o Doutor Falópio de alto a baixo.

O Doutor Falópio, que não admitia ser interrompido, principalmente quando estava em meio a uma crise de gagueira, quando passou pelo armário, olhou para ele, e, muito macho, de uma pancada rosnou: — Fezinha.

 

         

Lá dentro a ronda estava comendo solta. Havia malandro que apostava duzentos reais por parada. Outros apostavam menos, mas a menor aposta era de dez reais. O cheiro de maconha era fortíssimo e o alarido insuportável. Cerveja corria a rodo. De vez em quando alguém cheirava uma carreirinha. A barra era mesmo pesadíssima. Em um dado momento, o Doutor Falópio quase desmaiou. Um homem que havia desistido da vida temporal para se dedicar à Medicina tinha mesmo que se sentir mal naquele ambiente. Aquilo não era maneira de passar o tempo, e muito menos de comemorar o seu quadragésimo segundo aniversário. Mas havia topado e agüentou firme. Ele e seus amigos, inclusive, haviam combinado que um deles jogaria pelos três, e que, ao final, repartiriam o lucro. E o prejuízo, se prejuízo houvesse.

De repente, sem mais aquela, o Doutor Fafá se lembrou dos ensinamentos climáticos do falecido Vicente Matheus, ex-presidente do Corinthians, que costumava dizer: — Quem tá na chuva é pra se queimar. Então, bola pra frente. O que ele não ia era dar uma de cagarolas. Já havia até rosnado para o armário. Mas a coisa não seria bem assim...

 

         

O baralho do carteado era velhíssimo e estava todo ensebado e marcado. Vira-e-mexe alguém gritava: — Vira baixo. De vez em quando alguém dava uma cheirada. Uma vez ou outra alguém acendia um bagulho. E o jogo prosseguia monocordicamente com o embaralhador fazendo todo tipo de manipulação com as cartas. Ronda é assim. Chatérrima e desonestíssima. Quem se mete em jogo de ronda se mete em fria. E dificilmente escapa.

Incrivelmente, o amigo do Doutor Falópio que se incumbiu das apostas estava com uma sorte infernal e, apesar de toda a batota, já estava ganhando uns dois mil e setecentos e poucos reais em mais ou menos uma hora e meia. À essa altura o bom doutor estava quase vomitando e pediu para irem embora. Os dois amigos concordaram imediatamente, e quando o amigo que estava jogando disse que iria parar, um dos malandrecos que estava perdendo uma nota preta levantou levemente a camisa para mostrar um 38 que estava na cintura e trovejou:

Olha aqui ô arrombadinho: sair ganhando não pode. Nem adianta chamar papagaio de meu louro que não cola. Deixa a metade aí pra nós e pode ir andando.

Para evitar confusão e facilitar as coisas, o amigo ganhador pegou dois mil reais e colocou sobre a mesa.

Tudo bem? perguntou.

Tá limpo, 'brother'. Pode se mandar com o troco — respondeu o carteador.

 

         

Rapidamente os três saíram daquela casa jurando nunca mais voltar. Mas então, aconteceu a desgraça. Quando estavam se dirigindo para o carro para ir para casa, dois bandidos, armados com duas pistolas automáticas, se aproximaram e falaram rispidamente:

Todo mundo perdeu. Ninguém se mexe. Passa essa grana toda pra cá. Tão pensando que vão levar a grana da malandragem assim? Isso é falta de respeito. Dá... Dá... Dá logo tudo, senão alguém vai dançar. Vai. Passa... Passa logo...

Nesse momento, o Doutor Falópio, apavorado por causa da inusitada situação, deu uma hipertremelicação com o corpo todo, e saiu correndo para se livrar dos bandidos.

Não chegou a dar três passos. Dois tiros. Um no peito, outro na cabeça. A poucos metros do carro a sangueira começava a se espalhar. E o Doutor Eustáquio-Falópio da Imaculada Conceição Silva, que não era nem alto nem baixo, nem magro nem gordo, nem simpático nem antipático, nem sim nem sopas e que nunca em sua vida houvera se metido em uma ronda, estrebuchava e agonizava em meio a uma poça de sangue.

Seus amigos esqueceram que estavam sendo assaltados e correram ao seu encontro. Um deles falou emocionado:

Tá doendo, Fafá?

Porém, suas últimas palavras foram:

Fé... fafé... fefé... fezizi... fezizi... fezinha de mé... de memé... de memé... de merda.

E deu seu último suspiro. Tão fininho que mais pareceu um assobio.

Era a primeira vez que os dois estupefatos amigos ouviram o Fafá dizer uma pachouchada.

 

 

         

 

 

Moral do conto: Sem tirar nem pôr, é como diz a música Cassino de Malandro do saudoso Kid Morengueira: Se o otário ganha, vai sair daquele jeito, porque entre malandros isto é falta de respeito. Em roda de desocupados, barburino não tem vez. E a culpa nunca é do malandro; é sempre do bobo que deu mole. Mas, a maior das malandragens não é não se meter com malandro. Isso é muito fácil. A maior das malandragens é não dar uma de sabichão pra levar vantagem ou arrumar algum. Particularmente em jogo de ronda. Isso é uma tremenda estupidez misturada com ausência de sensibilidade. Malandro-místico não faz essas coisas. Nem que uma vaca-leiteira mie o Boléro de Maurice Ravel inteiro!

E pra quem não sabe...

Malandro não abandona o barco.
Malandro não aparece no filme.
Malandro não assina papel.
Malandro não atrasa malandro.
Malandro não carrega mala sem alça.
Malandro não chama papagaio de meu louro.
Malandro não chia.
Malandro não chuta o pau da barraca.
Malandro não conta o que viu.
Malandro não corre da raia.
Malandro não dá bom-dia a tubarão.
Malandro não dá mole.
Malandro não dá uma de malandro.
Malandro não dedura.
Malandro não diz onde mora.
Malandro não diz aonde vai.
Malandro não diz nem que sim nem que não.
Malandro não diz que conhece.
Malandro não dorme de touca.
Malandro não da uma de papagaio de pirata.
Malandro não espanta neném.
Malandro não fecha questão.
Malandro não foge da raia.
Malandro não joga água fora da bacia.
Malandro não pensa em derrota.
Malandro não perde uma chance.
Malandro não pisa na bola.
Malandro não recusa uma boca-livre.
Malandro não se faz de rogado.
Malandro não se dá por vencido.
Malandro não se intromete na vida dos outros.

Mas, como eu disse, o malandro-místico não dá uma de sabichão pra cima de quem quer que seja pra levar vantagem ou fazer algum. Quem assim age é um falso malandro! Místico é que não é.

 

 


 

 

 

Fundo musical:

Conversa De Botequim (Moreira da Silva)

Fonte:

http://www.midinet.com.br/