Referindo-se
ao regime militar (1973 – 1985) de seu País: As
pessoas estão na cadeia para que os presos possam estar livres.
Sobre
a vitória de Barack Obama nas eleições de 2008:
Agora, ele entra na Casa Branca, que será a sua casa. Tomara que
não esqueça que a Casa Branca foi construída por escravos
negros. Chegou a hora de os Estados Unidos se libertarem da sua pesada herança
racista.
Para
se levantar, é preciso saber cair!
Não
estou preso às coisas; elas não decidem nada.
A
memória guardará o que valer a pena. A memória
sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo.
Tenho
saudades de um país que ainda não existe no mapa.
A
História passada está de pernas para cima
porque a realidade anda de cabeça para baixo. E não apenas
no sul da América; também no Norte. Quem, nos Estados Unidos,
não conhece Theodore Roosevelt? Este herói nacional predicou
a guerra, e a praticou contra os fracos. A guerra, proclamou Roosevelt,
purifica a alma e melhora a raça. Portanto, recebeu o Prêmio
Nobel da Paz. Em compensação, quem conhece, nos Estados Unidos,
Charles Drew? Não é que a História o tenha conhecido,
simplesmente jamais o conheceu. No entanto, este cientista salvou muitos
milhões de vidas humanas, desde que suas pesquisas tornaram possíveis
a conservação e a transfusão de plasma. Drew era diretor
da Cruz Vermelha nos Estados Unidos. Em 1942, a Cruz Vermelha proibiu a
transfusão de sangue de negros. Então, Drew se demitiu. Drew
era negro.
Dia-a-dia
se nega às crianças o direito de ser criança. Os fatos,
que zombam deste direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana.
O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem
a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem
lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são
ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que
aceitem, desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita
sorte têm as crianças que conseguem ser crianças.
Há
marcas, visíveis no corpo, e outras, que ninguém pode ver.
Assovia
o vento dentro de mim. Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém,
nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contravento,
e sou o vento que bate em minha cara.
Para
os navegantes, com desejo de vento, a memória é um ponto de
partida.
Vivemos
em plena cultura da aparência. O contrato de casamento importa mais
do que o amor. O funeral mais do que o morto. As roupas mais do que o corpo.
E a missa mais do que Deus!
Temos
guardado um silêncio bastante parecido com a estupidez.
A
Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é
uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio.
E o corpo diz: eu sou uma festa.
A
chuva que irriga os centros de poder imperialista afoga
os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente,
o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro,
dominadas para fora – é a maldição de nossas
multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga.
A
liberdade de eleição permite que você
escolha o molho com o qual será devorado.
A
liberdade de mercado permite que você aceite os preços
que lhe são impostos.
A
primeira condição para modificar a realidade
consiste em conhecê-la.
Somos
o que fazemos, principalmente o que fazemos para mudar o que somos.
A
televisão, essa última luz que te salva da
solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é
um espetáculo: para os que se comportem bem, o sistema promete uma
boa poltrona.
A
beleza é bela quando pode ser vendida. A justiça
é justa quando pode ser comprada.
O
poder encolhe os ombros: quando este Planeta deixar de ser rentável,
mudo-me para outro.
Um
menino de três anos, chamado Luca, comentou um dia desses: —
O mundo não sabe onde está sua casa. Ele estava olhando o
mapa. Não estava olhando o noticiário.
O
que são as pessoas de carne e osso? Para os mais notórios
economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros, devedores.
Para os mais influentes tecnocratas, incômodos. E para os mais exitosos
políticos, votos.
Os
habitantes dos bairros suburbanos vão ao shopping center, como antes
iam até o centro. O tradicional passeio do fim de semana até
o centro da cidade tende a ser substituído pela excursão até
esses centros urbanos. De banho tomado, arrumados e penteados, vestidos
com suas melhores galas, os visitantes vão à uma festa para
à qual não foram convidados, mas, podem olhar tudo.
Na
luta do bem contra o mal, é sempre o povão que morre.
Na
parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: Proibido cantar. Na parede
do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: É proibido brincar
com os carrinhos porta-bagagem. Ou seja: ainda existe gente que canta, ainda
existe gente que brinca.
Há
aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas,
a verdade é que ele trabalha, como um desafio candente, sobre as
consciências dos homens.
Quando
as palavras não são tão dignas quanto o silêncio,
é melhor calar e esperar.
As
pulgas sonham em comprar um cão. Os ninguéns sonham
com deixar a pobreza.
Os
ninguéns, filhos de ninguém, donos de nada. Os nenhuns, correndo
soltos, morrendo em vida, fodidos e mal pagados. Que não são,
embora sejam. Que não falam idiomas, mas, dialetos. Que não
praticam religiões, mas, superstições. Que não
fazem arte, mas, artesanato. Que não são seres humanos, mas,
recursos humanos. Que não tem cultura, mas, folclore. Que não
têm cara, apenas, braços. Que não têm nome, mas,
números. Que não aparecem na história universal, mas,
nas páginas policiais da imprensa local. São ninguéns
que custam menos do que a bala que os mata.
Minhas
certezas se alimentam de dúvidas. E, há dias em que me sinto
estrangeiro em Montevidéu, como seria em qualquer lugar do mundo.
E, nestes dias, dias sem Sol, noites sem Lua, nenhum lugar é meu
lugar… E, não consigo me reconhecer em nada nem em ninguém.1
De
Cuba em diante, outros países também iniciaram, por distintas
vias e distintos meios, a experiência de mudança. A perpetuação
da atual ordem de coisas é a perpetuação do crime.
Os fantasmas de todas as revoluções estranguladas ou traídas,
ao longo da torturada História Latino-americana, ressurgem nas novas
experiências, assim como os tempos presentes tinham sido pressentidos
e engendrados pelas contradições do passado. A História
é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi,
e contra o que foi, anuncia o que será...
Nossa
derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa
riqueza sempre gerou nossa pobreza, por nutrir a prosperidade alheia: os
impérios e seus beleguins nativos.
Na
alquimia colonial e neocolonial o ouro se transfigura em sucata, os alimentos
em veneno.
Em
certo sentido, a direita tem razão quando se identifica com a tranqüilidade
e com a ordem. A ordem é a diuturna humilhação das
maiorias, mas, sempre é uma ordem – a tranqüilidade de
que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta.
Eu
nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul. Aonde quer que eu
vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores,
vou vivendo as estações de meu destino. Não tenho nenhum
deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixe chegar a morte:
ainda não. Falta muito que andar. Existem luas para as quais ainda
não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda
não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são
sete, nem em todos os rios do Paraíso, que dizem que são quatro.
Em Montevidéu, existe um menino que explica: — Eu não
quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.
O
sistema que não dá de comer tampouco dá de amar: condena
muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços.
O
catecismo me ensinou, na infância, a fazer o bem por interesse e não
fazer o mal por medo. Deus me oferecia castigos e recompensas, me ameaçava
com o inferno e me prometia o céu; e eu temia e acreditava. Passaram-se
os anos. Eu já não temo nem creio. E, em todo caso –
penso – se mereço ser assado cozido no caldeirão do
inferno, condenado ao fogo lento e eterno, que assim seja. Assim me salvarei
do purgatório, que está cheio de horríveis turistas
da classe média; e no final das contas, se fará justiça.
Sinceramente: merecer, mereço. Nunca matei ninguém, é
verdade, mas por falta de coragem ou de tempo, e não por falta de
querer. Não vou à missa aos domingos, nem nos dias de guarda.
Cobicei quase todas as mulheres de meus próximos, exceto as feias,
e assim violei, pelo menos em intenção, a propriedade privada
que Deus pessoalmente sacramentou nas tábuas de Moisés: Não
cobiçarás a mulher de teu próximo nem seu touro, nem
seu asno... E como se fosse pouco, com premeditação e deslealdade
cometi o ato do amor sem o nobre propósito de reproduzir a mão-de-obra.
Sei muito bem que o pecado carnal não é bem visto no céu;
mas desconfio que Deus condena o que ignora.
O
Deus
dos católicos, Deus da minha infância, não faz amor.
Talvez, o único Deus que nunca fez amor, entre todos os deuses de
todas as religiões da história humana. Cada vez que penso
nisso, sinto pena Dele. E, então, o perdôo por ter sido meu
super-pai castigador, chefe de polícia do Universo, e penso, afinal,
que Deus também foi meu amigo naqueles velhos tempos, quando eu acreditava
Nele e acreditava que Ele acreditava em mim. Então, preparo a orelha,
na hora dos rumores mágicos, entre o pôr do Sol e o nascer
e subir da noite, e acho que escuto suas melancólicas confidências.2
Errata:
onde o Antigo Testamento diz o que diz, deve dizer aquilo que provavelmente
seu principal protagonista me confessou: Pena que Adão fosse tão
burro. Pena que Eva fosse tão surda. E pena que eu não soube
me fazer entender. Adão e Eva eram os primeiros seres humanos que
nasciam da minha mão, e reconheço que tinham certos defeitos
de estrutura, construção e acabamento. Eles não estavam
preparados para escutar nem para pensar. E eu... Bem,
eu, talvez, não estivesse preparado para falar. Antes de Adão
e Eva, nunca havia falado com ninguém. Eu havia pronunciado belas
frases, como “Faça-se a luz”, mas, sempre na solidão.
E foi assim que, naquela tarde, quando encontrei Adão e Eva na hora
da brisa, não fui muito eloqüente. Não tinha prática.
A primeira coisa que senti foi assombro. Eles acabavam de roubar a fruta
da árvore proibida, no centro do Paraíso. Adão havia
posto cara de general que acaba de entregar a espada, e Eva olhava para
o chão, como se contasse formigas. Mas, os dois estavam incrivelmente
jovens e belos e radiantes. Surpreenderam-me. Eu os
tinha feito; mas, não sabia que o barro podia ser tão luminoso.
Depois, reconheço, senti inveja. Como ninguém pode me dar
ordens, ignoro a dignidade da desobediência. Tampouco posso conhecer
a ousadia do amor, que exige dois. E, em homenagem ao princípio de
autoridade, contive a vontade de cumprimentá-los por se terem feito
subitamente sábios em paixões humanas. Então, vieram
os equívocos. Eles entenderam queda onde falei vôo. Acharam
que um pecado merece castigo, se for original. Eu disse que quem desama
peca: entenderam que quem ama peca. Onde anunciei pradaria em festa, entenderam
vale de lágrimas. Eu disse que a dor era o sal que dava gosto à
aventura humana: entenderam que eu os estava condenando, ao outorgar-lhes
a glória de serem mortais e loucos. Entenderam tudo ao contrário.
E acreditaram. Ultimamente, ando com problemas de insônia. Há
alguns milênios, custo a dormir. E gosto de dormir, gosto muito, porque
quando durmo, sonho. Então, me transformo em amante ou amanta, me
queimo no fogo fugaz dos amores de passagem, sou palhaço, pescador
de alto mar ou cigana adivinhadora da sorte; da árvore proibida devoro
até as folhas e bebo e danço até rodar pelo chão...
Quando acordo, estou sozinho. Não tenho com quem brincar, porque
os anjos me levam tão a sério: nem tenho a quem desejar. Estou
condenado a me desejar. De estrela em estrela ando vagando, aborrecendo-me
no Universo vazio. Sinto-me muito cansado e muito sozinho. Eu estou sozinho,
eu sou sozinho, sozinho pelo resto da eternidade.
O
amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer
um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que
jamais dormimos, despertos noite após noite pelos abraços
ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras
e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes. O amor
pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como
por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado,
mas, não pode impedir. Não o impede nem a água benta,
nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso
não serve para nada. O amor é surdo frente ao Verbo Divino
e ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de Governo que possa
com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras
apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia de tudo.
Arranque-me,
senhora, as roupas e as dúvidas. Dispa-me, dispa-me.
Eu
adormeço às margens de uma mulher; eu adormeço às
margens de um abismo.
Não
nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao
mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca
gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e, pensando
bem, não há nada de estranho nisso, porque nascer é
uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação
do abraço, que ao nos quebrar faz por nos
juntar, e, nos
perdendo, faz por nos encontrar, e, acabando conosco, nos
principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá
de ser, se ao nos matar nos nasce.
Os
amantes se comem entre si, de ponta a ponta, todos todinhos, todo-poderosos,
todo-possuídos, sem que fique sobrando a ponta de uma orelha ou um
dedo do pé.
—
Se eu não fizer, outro faz.
Que é como dizer: — Eu sou o outro.
Os
banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro,
podem mais que os reis, mais que os marechais e mais que o próprio
Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém:
se limitam a aplaudir o espetáculo. Seus funcionários, os
tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não
são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição,
mas, decidem o nível dos salários e o gasto público,
os investimentos e os desinvestimentos, os preços, os impostos, os
lucros, os subsídios, a hora do nascer do Sol e a freqüência
das chuvas. Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras
de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros
de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis
conseqüências de seus atos. Os tecnocratas reivindicam o privilegio
da irresponsabilidade: — Somos neutros — dizem.3
O
sistema:
Com uma das mãos rouba o que com a outra empresta.
Suas vítimas:
Quanto mais pagam, mais devem.
Quanto mais recebem, menos têm.
Quanto mais vendem, menos compram.4
Menos
é sempre mais. A melhor linguagem é o silêncio. Vivemos
em um tempo de uma terrível inflação de palavras, e
é pior do que a inflação do dinheiro.
No
Sul, a repressão. Ao Norte, a depressão. Não são
poucos os intelectuais do Norte que se casam com as revoluções
do Sul só pelo prazer de ficarem viúvos. Prestigiosamente,
choram, choram a cântaros, choram mares, a morte de cada ilusão;
e nunca demoram muito para descobrir que o Socialismo é o caminho
mais longo para chegar do Capitalismo ao Capitalismo. A moda do Norte, moda
universal, celebra a arte neutra e aplaude a víbora que morde a própria
cauda e acha que é saborosa. A cultura e a política se converteram
em artigos de consumo. Os presidentes são eleitos pela televisão,
como os sabonetes, e os poetas cumprem uma função decorativa.
Não há maior magia do que a magia do mercado, nem heróis
mais heróis que os banqueiros. A Democracia é um luxo do Norte.
Ao Sul é permitido o espetáculo, que não é negado
a ninguém. E ninguém se incomoda muito, afinal, que a política
seja democrática, desde que a Economia não o seja. Quando
as cortinas se fecham no palco, uma vez que os votos foram depositados nas
urnas, a realidade impõe a lei do mais forte, que é a lei
do dinheiro. Assim determina a ordem natural das coisas. No Sul do mundo,
ensina o sistema, a violência e fome não pertencem à
História, mas à Natureza,
e a justiça e a liberdade foram condenadas a se odiar entre si.
Certa
manhã, ganhamos de presente um coelhinho das Índias. Chegou
à nossa casa em uma gaiola. Ao meio-dia, abri a porta da gaiola.
Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado:
gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.
Nas
ilhas francesas do Caribe, os textos de História ensinam que Napoleão
foi o mais admirável guerreiro do Ocidente. Naquelas ilhas,
em 1802, Napoleão restabeleceu
a escravidão. A sangue e fogo, obrigou os negros livres a voltarem
a ser escravos nas plantações. Disto, os textos não
dizem nada. Os negros são os netos de Napoleão, não
as suas vítimas.
Chicago
está cheia de fábricas. Existem fábricas até
no centro da Cidade, ao redor do edifício mais alto do mundo. Chicago
está cheia de fábricas, Chicago está cheia de operários.
Ao chegar ao bairro de Haymarket, peço aos meus amigos que me mostrem
o lugar onde foram enforcados, em 1886, aqueles operários que o mundo
inteiro saúda a cada Primeiro de Maio. — Deve ser por aqui
— me dizem. Mas ninguém sabe. Não foi erguida nenhuma
estátua em memória dos mártires de Chicago na cidade
de Chicago. Nem estátua, nem monólito, nem placa de bronze,
nem nada. O Primeiro de Maio é o único dia verdadeiramente
universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem todas
as histórias e todas as geografias, todas as línguas e todas
as religiões e culturas do mundo; mas, nos Estados Unidos, o Primeiro
de Maio é um dia como qualquer outro. Neste
dia, as pessoas trabalham normalmente, e ninguém, ou quase ninguém,
recorda que os direitos da classe operária não brotaram do
vento ou da mão de Deus ou do amo. Após a inútil exploração
de Haymarket, meus amigos me levaram para conhecer a melhor livraria da
Cidade. E lá, por pura curiosidade, por pura casualidade, descubro
um velho cartaz que está,
como que esperando por mim, metido entre muitos outros cartazes de música,
rock e cinema. O cartaz reproduz um provérbio da África: Até
que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias
de caçadas continuarão glorificando o caçador.
Como
minhas incessantes viagens ao banheiro, entre cerveja e cerveja, me davam
vergonha, resolvi dizer que o caminho da cerveja conduz ao banheiro da mesma
forma que o caminho do tabaco leva ao cinzeiro. E me senti muito arguto!
Foi
na selva, na Amazônia equatoriana. Os índios shuar estavam
chorando a avó moribunda. Choravam sentados, na margem de sua agonia.
Uma pessoa, vinda de outros mundos, perguntou:
— Por que choram na frente dela, se ela ainda esta viva?
E os que choravam responderam:
— Para que ela saiba que gostamos muito dela.
Na
faculdade de Ciências Econômicas, em Montevidéu: A
droga provoca amnésia e outras coisas que esqueci. Em Santiago do
Chile, nas margens do Rio Mapocho: Bem-aventurados
os bêbados, porque eles verão Deus duas vezes. Em
Buenos Aires, no bairro de Flores: Uma
namorada sem tetas é, mais que namorada, um amigo.
Os
barbeiros me humilham cobrando meia tarifa. Faz uns vinte anos que o espelho
delatou os primeiros clarões debaixo da melena frondosa. Hoje, o
luminoso reflexo de minha calva em vitrines e janelas e janelinhas me provoca
estremecimentos de horror. Cada fio de cabelo que perco, cada um dos últimos
cabelos, é um companheiro que tomba, e que, antes de tombar, teve
nome ou, pelo menos, número. A frase de um amigo piedoso me consola:
— Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da cabeça, e
não fora.5
Também me consolo comprovando que em todos esses anos caíram
muitos de meus cabelos, mas, nenhuma de minhas idéias, o que acaba
sendo uma alegria, quando a gente pensa em todos esses arrependidos que
andam por aí.
Três
dias de parto e o filho não saía: — Tá preso.
O negrinho tá preso — disse o homem. Ele vinha de um rancho
perdido nos campos. E o médico foi até lá. Maleta na
mão, debaixo do Sol do meio-dia, o médico andou até
aquela longidão, aquela solidão, onde tudo parece coisa do
destino feroz. E chegou, e viu. Depois, contou para Glória Galván:
— A mulher estava nas últimas, mas, ainda arfava e suava e
estava com os olhos muito abertos. Eu não tinha experiência
nessas coisas. Eu tremia, estava sem nenhuma idéia. E nisso, quando
levantei a coberta, vi um braço pequeninho aparecendo entre as pernas
abertas da mulher. O médico percebeu que o homem havia estado a puxar.
O bracinho estava esfolado e sem vida, um penduricalho sujo de sangue seco,
e o médico pensou: não
se pode fazer mais nada. E, mesmo assim, sabe-se lá por quê,
acariciou o bracinho. Roçou com o dedo aquela coisa inerte, e, ao
chegar à mãozinha, de repente, a mãozinha se fechou
e apertou seu dedo com força. Então, o médico pediu
que alguém fervesse água, e arregaçou as mangas da
camisa.
Eram
os tempos da ditadura militar no Brasil. Os generais deixaram-no entrar
para que morresse em sua própria terra. Darcy Ribeiro chegou do exílio
e uma ambulância, que o esperava ao pé do avião, levou-o
diretamente ao hospital. Darcy sabia que estava com câncer, e que
o câncer tinha devorado pelo menos um de seus pulmões, mas,
estava alegre de alegria por estar na sua terra e sentir que ela estava
tão sempre-viva e dançadoura. O irmão de Darcy chegou
da cidade de Montes Claros. Vinha para se despedir. Sentado ao lado de Darcy,
no hospital, olhava os próprios pés. Estava choroso e sombrio,
e Darcy tratava de levantar-lhe o ânimo. O cirurgião tomou
Darcy pelo braço e levou-o para caminhar pelo corredor: — Não
quero desanimá-lo — disse —
mas, acho que o senhor deve se preparar
para o pior. Se o seu irmão sair vivo, será um milagre. Darcy
não pôde conter o riso, e o médico não entendeu.
No dia seguinte, foi operado. Darcy despertou com um pulmão a menos.
Como tem tantos, nem percebeu.
Tracey
Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões
próprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no
Estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste Planeta. Um dia,
junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos
acesos em um formigueiro. Todos desfrutaram muito daquele sadio entretenimento
infantil. Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os
outros não viram ou fizeram como se não vissem, mas, que a
deixou paralisada, e deixou nela, para sempre, um sinal na memória:
frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas se separavam em casais e assim,
de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.
Juan
Gelman me contou que uma senhora brigou a guarda-chuvadas, numa avenida
de Paris, contra uma brigada inteira de funcionários municipais.
Os funcionários estavam caçando pombos quando ela emergiu
de um incrível forde-de-bigode, um carro de museu, daqueles que funcionavam
à manivela, e, brandindo seu guarda-chuva, lançou-se ao ataque.
Agitando os braços abriu caminho, e seu guarda-chuva justiceiro arrebentou
as redes onde os pombos haviam sido aprisionados. Então, enquanto
os pombos fugiam em alvoroço branco, a senhora avançou a guarda-chuvadas
contra os funcionários. Os funcionários só atinaram
em se proteger, como puderam, com os braços, e balbuciavam protestos
que ela não ouvia: — Mais respeito, minha senhora, faça-me
o favor, estamos trabalhando, são ordens superiores, senhora...
— Por que não vai
bater no prefeito?
— Senhora, que bicho picou
a senhora?
— Esta mulher endoidou... Quando a indignada senhora
cansou o braço, e se apoiou em uma parede para tomar fôlego,
os funcionários exigiram uma explicação. Depois de
um longo silencio, ela disse: — Meu filho morreu. Os funcionários
disseram que lamentavam muito, mas, que eles não tinham culpa. Também
disseram que naquela manhã tinham muito que fazer... — A senhora
compreende? — Meu filho morreu — repetiu ela. E os funcionários:
— Sim, claro. Mas que eles estavam ganhando a vida,
que existem milhões de pombos soltos por Paris, que os pombos são
a ruína desta Cidade... — Cretinos — fulminou a senhora.
E já longe dos funcionários, longe de tudo, disse: —
Meu filho morreu e se transformou em pombo. Os funcionários calaram
e ficaram pensando um tempão. Finalmente, apontando os pombos que
andavam pelos céus, nos telhados e nas calçadas, propuseram:
— Senhora: por que não leva seu filho embora e deixa a gente
trabalhar? Ela ajeitou o chapéu preto: — Ah! Não! De
jeito nenhum! Olhou através dos funcionários, como se fossem
de vidro, e disse muito serena: — Eu não sei qual dos pombos
é meu filho. E se soubesse, também não ia levá-lo
embora. Que direito tenho eu de separá-lo de seus amigos?
Jesus
escolheu, para nascer, um deserto subtropical, onde jamais nevou, mas, a
neve se converteu em um símbolo universal do Natal, desde que a Europa
decidiu europeizar Jesus.
O
nascimento de Jesus é, hoje em dia, o negócio que mais dinheiro
dá aos mercadores que Jesus havia expulsado do templo.
Está
envenenada a terra que nos enterra ou desterra.
Já não há ar; só desar.
Já não há chuva; só chuva ácida.
Vista do crepúsculo no final do século.
Já
não há parques; só parkings.
Já não há sociedades; só sociedades anônimas.
Empresas em lugar de nações.
Consumidores em lugar de cidadãos.
Aglomerações em lugar de cidades.
Não há pessoas. Só públicos.
Não há visões. Só televisões.
Para elogiar uma flor, diz-se: parece de plástico.
Hoje,
as torturas são chamadas de “procedimento legal”, a traição
se chama “realismo”, o oportunismo se chama “pragmatismo”,
o imperialismo se chama “globalização” e as vítimas
do imperialismo se chamam “países em via de desenvolvimento”.
O dicionário também foi assassinado pela organização
criminosa do mundo. As palavras já não dizem o que dizem ou
não sabemos o que dizem.
Diego
não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse
o mar. Viajaram para o sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas,
esperando. Quando o menino e o pai, enfim, alcançaram aquelas alturas
de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos.
E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino
ficou mudo de beleza. E, quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando,
pediu ao pai: — Pai, me ensina a olhar!
Dos
medos nascem as coragens. Os sonhos anunciam outra realidade possível,
e os delírios, outra razão. Somos o que fazemos para transformar
o que somos. A identidade não é uma peça de museu,
quietinha na vitrine, mas, sempre assombrosa síntese das contradições
nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio.
Os
cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas, um passarinho me
contou que somos feitos de histórias.
São
muitos os cidadãos que perdem a opinião por falta de uso.
O
medo ameaça.
Se você ama, terá AIDS.
Se fuma, terá câncer.
Se respira, terá contaminação.
Se bebe, terá acidentes.
Se come, terá colesterol.
Se fala, terá desemprego.
Se caminha, terá violência.
Se pensa, terá angústia.
Se duvida, terá loucura.
Se sente, terá solidão.6
Devemos
tomar consciência que os direitos da Natureza e os direitos humanos
são dois nomes da mesma dignidade. E qualquer contradição
é artificial.
Eu
não acredito em caridade. Eu acredito em solidariedade. Caridade
é tão vertical: vai de cima para baixo. Solidariedade é
horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A maioria de
nós tem muito que aprender com as outras pessoas.
A
utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois
passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte corre
dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que
serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.
Na
América Latina, a liberdade de expressão consiste no direito
ao resmungo em algum rádio ou em jornais de escassa circulação.
Os livros não precisam ser proibidos pela polícia: os preços
já os proíbem.
Até
que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias
de caçadas continuarão glorificando o caçador.
A
História nunca diz adeus. A História diz: —
Vejo você mais tarde.
Nós
somos todos mortais, até o primeiro beijo e o segundo copo de vinho.
O
futebol, quando bem jogado, uma dança com uma bola.
A
riqueza do mundo é o resultado da pobreza dos outros.
Devemos começar a reduzir o abismo entre ricos e pobres.7
A
indignação
deve sempre ser a resposta à indignidade. A realidade não
é destino.
Quase
todas as guerras, talvez todas, são guerras comerciais relacionadas
com algum interesse material. Elas estão sempre disfarçadas
como guerras sagradas, feitas em nome de Deus, da civilização
ou do progresso. Mas, todas elas, ou quase todas, foram guerras comerciais.
O
objetivo da tortura não é obter informações.
É espalhar o medo.
Os
desastres são chamados naturais, como se a Natureza fosse o carrasco
e não a vítima.
Cada
vez que uma nova guerra é deflagrada em nome da luta do bem contra
o mal, os que são mortos são todos pobres. É sempre
a mesma história que se repete uma e outra vez e outra vez...
As
paredes são os editores dos pobres.
Na
era do todo-poderoso computador,
os drones são os guerreiros perfeitos. Eles matam sem remorso, obedecem
sem pestanejar e nunca revelam os nomes dos seus mestres.
A
maioria das guerras, dos golpes militares e das invasões
é feita em nome da Democracia contra a Democracia.
Nós,
latinos, somos conhecidos por tagarelar sobre...
Há
alguns escritores que acham que foram eleitos por Deus. Eu não fui.
Eu fui eleito pelo diabo. Isto é claro.
A
divisão do trabalho entre as nações
é que algumas se especializaram em ganhar e outros em perder.
O
mundo está organizado pela economia de guerra e pela cultura da guerra.
Somos
porque ganhamos. Se perdermos, deixaremos de ser.
Não
importa de onde vim, mas, sim, aonde quero chegar.
Um
homem, da Aldeia de Negupá, no litoral da Colômbia, conseguiu
subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que havia contemplado,
lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
— O mundo é isso — revelou — um montão de
gente, um mar de fogueirinhas. Cada pessoa brilha com luz própria,
entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem
fogueiras grandes, fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe
gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que
enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem
queimam; mas, outros incendeiam a vida com tamanha vontade, que é
impossível olhar para eles sem pestanejar. E quem chegar perto pega
fogo.
O
Pato-lunfa (mais-pra-gagá)
(A
Oblata no Gongá)
Eu
fiquei rico, rico, rico,
mas,
desejo muito mais!
Foi-se
o tempo de nanico!
Eu só
vou de beaujolais!
Quero
que o País se foda!
Enriquei
com o mensalão!
Gosto
muito de uma boda;
hoje,
é a vez do petrolão!
Eu
fiquei rico, rico, rico,
mas,
desejo muito mais!
É
de ouro o meu penico;
tenho
iate e muito mais!
Gosto
muito de mufunfa
–
no verão e no inverno!
Sei que
sou o maior lunfa,
e boto
tudo no caderno!
Eu
fiquei rico, rico, rico,
mas,
desejo muito mais!
Meto
bronca e maçarico
pra
arrombar diagonais.
Expert
em açambarcar,
sou o
rei da pilantragem!
Mas,
se tiver que delatar,
foda-se
a camaradagem!
Acabei
duro e desnobre,
com essa
tal de Lava Jato!
Por piedade,
não me cobre!
Agora,
preso, sou um pato!
Safo,
eu topei a premiada,
e não
vou dançar sozinho.
Nessa
dança embananada,
já
escolhi o meu parzinho.
Já
velho-mais-pra-gagá,
vi o
tamanho da ilusão.
Nem oblata
nem gongá
placaram
meu Coração!
O
Pato-lunfa (mais-pra-gagá)