Doutor Lindenberg Butzannya Di Butzannya era um médico ginecologista
famoso de um subúrbio carioca e adorava a sua profissão.
Costumava dizer às suas clientes: — Cuidem bem da pombinha
para ela não ficar doentinha. Mas, apesar de ser um bom
médico, gostava muito de um carteado. Era viciado em stick
poker, um jogo bastante violento mas que na roda em que ele jogava
as apostas só podiam ser dobradas até R$ 8,00. Era baratinho.
Só para distrair. Todas as sextas-feiras ele se reunia com um
grupo de amigos e jogava das nove da noite à uma da madrugada.
Ninguém sabia se o Bubu (apelido carinhoso que os amigos haviam
lhe dado) tinha sorte ou se realmente jogava bem. O fato é que,
quando não ganhava, empatava. Mas o jogo não era caro,
e como já relatei, as apostas tinham limite. O cacife era de
R$ 50,00 e os prejuízos não eram grandes, coisa que o
Bubu não conhecia.
Um certo dia, em 1999,
o Doutor Butzannya foi convidado para jogar em uma roda de empresários.
Ficou na dúvida se aceitaria o convite, pois o cacife era de
R$ 10.000,00 – muito mais do que ele ganhava de salário
em três meses de trabalho. E ele também não tinha
o dinheiro para enfrentar aquela turma. Mas, jogador, viciado, vislumbrou
uma oportunidade de ganhar um troco, ainda que jogador goste mesmo é
de contar estória e não se importe muito em ganhar ou
perder. Contou o fato para os parceiros de jogatina, que decidiram fazer
uma vaquinha para entrarem de sócios no jogo. Afinal o Bubu era
ganhador e, quem sabe, poderia ganhar uma graninha daqueles empresários.
E assim foi informalmente constituída uma sociedade. Quem entrou
com mais foi o Adoniran, que meteu na suça R$ 5.000,00.
E os outros puseram o que puderam. Bubu se prontificou a botar no jogo
R$ 2.000,00, mas pediu que ninguém contasse para a mulher, porque
se ela soubesse seria capaz de fazer um escândalo. Ela já
aturava de má vontade aquele jogo às sextas-feiras, mas
consentia porque o Bubu era bom marido, trabalhador e o jogo era quase
a leite de pato. Mas se viesse a saber que ele se metera em
um jogo com cacife de R$ 10.000,00 iria ficar furibunda e era capaz
de pedir o divórcio. Jogo de R$ 50,00 era pecado venial, mas
jogo de R$ 10.000,00 era pecado mortal.
Enfim, o jogo foi armado
para uma sexta-feira às dez horas da noite, e a casa onde aconteceria
a sessão ficava em uma rua da Gávea. Ao chegar ao endereço
que lhe deram, o Doutor Butzannya ficou apavorado. Em frente à
casa – que era uma verdadeira mansão construída
no centro de um terreno enorme – havia três seguranças
armados de metralhadora em punho no meio da rua. Depois de se identificar
foi autorizado a entrar na propriedade. Estacionou em um pátio
muito amplo onde havia uns dez carros, a maioria importados. Sua preocupação
aumentou porque, no interior da propriedade, era segurança armado
pra todo lado, e ele ouvira um deles comentar: — Lá
vai o otário.
Otário é
o cacete, vou deixar esses empresários duros, pensou o bom
ginecologista com os seus botões. Respirou fundo e se dirigiu
para a mansão hollywoodiana à sua frente.
Ao entrar na mansão
foi muito bem recebido e os empresários, depois de se
apresentarem e de conversarem um pouco com o Doutor, propuseram que
o jogo começasse. O jogo, conforme combinado, seria stick
poker de cinco cartas – que o Doutor Butzannya conhecia
muito bem – uma carta fechada e quatro cartas abertas valendo
apostar a frente.
Com estas regras, o
jogo seria violentíssimo, pois um parceiro poderia perder um
cacife em uma única parada. Mas o Doutor Butzannya não
deu parte de fraco; agüentou a barra calado. Ele já
sabia que seria assim mesmo. Ficou combinado que os baralhos seriam
trocados a cada hora e que nenhum parceiro poderia sair do jogo ganhando.
Antes de começar o jogo, cada um dos jogadores colocou os R$
10.000,00 sobre a mesa. Não havia fichas. O jogo era a dinheiro
vivo, logo, é claro, acabou o milho, acabou a pipoca. Um baralho
foi aberto e separadas as cartas do 6 ao rei mais os quatro ases. Eram,
portanto, 36 cartas em jogo – nove cartas com quatro naipes cada
uma. Não havia um carteador, e, desta forma, as cartas seriam
dadas por cada um na sua vez. Também ficou estabelecido que nenhuma
parada seria anulada, acontecesse o que acontecesse. Esse era
um ponto de honra da roda que não era jamais negociado. Por esta
norma, o parceiro que estivesse carteando, além de ter que cantar
as jogadas, seria responsável pelo que pudesse ocorrer de anormal
na parada. O jogo começou com seis jogadores, porque,
segundo o dono da casa, o sétimo,
o Leroy, estava atrasado. Entraria quando chegasse. Quando
o jogo ia começar os parceiros foram gentis: convidaram o Doutor
Butzannya para dar início ao carteado, já que era a primeira
vez que ele participava da roda. O Doutor Butzannya ficou feliz com
a deferência e pegou o baralho para embaralhar.
Logo que o bom Doutor
começou a embaralhar apareceu um garçom muito bem vestido
e ofereceu whisky escocês para todos. O Doutor Butzannya
polidamente recusou e continuou a embaralhar enquanto todos se serviam
do whisky. Jogo não casa com bebida. Esses caras
vão ficar bêbados e eu vou limpá-los rapidinho,
pensou o médico que havia se especializado e se dedicado a vida
inteira ao estudo da fisiologia e da patologia do corpo da mulher e
de seu aparelho genital, mas que, no fundo no fundo, achava que era
um grande jogador de stick poker. Enquanto embaralhava pensava
nos onze condutos musculomembranosos que ele examinara naquele dia.
Tentou concluir se gostava mais de examinar vaginas ou de stick
poker. Não conseguiu chegar a uma conclusão definitiva,
pois a emoção havia tomado conta de todo o seu ser. Seu
coração estava batendo muito rápido e sentia que
estava meio ofegante. Tentou se controlar, mas não obteve êxito.
Estava mesmo muito emocionado. Stick poker era muito melhor
do que examinar vaginas, foi seu último pensamento antes de distribuir
as cartas.
Então, o jogo
começou. O Doutor Butzannya deu uma carta fechada para cada parceiro,
e, em seguida, deu uma aberta para cada um. As cartas abertas foram:
1º jogador: Rei
de paus
2º jogador: 10
de copas
3º jogador: 7 de
paus
4º jogador: Ás
de ouros
5º jogador:
Rei de ouros
Doutor Butzannya: Dama
de ouros
— Fala o Ás
de ouros — cantou o Doutor Butzannya.
— R$ 200,00
pra começar — disse o parceiro que tinha o único
Ás à vista.
O Rei de ouros acompanhou,
e o Doutor Butzannya, depois de consultar a chave (a carta fechada)
também acompanhou. Ele tinha na chave uma Dama de paus. Era um
par colado logo na primeira mão. Estou com sorte, pensou
ele, vou estraçalhar esses empresários bobocas.
O Rei de paus, o 10
de copas e o 7 de paus passaram. Ficaram, assim, três no golpe.
Nesse momento chegou
quem faltava: o Leroy. Todos
o cumprimentaram e o golpe prosseguiu com o Doutor Butzannya
dando as cartas. Mas o Leroy
não perdeu tempo: pegou um copo e se serviu de uma dose generosa
de whisky. Depois voltou para assistir aquele golpe.
Ninguém gosta de peru bisbilhotando um jogo, por isso
o Leroy ficou a meia distância vendo o que acontecia.
Para o Ás, um
sete de ouros; Valete de paus para o Rei; e Rei de espadas para a Dama
do Doutor Butzannya.
— Continua
o Ás com palavra — cantou o Doutor Butzannya.
— R$ 300,00
— falou o Ás.
— Vou botar
mais. Quero ver se você tem um Ás aí embaixo —
falou o parceiro que tinha o Rei de ouros acompanhado do Valete de paus.
— Tudo R$ 500,00.
O Doutor Butzannya estremeceu,
pensou e acabou entrando na parada. O Ás também
só acompanhou, o que parecia indicar que ele não deveria
ter um Ás na chave, pois se tivesse talvez tivesse repicado.
Cartas. O Ás
ganhou um 7 de paus e ficou com par de 7 à vista. O Rei ganhou
um 8 de ouros. E o Doutor Butzannya recebeu uma Dama de copas. Fez par
de Damas à vista; com a Dama de paus que ele tinha na chave fez
uma trinca e estava superior e à vontade no golpe. Aquela
noite parecia ser sua noite de sorte. Esses caras vão dançar,
pensou o especialista em vaginas.
— Falo
eu que tenho o par de Damas. R$ 625,00.
— Doutor Butzannya,
o que é isso? Que aposta esquisita! Assim o senhor espanta a
parceirada — falou rindo o parceiro que tinha o par de 7
à vista. — Tô fora parceiro. Esse meu pareco
de 7 é muito pequeno para enfrentar você. E assim
ficou confirmado que ele não possuía mesmo um Ás
na chave.
O Rei pensou e acompanhou.
— Vou ver aonde isso vai parar — disse o dono do
Rei de ouros se fazendo de preocupado. Ele podia se dar ao luxo de fazer
esse comentário porque, aparentemente, estava inferior no golpe.
O Doutor poderia ter uma trinca se tivesse uma Dama na chave. De qualquer
maneira, ele não deu uma Dama na chave para o Doutor Butzannya.
Se tivesse dado, certamente não continuaria no golpe.
Teria passado. Só um trouxa dançarino joga esse jogo sabendo
que está inferior na parada. Optou por pensar que o
Doutor Butzannya tinha um Ás na chave e pagou a aposta.
Última carta.
Rei de copas para o Rei e nove de ouros para o Doutor Butzannya.
A parada, então,
ficou assim:
5º jogador: Carta
fechada, Rei de ouros, Valete de paus, 8 de ouros e Rei de copas.
Doutor Butzannya: Carta
fechada (que, como sabemos, era uma Dama de paus), Dama de ouros, Rei
de espadas, Dama de copas e nove de ouros.
À vista, então,
ficaram o par de Reis e o par de Damas.
— Só
ficamos nós dois. O senhor, que tem o par de Reis à vista,
está com a palavra — disse o Doutor Butzannya.
— Então,
R$ 1.000,00 pra brincar — apostou o empresário.
O Doutor Butzannya
sentiu um ligeiro tremor na perna esquerda e uma fisgada em seu pênis.
Ele sabia que havia ganho o golpe, pois tinha trinca de damas
e seu parceiro poderia, no máximo ter dois pares. Não
havia mais nenhum Rei para ele fazer uma trinca. Estava conclusivamente
superior no golpe. Com moderação, própria
de um ginecologista que adorava a sua profissão, disse: —
Vou botar mais um pouquinho. Tudo R$ 1.285,00.
O par de Reis à
vista nem pestanejou. Só disse duas palavras: — A frente.
E empurrou para o centro da mesa todo o dinheiro que havia na sua frente,
isto é, o que restava do cacife inicial de R$ 10.000,00. Era
muita grana.
O Doutor Butzannya,
delicadamente, comentou: — Infelizmente o senhor perdeu. Os
seus dois pares não são suficientes para me ganhar. Paguei.
Qual é o seu jogo?
— Perdi? Dois
pares? Eu não tenho dois pares. Eu tenho uma trinca de Reis?
— E virou a chave mostrando um Rei de paus.
O Doutor Butzannya,
perplexo, disse: — Não é possível. Na
primeira mão aquele parceiro passou com um Rei de paus à
vista. E, apontando para o jogador-empresário
que havia passado na primeira mão com um Rei de paus, começou
a ficar vermelho como um pimentão maduro.
— É,
pode ser, mas eu não me lembro — disse o jogador que
'ganhara' o golpe 'honestamente', segundo as normas
da casa.
— Vamos conferir
esse baralho — disse o dono da casa. E emendou: — De
qualquer maneira, Doutor Butzannya, o senhor sabe que não se
anula uma parada no nosso jogo. Isso estava combinado e o senhor concordou.
De mais a mais, quem deu as cartas foi o senhor. Vamos conferir.
Feita a conferência
do baralho, a surpresa foi geral: o baralho estava com 37 cartas. Havia
um Rei de paus a mais. Exatamente o segundo Rei de paus que estava na
chave do parceiro ao lado do Doutor Butzannya e que lhe tomara 'honestamente'
todo o dinheiro. Quando o Doutor Butzannya – que agora estava
mais para Doutor Bubu do que para outra coisa – viu o quinto Rei
de paus no meio do baralho – que não poderia estar ali
– começou a sentir mal. Nada mais parecia fazer sentido.
Copas, paus, ouros, espadas, vaginas, endométrios... Aquele carteado
havia se tornado uma confusão dos infernos. Sua esposa não
poderia saber jamais daquela aventura. Se viesse a saber...
— É
parceiro. Infelizmente aqui é assim. Perdeu, perdeu. Não
se anula nada. — Comentou o ganhador. — Daqui pra
frente o baralho ficará correto. Vamos tirar esse Rei de paus
dobrado. O que é triste é que é a primeira vez
que o senhor vem aqui e toma essa trombada logo na primeira mão.
Só posso lhe pedir desculpas e desejar melhor sorte na seqüência
do jogo. Mas nossas regras são implacáveis. Para todos
nós. Não há parada anulada.
— Mas...
Eu... Eu não posso continuar. Meu dinheiro acabou. —
Disse quase chorando o Doutor Butzannya Bubu.
— Infelizmente
Doutor, nós aqui também só jogamos com dinheiro
vivo. Nem cheque nós aceitamos. Quando acaba o dim-dim o jogo
chega ao fim. É o nosso lema. — Comentou o Leroy que
assistira a tudo calado. — Mas não se preocupe. Eu
já senti que o senhor é um parceirão. O senhor
terá outras oportunidades. Nós nos reunimos aqui todas
as sextas-feiras e o senhor será sempre bem-vindo. Com dinheiro
vivo, claro.
— Mas...
— balbuciou arrasado o pobre Doutor Bubutzannya. Tremendo, vermelho
como um pimentão maduro e suando muito, abaixou a cabeça,
respirou fundo, despediu-se educadamente e foi embora. Ele poderia fazer
mais o quê?
Ao passar pelo jardim
da suntuosa mansão, ouviu um dos seguranças cochichar:
— Esse otário durou pouco. Aposto que foi o Leroy que
'escalpelou ele'. Dessa vez o Doutor Butzannya não revidou
mentalmente a agressão. Estava muito tonto e com uma vontade
imensa de vomitar. Quando chegou à porta do seu carro, vomitou
mesmo. Vomitou a alma, o Rei de paus dobrado e mais um pouco. Ao longe
um cachorro latiu. Pertinho um pássaro piou.
É. O Doutor Butzannya,
médico ginecologista famoso e que adorava a sua profissão,
havia sido escalpelado vivo, mas não pelo Leroy, que era conhecido
como Leroy Brown – um empresário-banqueiro de
bicho fortíssimo e que tinha um péssimo humor. Quem o
depenara honestamente fora o Chulé, outro empresário-banqueiro
de bicho da Zona Oeste, que tinha mesmo um chulé infernal. Mesmo
de sapato o fedor fedia a fedor podre putrefaciente. Mas, ainda que
não houvesse acontecido o trágico incidente, e que, a
bem da verdade, no meu entendimento, a parada devesse ter sido
anulada – e aconteceu porque, incompreensivelmente, o baralho
não foi examinado carta por carta e naipe por naipe – o
Doutor Butzannya provavelmente não escaparia. Acabaria perdendo
mesmo e ficando com cara de Bubu chorão. Como ficou. Os caras
eram profissionais e o Doutor Butzannya apenas um amador que era viciado
em stick poker. Quando jovem talvez tivesse assistido A
Mesa do Diabo (The Cincinnati Kid), filme de 1965, e pensado
que poderia fazer a mesma coisa que o Edward G. Robinson fez com o Steve
McQueen naquele stick poker. Mas isso só acontece no
cinema. Quem se mete com malandro acaba caindo duro. O Steve McQueen,
no filme, era malandro e profissional de baralho, mas o Edward G. Robinson
era um pouco mais malandro e mais profissional do que ele e o deixou
durinho em um único golpe. Exatamente o último!
Quem subestima o adversário
acabará sempre se enganando e dando a ele poderes inimagináveis
sobre si. E como escreveu alguém: Quem subestima o agora,
pode pagar o preço do desencanto depois... Às vezes,
paga na mesma hora!
Essa foi a sexta-feira
nigérrima do Doutor Lindenberg Butzannya Di Butzannya –
um médico ginecologista famoso de um subúrbio carioca
que adorava a sua profissão... mas que acabou tendo que enfrentar
o dissabor de passar por um Bubu choramingão por se achar um
ás do stick poker. Eu vou ficar aqui torcendo para ele
não fazer outra besteira igual a essa.
Websites Consultados
http://es.geocities.com/gtanunciata/historia.html
http://www.wmonline.com.br/?area=figuras-lista&categoria=Baralho&pagina=27