Rodolfo Domenico Pizzinga


 

 

 

O matemático e filósofo português José Leonardo Coimbra nasceu em Borba de Godim, atual Vila da Lixa, em 30 de dezembro de 1883, e faleceu no Porto em 2 de janeiro de 1936. Em 1912, concorreu com a tese O Criacionismo para o provimento da vaga de Professor Assistente de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Este trabalho, extremamente denso e inacessível em sua integralidade àqueles não afeitos à matemática superior, inscreve-se, no que concerne à Filosofia, em uma dimensão espiritual que se opõe, fundamentadamente, a todos as formas de Empirismo e de Idealismo.

 

Entretanto, a tríade metafísica de Leonardo mais flagrante e não menos significativa aparece na obra A Alegria, a Dor e a Graça, na qual o trinitarismo leonardino, neste particular, apresenta-se como equivalente à infância, à hominalidade e à eternidade. Todavia, o pensador lusíada Josué Pinharanda Gomes (16 de julho de 1939), em seu livro A Teologia de Leonardo Coimbra, reflete sobre esse ternário metafísico da seguinte forma: Quem estiver habituado à liturgia do rosário mariano facilmente verá, nesses três instantes, os mistérios gozosos (Alegria), os mistérios dolorosos (Dor) e os mistérios gloriosos (Graça). Entretanto, penso que a postulada influência da liturgia do rosário mariano, sugerida por Pinharanda, só pode ter acontecido – se realmente aconteceu! em Leonardo Coimbra, inadvertidamente e/ou inconscientemente, pois o Pensador, na época em que escreveu a obra, estava afastado do Catolicismo, com o qual só viria a se reconciliar em seus últimos dias. Por este motivo, acredito, não utilizaria conceitos e categorias da religião que temporariamente abandonara, para sustentar suas lucubrações metafísicas.

 

O fato é que a Alegria, segundo Leonardo, é o primeiro termo da tríade metafísica ascensionária humana, tendo sido qualificada pelo Pensador como infinita. Toda a Alegria do Universo, diz Leonardo, é a posse plena da sua harmonia, a integral memória do seu ser e da triunfal ascensão do Sol levante ao meditativo sorriso do pensamento, espraiando-se em constantes e onduladas vitórias. A Alegria foi simbolicamente utilizada na reflexão leonardina como representativa da criação e da ordenação do caos.

 

A Dor, segundo termo, corresponde a uma incessante pergunta que conduz a um conhecimento mais elevado, e, por isto, é o caminho da redenção. É o sentimento de separação, de insubsistência e de fragilidade. A Dor tem seu equivalente na idade adulta. É o tempo dos equívocos, das dúvidas e dos conseqüentes sofrimentos.

 

A Graça, último termo, é o sorriso do Universo. É a vitória do Uno sobre o múltiplo, da liberdade sobre a obrigatoriedade. É a apreensão do Universal no particular. A Graça é o próprio Universo que é presente, por dentro e em espírito, em cada parcela – átomo, mundo ou criatura. É o tempo da ressurreição e da fome do Sumo Bem e do próprio Deus. Poeticamente, Leonardo combinou os três momentos em duas frases que sintetizam todas as suas lucubrações e especulações metafísicas em A Alegria, a Dor e a Graça. Citam-se:


A Graça é, antes da Dor, o sorriso da Alegria; é depois da Dor, a unidade reconquistada...

A Alegria canta; a Dor procura e atende; a Graça é.

 

Já Santo António de Lisboa, nascido Fernando Martim de Bulhões e Taveira Azevedo (Lisboa, 15 de agosto de 1195 – Pádua, 13 de junho de 1231), em suas disquisições teológicas, entendeu que a Noite Mística (Noite Negra ou Noite Obscura) da alma é o vestibular da ascensão mística. Em diversas predicações, Santo António referiu-se à Noite Mística como processo triádico necessário à purificação e preparação da alma para atuar em um plano mais elevado de consciência. Neste sentido, o Santo referiu-se à Noite como a obscuridade dos místicos – mysticorum obscuritas. A Noite não tem, ordinariamente, a duração da noite física. A Noite tem começo (Conticínio), intermédio (Meia-Noite) e fim (Aurora), e o tempo de duração é individual, pessoal. Durante sua manifestação, a Noite tem e traz conseqüências terríveis, dentre as quais o Santo aponta: privação da luz da razão; o ser torna-se frágil e o conhecimento adequado de nada adianta; o Eu Interior fica em trevas e o homem é tentado a tudo abandonar (trevas da consciência); a claridade tentadora da prosperidade mundana entenebrece a alma e se transmuda em caligem da morte; a noite é um amplo campo de adversidade em que a alma anda às apalpadelas sem consciência de si mesma. A Noite é, pois, uma etapa da reintegração (regeneração) do homem à sua imaculada, cósmica e divina origem, da qual, em verdade, jamais esteve apartado. E, nesse aprendizado, terá que eliminar, minimamente, a soberba do coração, a lascívia da carne, a avareza do mundo, a ira, a vanglória, a inveja e a gula, que compõem as sete violações capitais enunciadas na teologia católica. Mas é preciso muito mais!

 

O Conticínio (Conticinium) é a primeira fase da Noite em que tudo está silente. É o tempo em que são satisfeitas as seduções blandiciosas da carne – carnis suavia blandimenta. O Santo ensinou que, para vencer as tentações próprias do Conticínio, é preciso meditar sobre as iniqüidades praticadas, considerar o exílio (e desejar ardentemente a reintegração) e contemplar o Criador. Auxiliado pela razão e pela discrição, o principiante vai subindo, degrau por degrau, a escada da crucifixão: a razão dominando os sentidos e esclarecendo sobre o bom caminho, com a transrazão esperando para se manifestar. Assim, derramando lágrimas, envergonhado, vexado e cabisbaixo vai o postulante trilhando a Senda que levará à Illuminação. Lentamente, os sentidos físicos e os apetites do corpo vão sendo dominados, e os incipientes passam para o estádio de aproveitantes (fase da Meia-Noite). Porém, no que concerne ao sofrimento moral, este se vai intensificando. É o reconhecimento tácito da queda, do afastamento da LLuz, do exílio de Deus, da consciência plena da ainda permanência nas trevas. É a angústia por desejar alcançar a LLuz Maior, por desejar ardentemente realizar o (desde sempre) Cristo Interno e, em graça total, segundo o Santo Lisboeta, contemplar o Criador. É o desespero por ter, tenuemente, vislumbrado a possibilidade de se tornar uno com o Pai – o Deus de seu Coração – e de não ter podido ainda realizar o sonho dos sonhos. É uma dor lancinante. Um desespero sufocante. Um horror atemorizante. É a Noite Negra. É a crucificação individual. É o inferno interior. É a compreensão do exílio da Santa Vida e o afastamento do Sumo Bem. A Noite Negra traz à lembrança a fase negra da Crisopéia.

 

A Meia-Noite (Media Nox) é segunda fase da Noite Obscura e equivale, para Santo António, ao período de luta espiritual em que a alma, vendo-se no exílio deste mundo, dele procura se libertar... para, depois... poder chegar à contemplação de Deus e unir-se com Ele por amor. O aproveitante (aproveitado), já convencido do erro da vaidade, suplica – cheio de fé, de amor e de esperança – força para suportar o exílio. À medida que acorda de seu sono-sonho ilusório e multimilenário, recorda-se da vida antiga e, envergonhado, humilhado, sentindo-se desprezível, chora amargamente. É o pleno reconhecimento do erro-descaminho. Nu, perante si mesmo e perante o Criador, confessa-se ao Deus de seu Coração e clama por perdão. E perdoa aos que o perseguem e caluniam, aos que o aviltam e ofendem, aos que escarnecem, pois sabe que esses não o compreendem, mas que, inexoravelmente, um dia subirão também o primeiro degrau da Noite Negra. E se compromete a, nessa hora, estar presente para ajudar no que for possível e permitido, para amparar em cada queda, para consolar quando a dor e a vergonha forem mais intensas. Este é o verdadeiro sentido do perdão-compreensão, da humildade-piedade, da fraternidade-unicidade e do amor universal-impessoal em um sentido ao mesmo tempo teológico-teodiceico e Místico-Iniciático. É a tomada de consciência pelo aproveitante de que todos, em última instância são unos entre si e com o Pai, ainda que exilados. A Meia-Noite faz recordar o branco da Grande Obra. É também uma possibilidade para explicar o Mito da Caverna, de Platão. Voltar para ajudar e servir é um supremo ato de sacrifício e de amor. Renunciar à uma meritória Ascensão e a uma mais elevada Illuminação (por exemplo do Plano Sambogakayco ao Plano Dharmakayco) – cujo exemplo maior é o de Jesus, o Cristo – é um sacrifício espiritual maior ainda. Aqueles que voltaram sabem. Entretanto, não há essa referência consignada na obra antoniana.

 

A Aurora (Aurora) – bendita Aurora – é o último estágio da Noite Mística, e se assemelha ao vermelho da Alquimia Operativa. Santo António assim a delineia:

 

É a infusão da graça divina.
A alma pôde... justificar-se ou tornar-se justa.
A alma se torna reta e ereta...
A Aurora é o fim da Noite e o princípio do Dia.
Ela é o fim da miséria e a entrada na beatitude...
É o último estádio da ascensão espiritual – o estado perfeito...
A alma sente-se, agora, invadida por indizível alegria.
É a contemplação do Criador.

 

 

 

 

Peregrinação Illuminante

 

 

 

Não desejo, por nenhum ângulo, contraditar, desqualificar ou corrigir nem Leonardo nem António, mas penso que estes dois exemplos da Lei Universal do Triângulo (metafísico: Alegria, Dor e Graça; e teológico: Conticínio, Meia-noite e Aurora) possam ter, em termos místicos, uma outra definição, um outro movimento. E assim, especulativamente, proponho para reflexão, fundindo os dois exemplos na ordem Dor-Conticínio —› Alegria-Meia-noite —› Graça-Aurora, as sete tríades correspondentes ou as vinte e uma categorias educacionais Místico-Iniciáticas infra-relacionadas. Antes, a animação em flash abaixo, já apresentada em trabalho anterior, mostra e rememora o funcionamento cósmico da Lei Universal do Triângulo.

 

 

 

 

Lei Universal do Triângulo

 

 

 

 

Dor – Obrigatoriedade.

Alegria – Ininteligibilidade.

Graça – Liberdade.

 

 

Dor – Monocromia.

Alegria – Policromia.

Graça – Alquimia.

 

 

Dor – Unidirecionalidade.

Alegria – Caleidoscopicidade.

Graça – Omnidirecionalidade.

 

 

Dor – Negligência.

Alegria – Indolência.

Graça – Conseqüência.

 

 

Dor – Conticínio.

Alegria – Meia-noite.

Graça – Aurora.

 

 

Dor – Encarnação.

Alegria – Retribuição.

Graça – Illuminação.

 

 

Dor – Tese (ou Antítese).

Alegria – Antítese (ou Tese).

Graça – Síntese.1

 

 

 

Æternum Sæcula

 

 

 

 

 

 

 

 

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Nota:

1. No cartesianismo e no leibnizianismo, a síntese é o método cognitivo usado na investigação de realidades sensíveis e inteligíveis, que, partindo da evidência imediata dos fragmentos de um objeto, alcança uma formulação teórica de sua totalidade, indo da constatação de elementos simples à explicação de combinações complexas. No kantismo, é a atividade fundamental da consciência que, anteriormente a qualquer procedimento analítico, constitui e amplia o conhecimento e o pensamento especulativo, por meio da reunião de representações sensitivas e conceituais. Na dialética hegeliana, é a fusão de uma tese e de uma antítese em uma noção ou proposição nova que, em um nível superior de entendimento ou conhecimento, as combina, conservando o que há de legítimo em cada uma. No aristotelismo, a síntese é o ato intelectual que constitui uma proposição, consistindo na reunião de um sujeito e um predicado. Misticamente, a síntese pode ser entendida como uma compreensão triangular, progressiva e ascensional que desemboca em uma espécie de Illuminação parcial, relativa e provisória. Como o místico reconhece que nada é ou poderá vir-a-ser definitivo, decisivo, determinante, cabal, inapelável, ou seja, que deva permanecer para sempre como coisa fixa e final, esta síntese é temporária – uma simples volta na ilimitada espiral cósmica. Em um dado momento de sua peregrinação, a síntese se transformará em uma tese, que, cedo ou tarde, terá que enfrentar dialeticamente uma antítese, daí decorrendo uma nova e mais atualizada síntese. Cristalizações da consciência, apegos pertinazes, conceitos irredutíveis, verdades imutáveis, repetições comportamentais et cetera – como bem explicou Leonardo Coimbra – são cousismos, que, em certo sentido, não deixam de ser semelhantes às reificações, isto é, processos em que uma ou diversas realidades sociais ou subjetivas de natureza dinâmica e criativa passam a apresentar determinadas características de um objeto inorgânico – inamovibilidade, automatismo, passividade – perdendo autonomia e autoconsciência (ainda que os objetos inorgânicos não sejam efetivamente passivos e inamovíveis, como pretende simbolizar o background animado – tetrahedron – deste estudo).

 

 

 

 

Fundo musical:

Do Re Mi (do filme The Sound of Music)
Música: Richard Rodgers
Letra: Oscar Hammerstein II

Fonte:

http://www.downloading-music.org/Doremi.html