A DIVINA COMÉDIA
(Fragmentos do Inferno)

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

 

 

 

Dante Perdido na Selva Escura
(Ilustração de Gustave Doré)

 

 

 

 

Introdução e Objetivo do Estudo

 

 

 

A Divina Comédia (do italiano Commedia, mais tarde batizada de Divina por Giovanni Boccaccio), escrita no dialeto toscano, matriz do italiano atual, por Dante Alighieri (Florença, 1265 – Ravena, 1321) entre 1307 e a sua morte em 1321, é um poema épico da literatura italiana e da literatura mundial. Os mais variados pintores de todos os tempos criaram ilustrações sobre ela, com destaque para Sandro Botticelli, Gustave Doré e Salvador Dalí.

 

A Divina Comédia está dividida em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada uma delas está dividida em cantos, compostos de tercetos. A composição do poema é baseada no simbolismo do número 3 (número vinculado à Santíssima Trindade, assim como, também, simboliza o equilíbrio e a estabilidade em algumas culturas, e que também tem relação com a Lei Universal do Triângulo). A obra possui três personagens principais: Dante, que personifica o homem; Beatriz que personifica a fé; e Vírgilio que personifica a razão. Cada estrofe da Divina Comédia tem três versos e cada uma de suas três partes contêm 33 cantos.

 

A Divina Comédia propõe que a Terra está no meio de uma sucessão de círculos concêntricos que formam a Esfera Armilar1, e o meridiano onde é Jerusalém hoje seria o lugar atingido por Lúcifer ao cair das esferas mais superiores – e que fez da Terra Santa o Portal do Inferno. Portanto, o Inferno responderia pela depressão do Mar Morto, onde todas as águas convergem, e o Paraíso e o Purgatório seriam os segmentos dos círculos concêntricos, que, juntos, respondem pela mecânica celeste e os cenários comentados por Dante em um poema que envolve todos os personagens bíblicos do Primeiro e do Segundo Testamento. Na Divina Comédia o próprio autor, Dante Alighieri, realiza uma jornada espiritual pelos três reinos do além-túmulo. Seu guia e mentor nessa empreitada é Virgílio, o próprio autor da Eneida.

 

Este estudo pretendeu garimpar da Divina Comédia alguns fragmentos iniciático-educativos contidos em sua primeira parte – Inferno – que permitirão ao leitor, se achar conveniente, levar a efeito uma reflexão sincera sobre sua atuação nesta encarnação. Digo desta forma, porque só durante o processo encarnativo é possível modificar concertadamente e atualizar harmoniosamente o que pode e deve ser modificado e o que pode e deve ser atualizado. Ora et Labora; Solve et Coagula. Dante Alighieri era um Iniciado; mas na Divina Comédia, preponderantemente, utilizou imagens religiosas para transmitir sua mensagem, pois eram fáceis de ser compreendidas na época em que viveu. É necessário, assim, ler as entrelinhas da obra; de outra maneira, fica-se enfiado no dogmatismo católico, nomeadamente medieval, que mais entenebrece do que esclarece.

 

Finalmente, devo esclarecer que tive que fazer algumas poucas e econômicas edições no conteúdo dos fragmentos dantianos, para poder acomodá-los a este tipo de trabalho. Todavia, não interpolei o pensamento do autor, o que seria uma heresia. Eu não quero, depois de morrer, ter a desventura de velejar pelo Rio Aqueronte2 e de dar de cara com o Caronte3 espumando de raiva por todos os poros, me acusando de hæretìcus. E como também não quero ser acusado de ser moleirão, darei continuidade ao estudo com o Purgatório e o Paraíso.

 

 

 

 


— Divina Comédia —

Fragmentos do Inferno

 

 

 

 

O Inferno, segundo Dante, é formado por 9 Círculos, 3 Vales, 10 Fossos e 4 Esferas. Essa organização foi baseada na teoria medieval de que o Universo era formado por círculos concêntricos. O Inferno foi criado da queda de Lúcifer do Céu. Ele se torna progressivamente mais profundo a cada círculo, pois os pecados são mais graves. Portanto, os pecados menos graves estão logo no ínicio, e os mais graves no final, onde os sofrimentos são mais angustiantes, mais terríveis e mais dantescos.

 

O Portal do Inferno não tem portas ou cadeados, somente um arco com um aviso que adverte: uma vez dentro, deve-se abandonar toda a esperança de alcançar ou de conquistar o Paraíso, pois do Inferno não se pode sair. Não há perdão ou esperança para os infernados. Deixai toda esperança, ó vós que entrais! A alma só tem poder de escolha enquanto estiver viva; portanto, enquanto estiver viva deve se decidir pelo Paraíso ou pelo Inferno. Depois de morta, a alma perde a capacidade de raciocinar e de tomar decisões. Na realidade, segundo este entendimento, Deus, logo após a morte, toma todas as decisões pela alma, e, imediatamente, transfere a responsabilidade para os demônios do Hades, que cuidarão dela por toda a eternidade e mais seis meses.

 

 

 

 

 

 

Há, ainda, na obra dantiana, um Vestíbulo do Inferno ou Ante-Inferno, local metafísico onde estão as almas dos mortos que não podem ir nem para o Paraíso nem para o Inferno. O Paraíso e o Inferno são estados onde uma escolha é permanentemente recompensada (de forma positiva ou negativa); o Vestíbulo do Inferno é um estado onde a negação da escolha também é recompensada, uma vez que se omitir ou recusar uma escolha é escolher a aparentemente segura indecisão. O Vestíbulo é a morada dos indecisos, dos covardes e dos que passaram a vida em cima do muro; enfim, daqueles que jamais quiseram assumir obrigações de cunho social, jamais quiseram se comprometer com o Bem, com a Beleza e com a Paz Profunda e jamais quiseram tomar decisões firmes e positivas (ou negativas, quando o negativo assume valor positivo).

 

 

 

Fragmentos

 

 

A loba avançava, lentamente, e me fazia descer, me empurrando de volta para aquele lugar onde a luz do Sol não entra. (Inferno, Canto I).

 

Ó poeta4 que me guias, julga minha virtude e dize se é compatível com o caminho árduo que me confias. (Inferno, Canto II).

 

Tua alma está tomada pela covardia, que tantas vezes pesa sobre os homens, os afastando de nobres empreendimentos, como uma besta assustada pela própria sombra. (Inferno, Canto II).

 

Devem-se temer as coisas que de fato têm o poder de nos causar mal, e mais nada, pois nada mais existe para temer. (Inferno, Canto II).

 

Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate! [Deixai toda esperança, ó vós que entrais!] (Inferno, Canto III).

 

A piedade me clareia o rosto, por causa da angústia das gentes desamparadas que aqui sofrem. (Inferno, Canto IV).

 

Não há maior dor do que lembrar da felicidade passada. (Inferno, Canto V).

 

O ser mais perfeito mais sente, seja o bem, seja a ofensa. (Inferno, Canto VI).

 

Pape Satàn pape Satàn aleppe! (Silêncio! Silêncio, Satan! Vá, e nos deixe em paz). (Inferno, Canto VII).

 

Nossa descida não é sem propósito, pois é algo que se quer nas alturas! (Inferno, Canto VII).

 

Nos clérigos, nos papas e nos cardeais, a avareza se manifesta mais facilmente. (Inferno, Canto VII).

 

De nada adianta os homens brigarem pela fortuna. Pois, todo o ouro que está ou já esteve sob a Lua não comprará um minuto sequer de descanso... (Inferno, Canto VII).

 

Toda a maldade é alcançada ora através da violência ora através da fraude. Embora ambas sejam odiadas pelo céu, a fraude, por ser uma perversão exclusiva do homem, desagrada mais a Deus... Um homem pode praticar dois tipos de fraude: contra pessoas que confiam nele ou contra estranhos que podem suspeitar dele. Este último tipo só destrói o vínculo do homem com a Natureza e é punido no oitavo círculo onde encontraremos hipócritas, aduladores, ladrões, falsários, simoníacos, sedutores e trapaceiros. O primeiro tipo de fraude desfaz não só o vínculo do homem com a Natureza, mas também aquele vínculo de confiança estabelecido com outros homens. É, portanto, no menor dos círculos, no nono e último, junto com Dite (Lúcifer), onde são punidos os que traíram aqueles que neles confiaram. (Inferno, Canto XI).

 

As três coisas que ao céu mais desagradam são: a incontinência, a malícia e a bestialidade. (Inferno, Canto XI).

 

Convém ao homem tirar da Natureza e de sua Arte os meios para a sua sobrevivência. Mas, o usurário, ao seguir outros caminhos, agride a Natureza e a Arte, que dela deriva, pois em outra coisa (o dinheiro) põe suas esperanças. (Inferno, Canto XI).

 

Olha lá para baixo que em breve avistarás o rio de sangue fervendo as almas dos violentos contra seus semelhantes. (Inferno, Canto XII).

 

O que um dia fui quando vivo, continuo a ser, agora, morto! (Inferno, Canto XIV).

 

Estou aqui por que fui um adulador e enganei pessoas com minha língua perversa. (Inferno, Canto XVIII).

 

Se querem saber quem eu sou, saibam que um dia fui papa... Por tanto procurar embolsar ouro naquele mundo, aqui eu mesmo fui embolsado. Neste buraco, abaixo da minha cabeça, estão empilhados todos aqueles que me precederam, pecando por tráfico de coisas divinas, espremidos nas fissuras da pedra. (Inferno, Canto XIX).

 

Quem pode ser mais cruel que o homem que tenta controlar a vontade divina? (Inferno, Canto XX).

 

Lá aprendi a arte da barataria.5 Agora pago a conta neste caldo quente. (Inferno, Canto XXII).

 

Este, que tu vês crucificado [ao chão], disse aos fariseus que era mais oportuno sacrificar um homem do que atormentar todo o povo. (Inferno, Canto XXIII).

 

Precisas deixar o cansaço de lado, pois estirado sobre a pluma ou sobre a colcha, a fama6 não se alcança. E sem ela a vida passa sem deixar qualquer vestígio. Levanta! Vence o cansaço e anima-te! Mais longa escada nos aguarda. Com ânimo se vence qualquer batalha,7 quando o corpo pesado não atrapalha. (Inferno, Canto XXIV).

 

Maior é a dor de me encontrar nesta miséria do que a dor que senti quando perdi minha outra vida. Eu estou aqui por que fui um ladrão. Fui eu quem roubou aquela sacristia onde outro levou a culpa. (Inferno, Canto XXIV).

 

 

Ladrões Torturados por Serpentes
na Sétima Vala do Malebolge
(Ilustração de Gustave Doré)

 

Padre, desde que me absolvas do pecado que estou prestes a cometer, te aconselharei: Promete a eles, anistia. Depois, quando obedecerem, volta atrás e não cumpra a promessa! Se assim fizeres, triunfarás! Hoje são prisioneiros do fogo eterno e pagam suas penas aqueles que as ganharam desunindo. (Inferno, Canto XXVII).

 

Não se pode absolver o impenitente, nem pode o arrependido ainda querer pecar, pois, assim, nada vale seu arrependimento.8 (Inferno, Canto XXVII).

 

Quem poderia, mesmo fazendo uso da melhor prosa, narrar as cenas de sangue e das feridas que eu vi naquele triste lugar? Todas as línguas, por certo, estariam falidas, pois nossa memória e nosso vocabulário não são suficientes para compreender tamanha dor. Nem nos campos de batalha das piores guerras se viu tantos corpos estraçalhados, com deformações e feridas tão terríveis, quanto os que povoavam aquela nona vala. (Inferno, Canto XXVIII).

 

Sofro esta pena monstruosa por ter instigado o jovem rei contra seu pai. Eu pus o pai contra o filho, e por ter separado aqueles antes tão unidos tive o meu cérebro separado do meu tronco. E assim, em mim tu vês, o perfeito contrapasso.9 (Inferno, Canto XXVIII).

 

 

Bertran de Born10 Condenado
a Ter a Cabeça Separada do Corpo
por Ter Causado a Separação de Pai e Filho.
(Ilustração de Gustave Doré)

 

 

 

Uma Palavra Final

 

 

 

Disse John Milton (1608 - 1674) em O Paraíso Perdido: Long is the way and hard that out of Hell leads up to Light. (Longo é o caminho e duro o que do Inferno leva à LLuz). Sim. Construir o Inferno é fácil; desconstruí-lo é difícil. Mas, se foi pelo livre-arbítrio que o construímos, terá de ser pelo livre-arbítrio que o desconstruiremos. E isto só poderá ser feito em vida, pois, depois de morrermos, só há duas opções: ou morreremos definitivamente ou Viveremos!

 

 


 


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Notas:

1. A Esfera Armilar é um instrumento de astronomia aplicado em navegação, que consta de um modelo reduzido da esfera celeste.

2. O Rio (mitológico) Aqueronte localiza-se no Épiro, região do noroeste da Grécia. O nome Rio pode ser traduzido como rio do infortúnio, e acreditava-se que fosse um afluente do Rio Styx, este localizado no Mundo dos Mortos. Nele se encontra Caronte, o barqueiro que leva as almas recém-chegadas ao outro lado do Rio, às portas do Hades, onde o Cérbero – o monstruoso cão de múltiplas cabeças e cobras ao redor do pescoço – os aguarda.

 

 

Cérbero

 

 

3. O Caronte era uma figura mitológica do mundo inferior grego (o Hades) que transportava os recém-mortos na sua barca através do rio Aqueronte até o local no Hades que lhes era destinado.

 

 

 

Caronte Navegando pelo Hades
(Ilustração de Gustave Doré)

 

 

 

4. Referência a Virgílio. Virgílio (70 a 19 a.C.) foi grande poeta da Antigüidade e autor de várias obras entre as quais as Geórgicas e a Eneida. Esta última conta a história da fundação de Roma pelo troiano Enéas. Dante conhecia as obras de Virgílio e louva-o por ter influenciado seu estilo poético. De acordo com vários dantólogos, Virgílio também tem um sentido alegórico: simboliza o intelecto, a razão do peregrino Dante.

5. Barataria é a ação de dar, esperando retribuição. Negócio especulativo. Todo e qualquer ato fraudulento praticado com o fim de se obter proveito ilícito ou desleal.

6. Aqui, misticamente, se pode entender como sendo a Santa LLuz interior a ser conquistada pela Iniciação, que não se compadece com inânia, modorra e adiamento.

7. Com ânimo se vence qualquer batalha... Isto equivale a: Ora et Labora; Solve et Coagula. O Mutus Liber, célebre texto medieval, proclama o modus operandi do Alquimista: Ora, lê, relê, trabalha e encontrarás. Labora: através dos processos de dissolução, putrefação, destilação, sublimação, conjunção, fixação e lapidificação (obtenção do Lapis), são reproduzidos os ciclos e procedimentos da Natureza. Solve et Coagula, ou seja, Separa e Une, porque através da Grande Obra, o Alquimista separa as matérias em seus princípios essenciais para purificá-las e uni-las novamente. Como ensina um Probacionista da Fraternidade Rosacruz Max Heindel, o Caminho Rosacruz é um caminho de Alquimia Espiritual, onde se transmuta a natureza inferior em superior, onde se tece a alma. O conhecimento – que é compartilhado pela Escola Rosacruz não é um fim em si mesmo, mas um meio de o discípulo se qualificar para servir amorosa e desinteressadamente à Obra da Criação. .'. Ad Rosam per Crucem .'. Ad Crucem per Rosam .'.

8. Evidentemente que, mesmo no momento derradeiro, se houver sinceridade no arrependimento, a Peregrinação prosseguirá. Mas, por que deixar para o momento derradeiro?

9. Os semeadores de discórdias se dividem em três tipos: (a) criadores de cismas religiosos; (b) instigadores de conflitos sociais; e (c) semeadores de desunião familiar.

10. Bertran de Born (1140 – 1215) foi um famoso poeta inglês e um dos maiores trovadores provençais. Ele é acusado de ter semeado a discórdia entre o Rei Henrique II (Henry) da Inglaterra e o seu filho, o príncipe de mesmo nome. O contrapasso de Bertran de Born é um dos mais nítidos da Divina Comédia. O efeito do pecado foi a separação de pai e filho. O contrapasso é a separação de cabeça e tronco. Na Divina Comédia, vários outros círculos do Inferno apresentam contrapassos, porém nem todos são tão evidentes quanto este.


 

Bibliografia:

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Primeiro volume: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano Martins. 2ª edição. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979.

 

Fonte desta pesquisa: Website de Helder da Rocha

http://www.stelle.com.br/index.html

 

Outros Websites e Páginas da Internet consultados:

http://www.fraternidaderosacruz.org/oraetlabora.htm

http://pt.wikipedia.org/wiki/Caronte_%28mitologia%29

http://pt.wikipedia.org/wiki/Aqueronte

http://pt.wikipedia.org/wiki/Inferno_de_Dante_Alighieri

http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Divina_Com%C3%A9dia

http://pt.wikipedia.org/wiki/Esfera_armilar

 

Fundo musical:
A Solidão da Noite
Compositor: José Maurício Nunes Garcia (1767-1830)

Fonte:

http://members.fortunecity.com/bvmusica/colonial2.htm