Lagarrigue
e os positivistas acreditavam que cabia aos discípulos de Comte a
obrigação de difundir os ensinamentos positivistas, pois eles
eram os únicos habilitados a imparcialmente orientar e aconselhar
governantes e governados, tiranicamente, no interesse da coletividade.3
Segundo
Aristóteles e Platão, a marca da tirania é a ilegalidade,
ou seja, ‘a violação das leis e regras pré-estipuladas
pela quebra da legitimidade do poder. Uma vez no comando, o tirano revoga
a legislação em vigor, sobrepondo-a com regras estabelecidas
de acordo com as conveniências para a perpetuação deste
poder.’ Segundo Platão e Aristóteles, ‘os tiranos
são ditadores que ganham o controle social e político despótico
pelo uso da força e da fraude. A intimidação, o terror
e o desrespeito às liberdades civis estão entre os métodos
usados para conquistar e manter o poder. Aristóteles atribuiu a vida
relativamente curta das tiranias ‘à fraqueza inerente dos sistemas
que usam a força sem o apoio do direito.’ Maquiavel também
chegou à mesma conclusão sobre as tiranias e seu colapso,
pois ‘a tirania é o regime que tem a menor duração,
e de todos, é o que tem o pior final.’ Já fica
evidente que estou com Platão, Aristóteles e Maquiavel, e
não com Auguste.
TRANSITORIEDADE
DO GOVERNO
A
tentativa de implantar uma constituição definitiva e imutável
(sonho da Revolução de 64 no Brasil) nos países em
que a sociedade passa por uma transição sócio-econômica
profunda está, no conceito positivista, fadada ao insucesso, uma
vez que, dada a sua perfeição encontra-se em franca contradição
com o estado social vigente. A principal vertente, o principal regime orgânico
responsável pelo estado de anarquia mental e moral em que mergulhou
a Humanidade foi, no entender de Lagarrigue, o sistema católico-feudal.4
Esse ponto, salvo melhor entendimento, é incontestável. Admitia
o Filósofo chileno que a partir do século XIV o Catolicismo
perdeu toda a iniciativa social e tornou-se mais preocupado em cuidar de
sua própria sobrevivência. Este segundo ponto também
parece ser incontestável. Mas a sociedade passa, agora, por um estado
de renovação e de regeneração moral e mental.
E, assim, segundo o Apóstolo da Humanidade em Paris, esta sociedade
mesma caminha, inexoravelmente, para uma nova organização
social sob a égide de uma nova fé para a gloriosa doutrina
que deve constituir o regime final do gênero humano.5
Por
isso, como se verá adiante, a primeira regra a ser instituída
nos países ocidentais ou ocidentalizados deverá ser um governo
ditatorial republicano, como preconiza a política científica
de Auguste Comte.
Para
que a reorganização política se estabeleça em
bases definitivas, é imperioso que a renovação mental
e a renovação social precedam-na, ou seja, que a reorganização
espiritual anteceda a reconstrução temporal. Isto para que
as forças sociais que preponderam e tendem a alcançar o poder
não acabem por perturbar a paz e se tornem detrimentais ao próprio
evolver da sociedade. Por isso, acreditava Lagarrigue, a transitoriedade
da constituição política é um imperativo, desde
que esteja conforme o estado mental e social prevalecente, para que, ainda
que provisória, possa ter credibilidade bem como adquira confiabilidade,
força e efetividade.
Assim,
o governo político deve ser duplamente enérgico: primeiro,
impedindo as perturbações da ordem pública provocadas
pela anarquia espiritual, e, segundo, mantendo a paz interna, condição
basilar para a regeneração moral e mental da Humanidade. No
Brasil, durante a ditadura militar de 64, esse conceito deu origem à
doutrina política nacional de segurança e desenvolvimento
elaborada na Escola Superior de Guerra em trabalho conjunto com as
elites políticas e econômicas. A teoria, reduzida na prática
aos dois termos segurança e desenvolvimento, corporificou-se
na Constituição Federal e ramificou-se em leis, decretos-leis
e outras decisões legais, em vigor a partir de 31 de março
de 1964. Em 16 de Janeiro de 2002, o presidente Bush, em discurso no World
Affairs Councils (congresso de três dias sobre o futuro da América
Latina), disse: O futuro do hemisfério ocidental depende da força
de três compromissos: democracia, segurança e desenvolvimento
baseado no mercado. Esses compromissos são inseparáveis, e
nenhum deles será alcançado por meias medidas. Esse caminho
nem sempre é fácil, mas é o único caminho que
conduz à estabilidade e à prosperidade de todos os povos deste
hemisfério. Comte propugnava, assim, para a França daquela
época, um governo transitório que se comprometesse a manter
energicamente a ordem material no meio da desordem espiritual... ao mesmo
tempo em que deveria instituir a plena liberdade espiritual6.
Advertia ainda que:
Conciliar
a ordem e o progresso e assegurar a paz e a liberdade, tal é o duplo
destino que o movimento social impõe nos nossos dias ao Governo francês.
É somente realizando uma tal missão que ele poderá
adquirir uma existência durável, porque assim terá satisfeito
as justas solicitudes do partido conservador e as dignas aspirações
do partido progressista.7
Para
que se materializassem tais ideais, Auguste
Comte estabeleceu três regras essenciais para a definitiva reorganização
social, e mantidas por Lagarrigue:
1ª
- O Governo deve ser republicano e não monárquico
e caracterizado pela incorporação do povo à sociedade.
Daí, a ditadura com a república e não com a realeza.
2ª
- A República deve ser ditatorial e não parlamentar.
(É bom lembrar que democracias como o Brasil, nas quais
até recentemente foram usados expedientes autoritários como
o Decreto-Lei, não correspondem ao ideário e aos pressupostos
dos regimes verdadeiramente democráticos. Decretos-Leis, confiscos,
desapropriações indébitas etc. são parte de
um grande entulho autoritário-messiânico, cujo berço
– nomeadamente no Brasil – foi a doutrina comtiana ainda marcantemente
instalada no Brasil. Se por um lado o culto e o aspecto puramente doutrinal
desvaneceram, por outro, a vertente política manteve raízes
profundas e contraditórias entre muitos que se dizem liberais e defensores
da economia de mercado.
3ª
- A Ditadura deve ser temporal e não espiritual.8
O
Brasil foi o primeiro país a observar esta regra segundo a Constituição
de 24 de fevereiro de 1891.
A
seguir serão examinadas cada uma dessas condições.
Todavia, o conceito de Oliveira é bastante elucidativo sobre essa
questão, pelo que é transcrito a seguir:
Sob
o aspecto político, as diversas ditaduras devem se tornar verdadeiramente
republicanas, pelo estabelecimento da mais completa liberdade espiritual
e industrial, garantindo a manifestação de quaisquer idéias,
abolindo todos os privilégios (inclusive os profissionais), suprimindo
todo orçamento teórico (eclesiástico, universitário
e acadêmico) e fornecendo apenas a instrução primária,
sempre livre, leiga e gratuita. Mantendo a ordem material no meio da desordem
espiritual, os governos concorrerão, sem proteger nem perseguir
nenhuma doutrina, para que a mais conveniente prevaleça espontaneamente.
Assim, o sistema monocrático preparará o advento do triunvirato
próprio ao regime industrial quando o governo deverá caber
a três banqueiros, um ligado à agricultura, outro à
indústria e outro ao comércio.9
Entretanto,
antes de iniciar a análise das supraditas condições,
penso que seja conveniente apresentar os quinze princípios universais
da Filosofia Primeira, os quais servem de base a todas as motivações
positivistas e aos quais se subordinam todos os ensinamentos da Doutrina
Positiva. Esses quinze princípios são constituídos
por cinco grupos de três leis, a saber: Leis da Positividade, Leis
Estáticas do Entendimento, Leis Dinâmicas do Entendimento,
Leis da Existência e Leis das Variações.10
Leis
da Positividade
1 -
Da Verdade: Formar a hipótese mais simples,
mais simpática e mais estética de acordo com os dados adquiridos.
2 -
Do Destino: Conceber como imutáveis as leis
(quaisquer) que regem os seres pelos acontecimentos, conquanto só
a ordem abstrata permita apreciá-los.
3 -
Da Liberdade: Quaisquer modificações
da ordem universal limitam-se sempre à intensidade dos fenômenos
– cujo arranjo permanece inalterável.
Leis
Estáticas do Entendimento
4 -
Da Objetividade: Subordinar as construções
subjetivas aos materiais objetivos. (Aristóteles, Leibnitz e
Kant).
5 -
Da Razão: As imagens interiores são sempre
menos vivas e menos nítidas do que as impressões exteriores.
6 -
Da Unidade: A imagem normal deve ser preponderante
sobre as que a agitação cerebral faz simultaneamente surgir.
Leis
Dinâmicas do Entendimento
7 -
Da Inteligência: Toda concepção
humana passa por três estados – fictício [ou teológico],
abstrato [ou metafísico] e positivo [ou científico]
– mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos
fenômenos correspondentes.
8 -
Da Atividade: A atividade é primeiro conquistadora,
segundo defensiva e, enfim, industrial.
9 -
Do Sentimento: A sociabilidade é primeiro doméstica,
depois cívica e, enfim, universal, conforme a natureza peculiar a
cada um dos três instintos simpáticos (apego, veneração
e bondade).
Leis
da Existência
10 -
Da estabilidade: Todo estado, estático ou dinâmico,
tende a persistir espontaneamente, sem nenhuma alteração,
resistindo às perturbações exteriores.
11 -
Da Harmonia: Um sistema qualquer mantém sua
constituição ativa ou passiva quando seus elementos experimentam
mutações simultâneas, conquanto que sejam exatamente
comuns.
12 -
Do Conflito: Existe, por toda parte, uma equivalência
necessária entre a reação e a ação, se
as intensidades de ambas forem medidas conforme a natureza de cada conflito.
Leis
das Variações
13 -
Do Progresso: Subordinar, por toda parte, a teoria
do movimento à da existência, concebendo todo progresso como
desenvolvimento da ordem correspondente, cujas condições (quaisquer)
regem as mutações que constituem a evolução.
14 -
Da Ordem: Todo classamento (sic) positivo
procede segundo a generalidade crescente ou decrescente, tanto subjetiva
como objetiva.
15 -
Da Continuidade: Todo intermediário deve ser
subordinado aos dois extremos, cuja ligação opera.
Serão
analisadas a seguir as três condições estabelecidas por
Comte para que a ditadura positivista possa ser implementada efetivamente.
GOVERNO
REPUBLICANO
E NÃO MONÁRQUICO
A
monarquia francesa, na interpretação histórica de Lagarrigue,
não se constituiu senão de um fantasma, um sonho, em plena
contradição com a situação social.11
Freqüentemente os monarcas reinavam de encontro aos anseios da sociedade,
constituindo-se em verdadeiros estorvos ao progresso social. O jogo de interesses,
na maioria das vezes inescrupulosos exatamente porque eram jogos de interesses
– nos quais o Catolicismo teve papel de relevo e foi conscientemente
conivente, complacente, condescendente e transigente com os absurdos das
realezas – acabou por criar conflitos incontornáveis, desembocando
na tremenda crise de 1789, marcando o desfecho da revolução
moderna e constituindo-se na mola propulsora que impeliria a Humanidade
para uma completa renovação e regeneração social
e moral. Mas, nem tanto! Reis Carvalho relata a situação prevalecente
naquele tempo:
Foi
primeiro a luta entre a autoridade espiritual dos papas e o poder temporal
dos reis; depois a luta entre a força local da nobreza e a autoridade
central da realeza. Desse duplo conflito, resultou, de um lado, a vitória
da realeza sobre o papado, e, do outro, a vitória dos reis sobre
os nobres, ou vice-versa; aquela determinou a formação das
igrejas nacionais e a última a constituição de governos
políticos fortes, as ditaduras monárquicas ou aristocráticas,
conforme o triunfo decisivo coube ao rei ou ao nobre. O fato normal foi
a vitória do poder central dos Reis. Realizou-se toda essa evolução
em dois séculos: o XIV e o XV. Os papas se subordinaram cada vez
mais aos Reis e a nobreza foi totalmente anulada.12
Para
Lagarrigue, a meta do evolver da Humanidade é o estado sociocrático,
e para que seja definitivamente implantado e cristalizado fazia-se mister
dissolver a organização teocrática. Assim fizeram,
sucessivamente, a elaboração grega, a incorporação
romana, a preparação católico-feudal e a revolução
moderna.13 À dissolução da teocracia
seguiu-se a queda da monarquia com a Revolução Francesa. Ensina
Lagarrigue que a condição fundamental para o progresso será
instaurada pela substituição da hereditariedade teocrática
pela hereditariedade sociocrática, com cada funcionário determinando
a escolha de seu sucessor, sempre sob a fiscalização direta
de seu superior hierárquico e da sociedade. A hereditariedade sociocrática
– engendrada durante a ditadura dos Césares Romanos, que escolhiam
livremente seus sucessores, escolha esta sancionada pelo exército,
isto é, a massa de homens livres que dava sustentação
ao poder imperial – sempre ocorreu nos regimes fortes (ditaduras autoritárias
ou totalitárias, de direita ou de esquerda). Como bem recorda Gustavo
Biscaia de Lacerda, Augusto Comte considerava que os três melhores
tipos romanos foram César, Cipião e Trajano, citando-os nominalmente
e reservando a eles, no Calendário Positivista, o nome de um mês.
O Positivismo, portanto, não inventou a roda com a sua pregação
de uma ditadura republicana e de uma hereditariedade sociocrática
para resolver os problemas políticos, econômicos e sociais
dos países em que se instalou. Basta lembrar dos momentos autoritários
brasileiros (e de outros países da América Latina, o Chile
e a Argentina, por exemplo), que foram diversos e péssimos. Não
esqueçamos da forma como foi instalada a República em nosso
País e o que sucedeu depois. No Brasil, o Positivismo teve quatro
manifestações diferentes: a ortodoxa, a ilustrada, a política
e a militar. Acho que seria bom rever rapidamente essas quatro correntes.
Ouçamos juntos Ricardo Vélez Rodríguez:
A
corrente ortodoxa teve como principais representantes Miguel Lemos (1854-1917)
e Teixeira Mendes (1855-1927), os quais fundaram, em 1881, a Igreja Positivista
Brasileira, com o propósito de fomentar o culto da 'Religião
da Humanidade', proposta por Comte (1798-1857), no seu Catecismo Positivista.
A corrente ilustrada teve como principais representantes Luís Pereira
Barreto (1840-1923), Alberto Sales (1857-1904), Pedro Lessa (1859-1921),
Paulo Egydio (1842-1905) e Ivan Lins (1904-1975). Esta corrente defendia
o plano proposto por Comte na primeira parte da sua obra, até 1845,
antes de formular a sua 'Religião da Humanidade', e que poderia
ser sintetizado assim: o Positivismo constitui a última etapa (científica)
da evolução do espírito humano, que já passou
pelas etapas teológica e metafísica e que deve ser educado
na ciência positiva, a fim de que surja, a partir desse esforço
pedagógico, a verdadeira ordem social, que foi alterada pelas revoluções
burguesas dos séculos XVII e XVIII. A corrente política
do Positivismo teve como maior expoente Júlio de Castilhos (1860-1903),
quem, em 1891, redigiu a Constituição do Estado do Rio Grande
do Sul, que entrou em vigor nesse mesmo ano. Segundo essa Carta, as funções
legislativas passavam às mãos do Poder Executivo, sendo
os outros dois poderes públicos (Legislativo e Judiciário)
tributários do Executivo hipertrofiado. Para Castilhos, deveria
se inverter o dogma comteano de que à educação moralizadora
seguiria pacificamente a ordem social e política. O Estado forte
deveria, ao contrário, impor coercitivamente a ordem social e política,
para depois educar compulsoriamente o cidadão na nova mentalidade,
ilustrada pela ciência positiva. Esta corrente ganhou maior repercussão
do que as outras três, devido a que obedeceu à tendência
cientificista de que já se tinha impregnado o modelo modernizador
do Estado consolidado pelo Marquês de Pombal. Assim, as reformas
autoritárias de tipo modernizador que o Brasil iria experimentar
ao longo do século XX deram continuidade à mentalidade castilhista
do Estado forte e tecnocrático. Este modelo consolidou-se na obra
de um seguidor de Castilhos: Getúlio Vargas (1883-1954). Aconteceu
com o castilhismo algo semelhante ao ocorrido no México com o porfirismo:
ambas as doutrinas cooptaram a Filosofia Positivista como ideologia estatizante
e reformista. A corrente militar positivista teve como principal representante
Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891), professor da
Academia Militar e um dos chefes do movimento castrense que derrubou a
Monarquia em 1889. Esta corrente estruturou-se paralelamente à
ilustrada, projetando ao longo das últimas décadas do século
XIX o ideário cientificista pombalino, conforme destacou Antônio
Paim: 'A adesão às doutrinas de Comte por parte dos líderes
da Academia Militar, deu-se no estreito limite em que contribuiu para
desenvolver as premissas do ideário pombalino, quer dizer, a crença
na possibilidade da moral e da política científicas. Para
comprová-lo, basta comparar as funções às
que Comte destinava as forças armadas e o papel que Benjamin Constant
atribuiu ao Exército'.
Para
os positivistas, o voto como meio de investidura política é
um método irracional e imoral, já que consideram inconcebível
os inferiores escolhendo os superiores. (Uma personalidade brasileira mundialmente
conhecida no meio esportivo disse há alguns anos que o povo não
sabe votar. Ora, eu não posso concordar de jeito nenhum com isso,
por todos os motivos que, por serem tão comezinhos, não vou
explicar.). A passagem, pois, segundo o Positivismo, da teocracia para a
sociocracia, é, no conceito do fundador da Igreja Chilena, a marcha
inapelável da Humanidade. A república não poderá
jamais ser instituída com vistas a privilegiar um indivíduo,
uma classe social ou uma família, mas exclusivamente a nação.
A república deve ser, portanto, exclusivamente social. Deve eliminar
os privilégios da classe burguesa e incorporar a classe proletária
na moderna sociedade. O estadista republicano, para bem servir sua pátria,
deverá renunciar a qualquer impulso de restaurar qualquer dinastia,
e consagrar seu tempo, seus esforços e suas forças ao bem
geral. Isso é absolutamente irredutível e inteiramente incontestável.
GOVERNO
DITATORIAL
E NÃO PARLAMENTAR
Para
os positivistas, a única forma de governo que consegue conciliar
a ordem com o progresso é a ditatorial. Para os positivistas a efetividade
– eficiência + eficácia – depende da concentração
de poder. Entretanto, para eles, ligar a idéia de república
com a do reinado de uma assembléia, constitui-se num fatal equívoco,
neste erro tão grave quanto injustificável.14
O regime parlamentar interessa, por um conjunto de razões especiais,
à Inglaterra, não à França, assinala Lagarrigue.
Por isso, as profundas raízes histórias recrudesceram e acabaram
por restaurar a monarquia que se sucedeu à ditadura de Cromwell.
Abolida
a monarquia, Lagarrigue entendia que, não havendo o apoio da nobreza,
característica do regime parlamentar inglês, não haveria
possibilidade nem justificativa para a importação dessa forma
de governo para a França. Tal tentativa, a criação
de uma monarquia constitucional destinada a paralisar a ação
do monarca, acabou por gerar um absurdo, onde o rei reinava mas não
governava. Além disso, observa Lagarrigue, o parlamento constitui-se,
por sua própria origem, em um aparelho de permanente desconfiança
contra o governo. Por isso, no caso da França, acabou por se constituir
em fator impeditivo da ordem e do progresso sociais. Sobre tal sistema,
adita:
Abrindo
as portas a todas as ambições, favorecendo a dominação
e o triunfo dos sofistas e dos puros discursadores, ele [o parlamento]
tem contribuído para perpetuar a agitação e a desordem
políticas e para afastar o público do estudo e da meditação
da grande doutrina mental e moral destinada a reorganizar a sociedade.15
Questionou,
também, como é possível uma boa ação
de governo, se não há continuidade de doutrina, com a constante
mudança dos parlamentares, dos ministros e dos funcionários
graduados em cargos de confiança. Além disso, advogou que
o sistema parlamentar é venal, pois havendo necessidade de captar
adesões e de poupar os membros das diferentes correntes políticas,
multiplicam-se as sinecuras e as funções inúteis, tudo
às expensas da massa social. Constitui-se, assim, em um regime perturbador,
corruptor, corrupto por natureza e irresponsável, semelhante às
monarquias. Sustentou que, individualmente, os membros do parlamento não
poderão jamais ser responsabilizados pelas medidas votadas pelo conjunto
da assembléia. Nisso está a base eminentemente anti-republicana
do sistema parlamentar de governo. O verdadeiro regime republicano exige
plena confiança e inteira responsabilidade.16
Lagarrigue
entendia que no âmbito de qualquer assembléia observa-se a
preponderância da vontade de um parlamentar. Aparece, assim, uma espécie
de ditadura pela liderança natural de um indivíduo, mas que,
lamentavelmente, preso que está a um determinado partido e a compromissos
de campanha, fica forçado a servir a esses interesses subalternos.
Sob esse aspecto, lamentavelmente, isso cai como uma luva para o Brasil
do PT (2005/2006), ainda que essas constatações não
sejam uma particularidade petista. Nos oito anos do Governo Fernando Henrique
aconteceram coisas semelhantes (ou piores). Contra tudo isso propõe
Lagarrigue:
Para
que o estado republicano, que representa o interesse da nação,
possa consolidar-se definitivamente e entrar de novo em uma fase progressiva,
é mister que ele tenha a seu serviço uma individualidade
investida de plenitude do poder supremo. Só um ditador, desembaraçado
de toda a assembléia legislativa, terá força bastante
para dar consistência e uma continuidade inacabável ao movimento
republicano. O estadista chamado a instituir a ditadura republicana deverá,
segundo o conselho de Augusto Comte, concentrar em suas mãos todo
poder político, não deixando à câmara, consideravelmente
reduzida no número de seus membros, senão um ofício
puramente financeiro.17
E,
para fiscalizar tal ditadura, propõe o concurso da opinião
pública. O ditador, por qualquer motivo, que perder a confiança
do povo, será obrigado a exonerar-se (ou ser exonerado ou deposto).
O instrumento de pressão será a câmara financeira que
se recusará a votar os impostos, funcionando neste caso como órgão
e instrumento da sociedade. Desse modo, o Tribunal de Contas deveria ser
extinto por ser totalmente inútil.
Enfim,
a ditadura republicana deverá ser estabelecida e fundar-se na plena
liberdade espiritual, permitindo e estimulando a discussão de quaisquer
doutrinas, como também se obrigará a abolir todas as prerrogativas
das classes acadêmicas, teológicas e universitárias, que
no dizer de Lagarrigue, constituem-se no principal obstáculo ao
triunfo das sãs idéias morais e sociais.18 Tal
liberdade, portanto, obrigatoriamente, deverá ser estabelecida legalmente
e, como impõe Carvalho, não deve se limitar ao dogma teológico,
mas estender-se também aos dogmas metafísico e científico.
E assevera: É tão imoral e irracional obrigar a crer
em Deus como no éter ou na gravitação universal.19
Isso também é incontestável.
Nesse
sentido, para os discípulos de Comte, só uma ditadura republicana
poderá corrigir os males que séculos de monarquia e de teologia
proporcionaram e impuseram. O bem público só poderá
ser alcançado pela instalação no poder de um ditador
voltado para o social, que tenha absorvido os preceitos da cartilha positivista
e se proponha a viver para outrem. A seguir, analisar-se-á
a questão da temporalidade na ditadura republicana.
GOVENO
TEMPORAL
E NÃO ESPIRITUAL
A
completação da ditadura republicana consagrar-se-á
pela instituição de uma integral liberdade espiritual, vale
dizer, da recusa por parte dos governos de qualquer intervenção
no campo das doutrinas e das crenças. Nesse sentido, impõe-se,
no conceito positivista, a supressão dos orçamentos eclesiásticos
e a separação das igrejas, de qualquer confissão, do
Estado. Sob este aspecto, a sociedade deve ser organizada sob a hegemonia
de uma fé única, comum, livremente aceita, que, segundo Lagarrigue,
imponha a todos os indivíduos os deveres exigidos pelas condições
de ordem e progresso deste novo estado social.20 A meta,
conforme se salientou em outro ponto deste trabalho, é a incorporação
social da classe proletária.
Inclui-se
nesse item a completa e total liberdade de associação e de
reunião para que se discutam e se ponham a descoberto todas as doutrinas
que disputam a ascensão social. Lagarrigue, entretanto, adverte:
Enquanto
a manifestação e a luta das opiniões não forem
até o ponto de perturbar a ordem pública, a ditadura deverá
respeitá-las escrupulosamente. Sem isto, ela degeneraria logo em
uma tirania opressiva e retrógrada, profundamente oposta ao advento
do regime novo.21
Em complemento
a essa advertência somam-se as que se seguem:
Para
que a liberdade teórica seja (...) um fato real, (...) é
preciso (...) suprimir toda a religião do Estado, todo o ensino
superior e secundário de Estado e toda ciência de Estado,
abolindo os seus três orçamentos respectivos, o orçamento
cultural ou eclesiástico, o orçamento universitário
e o orçamento acadêmico.22
Para
os positivistas, o Estado deve manter apenas o ensino do primeiro segmento
do primeiro grau (antigo ensino primário), e como tal, deve reduzir-se
ao aprendizado de ler e escrever, ao cálculo elementar, ao desenho
e ao canto. Carvalho considera, ainda, uma tirania praticada pelo Estado,
a manutenção de qualquer tipo de ensinamento, inclusive do
Positivismo, nas escolas oficiais, que não tenham o consentimento
universal da sociedade.23
Nessa
primeira fase da infância, o aprendizado da criança deve ser
complementado substantivamente pela mãe e auxiliado pelo pai. Moraes
Filho, membro da Igreja Positivista do Brasil, ensina:
Nada
melhor do que a permanente, tenra e meiga vigilância materna, com
o carinho da assistência que sabe recusar e corrigir no momento
oportuno, usando critério uniforme em suas decisões. O tipo
ideal de mãe será, portanto, aquela que, distribuindo ternura,
julgue as solicitações do filho sem vacilar, tendo sempre
presente, um “não” oportuno, que vale mais do que todos
os conselhos, dados depois de um “sim” irrefletido. O papel
do pai é também importante na educação doméstica,
auxiliando a ação materna pelo criterioso exercício
da autoridade.24
Os
positivistas, e em particular Lagarrigue, consideram que os regimes teológico,
acadêmico e universitário, são constituídos por
verdadeira casta de privilegiados, cuja preocupação básica
é multiplicar e manter as próprias sinecuras e os mal adquiridos
benefícios. Por isso, entendem, uma reforme global faz-se necessária.
Advogam
a realização de uma reforma capital, que certamente encontrará
resistências, mas que será de fácil execução
para uma ditadura suficientemente enérgica, desde que se revogue
o parlamentarismo, pois retirará à burguesia seu poder político
e, também, como já se afirmou anteriormente, se suprimam os
orçamentos dos cultos, universitário e acadêmico. Nisso
se insere a obrigatória separação da Igreja do Estado.
A
ditadura republicana reclamada por Lagarrigue e pelos discípulos
de Comte deverá ter um caráter meramente temporal, devendo
concentrar seu poder em:
...
manter a ordem material, em estabelecer uma estrita economia nas despesas
administrativas, em prosseguir os grandes trabalhos de utilidade pública
e em assistir criteriosamente o desenvolvimento industrial.25
Para
alguns positivistas brasileiros, instalada a ditadura republicana, esta
deverá ser mantida em definitivo,26 pois, baseada nos
princípios positivos estará prevenindo a sociedade de males
crônicos que só podem ser evitados pelos princípios
que a Doutrina Positiva notoriamente possui: as armas contra a miséria,
as doenças, a ignorância, a violência e as guerras!27
Ao
terminar este ensaio, não pretendo enunciar os pontos nobres, belos
e profundamente morais da Doutrina Positiva. Eles são evidentes e,
ao longo do texto, eu os sublinhei. Antes, pretende-se discutir sucintamente
os postulados que ela sustenta e advoga como condições essenciais
para o evolver da sociedade, postulados esses que, de antemão, devo
informar que filosófica e misticamente discordo.
Fundamentalmente,
a implantação da ditadura republicana proposta por Comte e
reexaminada por Lagarrigue, apóia-se na Lei dos Três Estados
e em três condições essenciais: governo republicano,
república ditatorial e ditadura temporal. Esse é o caldo fermentativo
no qual os princípios positivistas, no campo político, devem
se instalar, devem se manter e devem se espalhar pela Terra.
Mas,
dividir o tempo em três estados (ou estágios) não foi
privilégio de Comte. Os exemplos são diversos ao longo da
história. Recordo apenas quatro: 1º) António de Lisboa:
Conticínio, Meia-Noite e Aurora; 2º) Gioachino del
Fiore (monge calabrês cisterciense): Idade do Pai (criação),
Idade do Filho (redenção) e Idade do Espírito
(salvação); 3º) Leonardo Coimbra: Alegria, Dor e Graça;
e 4º) Fernando Pessoa: Estado Belicoso, Estado Inativo e Estado Especulativo.
De
qualquer ângulo que se examine o Positivismo, observa-se, sem qualquer
esforço, que o número três teve forte influência
sobre Auguste Comte. Exemplos: 1º) os Três Estados (a mais importante
influência): Teológico, Metafísico, Positivo;
2º) as Três Orações: manhã, durante o dia
e noite; 3º) As Três Regras: governo republicano, república
ditatorial e ditadura temporal; 4º) Matemática: cálculo,
geometria e mecânica; 5º) A submissão é a base
do aperfeiçoamento: primeiro físico, em seguida intelectual
e finalmente moral; 6º) O Amor por princípio e a Ordem por
base; o Progresso por fim; 7º) As Três Raças: negra
(ou afetiva), branca ou intelectual, amarela ou ativa; 8º) Toda religião
compõe-se de culto, dogma e regime: o culto regula o sentimento,
o dogma a inteligência e o regime a atividade; 9º) A Trindade
Positiva é formada pelo Grão Ser (Humanidade), Grão
Fetiche (Terra) e Grão Meio (espaço); e 10º) Os Três
Anjos de Comte: sua mãe Rosália, sua esposa espiritual Clotilde
de Vaux e sua filha adotiva Sofia.
A
primeira observação que se pode fazer é
relativamente à Lei dos Três Estados, espinha dorsal do sistema
comteano, na qual está ancorada toda a filosofia política
para a implantação de uma ditadura republicana. Ultrapassados
o estado teológico (ou fictício) e o estado metafísico
(ou abstrato), e tendo a Humanidade entrado no estado positivo (ou científico),
estaria ansiosa e preparada por mudanças. Ansiosa por mudanças,
sim, ela sempre esteve, pois isso é da natureza dinâmica do
homem; mas preparada, nem tanto. Não radicalmente, pelo menos, até
porque tudo que é radical enferma mais do que cura. Basta recordar
um único duplo exemplo: Hiroshima e Nagazaki. De qualquer sorte,
os positivistas entendem que tais mudanças obrigariam a aplicação
sistemática dos conhecimentos da Sociologia, que ao determinar a
estrutura fundamental da sociedade, permitirão passar ao que admitem
e professam como Religião da Humanidade (Sociocracia final). Da Wikipédia
retirei: A Religião da Humanidade é o sistema criado pelo
francês Augusto Comte em 1854 como coroamento de sua carreira filosófica,
em que procurou estabelecer as bases de uma completa espiritualidade humana,
sem elementos extra-humanos ou sobrenaturais. A Religião da Humanidade
também é conhecida como Positivismo Religioso. À semelhança
das demais religiões, a Religião da Humanidade tem dogma,
culto, regime, templos, capelas e sacramentos. Todavia, uma particularidade
distingue-a radicalmente: ela é uma religião agnóstica,
no sentido de que não venera um ser superior extra-humano ou sobrenatural.
A Religião da Humanidade foi criada por Comte a partir de sua busca
por uma espiritualidade plenamente humana, adaptada a uma época em
que o ser humano pode viver esclarecido pela ciência, com uma atividade
prática totalmente pacífica e baseada no altruísmo.
O dogma da Religião da Humanidade baseia-se na ciência; todavia,
não se resume a ela, pois, mais importante do que a instituição
científica em si, o que importa para o Positivismo é o espírito
positivo. Em rápidas palavras, o espírito caracteriza-se por
ser 'real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático.'
No Brasil, um dos fundadores da Religião da Humanidade e também
um dos responsáveis pela construção do Templo da Humanidade
- a Igreja Positivista do Brasil - foi Miguel Lemos. A Igreja Positivista
do Brasil foi inaugurada no dia 11 de maio de 1881 (19 de Cesar de 93),
na Rua Benjamin Constant, na Cidade do Rio de Janeiro.
A
meta, portanto, é transformar a Humanidade em uma estática
e em uma dinâmica do social. Isso, todavia, merece uma reflexão
mais acurada, ainda que superficial. Por que apenas três estados?
Por que o estágio final da evolução da Humanidade deva
ser, obrigatória, definitiva e exclusivamente, o científico?
Não poderia a Humanidade ultrapassar tal estágio para se manifestar
em um outro patamar ou plano? Estariam todos os países, e em cada
país todas as cidades, e em cada cidade todos os seres-no-mundo
no mesmo nível mental, cultural, material, organizacional e espiritual,
para que o projeto de uma ditadura republicana pudesse ter chance de dar
certo? Os exemplos recentes que me ocorrem são o esgotamento da Revolução
de 64, no Brasil, e a queda do muro de Berlim. Não. A resposta a
todos esses questionamentos é um sonoro não. Por isso acrescento:
Como padronizar os indivíduos (reduzindo esta análise ao homem)
sob uma tutela modelar e uniforme sem causar dor, comoção,
sofrimento, angústia e limitações em suas ações
e realizações? Fazendo uma gracinha para amenizar um pouco,
essa tal de ditadura republicana é um saco. Mas, para o futuro, quem
sabe um estado científico-espiritual ou místico-científico?
A psicocibernética vem desenvolvendo pesquisas e demonstando que
muitas leis científicas não têm resposta ou solução
satisfatória se examinadas de maneira estanque, fato que sempre foi
do conhecimento dos místicos e particularmente dos Rosacruzes.
Nesse
particular, acredita-se ter faltado a compreensão de que o processo
de evolução, a percepção das leis naturais e,
conseqüentemente a harmonização individual, e por via
de conseqüência, social, são lentos. Muito, muito lentos.
E nesse progredir, nesse evolver, um amplo espectro de possibilidades descortina-se
a cada um. Uma ditadura republicana ou outra qualquer, não abreviará
essa ascensão; pelo contrário, retardará. A liberdade
estando restringida, tutelada, impõe uma estagnação
– e até um retrocesso – ao desabrochar dos valores individuais
e da sociedade. A liberdade é a mãe da evolução.
Ao suprimi-la, delimitá-la, cerceá-la, tutelá-la deforma-se
e caricatura-se a ordem e inverte-se o progresso, quer do indivíduo,
quer do grupo social, Assim, nem a concessão do voto aliviará
esse trauma.
Por
outro lado, se se olhar o processo evolutivo do homem poder-se-á,
quem sabe, encontrar, até o momento presente, ao invés de
apenas três estados, sete (concepção agostiniana das
sete idades). A sétima idade seria a Idade Final, do descanso, na
qual as almas encontrariam o paraíso. Quem sabe, nove, doze, um quatrilhão
e oito... E, antes do estado teológico proposto por Comte, quantos
séculos viveu o homem primitivo mergulhado na mais completa anarquia?
Então, talvez se pudesse propor como primeiro estado o 'estado
anárquico'. Mas como já fomos animais, plantas e pedras,
pode-se pensar em um 'estado animalejo', um 'estado cipó-de-sapo'
e um 'estado pedra-braba'. Se Comte soubesse disso, talvez
nem propusesse a Lei dos Três Estados.
Em
aditamento a essas ponderações não se acredita que
se possa jamais padronizar, para toda a sociedade, um tipo único
de doutrina, seja política, religiosa, filosófica ou outra
qualquer. O que pode ser bom para os Estados
Unidos da América, não é, obrigatoriamente, bom para
o Irã ou para a Coréia do Norte, e o que satisfaz e deleita
os muçulmanos, certamente, é de difícil adaptação
ou aceitação para os católicos, para os protestantes,
para os budistas ou para os judeus. As pessoas e os povos são intrínseca
e estruturalmente diferentes, porque, inclusive, vêm de oitavas distintas
do Teclado Cósmico. Por outro lado, não se nasce em uma família
e em um país por acaso. No Universo não há acaso, como
também não há determinismo. Isso pode parecer contraditório,
mas é assim que é. Assim, diferenças culturais, morais,
climáticas, sociais, econômicas, religiosas, físicas,
latitudinais, longitudinais e outras impedem absolutamente qualquer padronização,
seja ela positivista, comunista, teocrática, sociocrática
etc. Os interesses pessoais e coletivos são diferentes e cada qual,
de per si, encontra-se trilhando o caminho de sua evolução
pessoal, com dificuldades e limitações pessoais, com anseios,
dúvidas, inclinações e valores também pessoais.
Tudo isso compõe uma cultura sedimentada secularmente. Tudo isso
compõe o estado geral de um povo, que não é e não
será jamais igual ao de outro povo. Pode ser parecido, mas igual
não é, até porque, como expliquei acima, não
são iguais os seres-no-mundo. Por isso, há imperativamente
que se respeitar todas as filosofias políticas, todas as doutrinas
religiosas e todas as inclinações individuais e sociais. A
monarquia, por exemplo, passou em muitos países, mas está
solidamente constituída em vários outros. Pode não
ser o melhor sistema de governo, mas quem pode afirmar com segurança
qual será o pior? Deve-se ter sempre em mente o bolchevismo russo,
o nazismo alemão, o fascismo italiano, o aparteísmo sul-africano,
o democratismo americano etc. Quando um sistema político se esgota,
qualquer que seja o motivo, aí sim, o povo aceita as sonhadas e esperadas
mudanças. A queda do Muro de Berlim, que desmoronou como um castelo
de cartas no dia 9 de novembro de 1989, representou o ponto zero da reunificação
da República Federal Alemã (RFA) com a República Democrática
Alemã (RDA), que passaram a formar, a partir daí, finalmente,
uma única Alemanha: a República Alemã, Estado Federal
da Europa ocidental e membro da União Européia. Esse ato político
representou também o final da divisão do mundo em dois blocos
e o fim da Guerra Fria. As próprias filosofias religiosas dos países
do oriente têm pouca aceitação no ocidente, assim como
as religiões ocidentais representam a minoria no oriente. Cuba e
Estados Unidos da América agasalham posições políticas
divergentes e opostas. E por aí vai... longe.
Assim,
a implantação de qualquer tipo de ditadura – e particularmente
a republicana – ou de qualquer regime político autoritário
ou totalitário, é não só inconveniente e injustificado,
como absurdo e abominável, por isso retrógrado, desumano e
prejudicial. Só a alienação temporária de um
povo iludido por falsas aquisições e pela sua própria
deficiência cultural e desconhecimento histórico, ao lado das
limitações de toda ordem da classe política, podem
remeter toda uma nação à contenção e
restrição da liberdade, condição irrevogável
de verdadeira ordem, verdadeiro progresso e verdadeira paz social. Acima
de tudo, liberdade é preciso!
Resumem-se
a seguir, alguns pontos do Positivismo que se consideram incompatíveis
com o ideal de liberdade, de ordem, de paz social, de progresso, e que,
se adotados, terminarão por abafar a própria afirmação/evolução
do homem, quer individualmente, quer como partícipe de um grupo social.
Por outro lado, esses pontos podem gerar o desequilíbrio econômico,
político e social onde forem implantados. Além disso, outros
inconvenientes podem ser derivados, como por exemplo, a instalação
e o recrudescimento da corrupção, dos cambalachos e dos panamás,
filhos desnaturados e perversos da impunidade, peculiaridade orquestrada
e dominante nos regimes de força. E uma ditadura republicana, que
não se esqueça, é um regime de força. Acresce
a esses abusos, o aparecimento, em escala progressiva, da brutalidade, da
tirania, da opressão, da tortura e da perseguição aos
adversários do regime, não raro culminando com o assassinato
de seres humanos, apenas por divergirem e por expressarem as suas legítimas
opiniões, direitos legítimos de todos os cidadãos,
direitos fundamentais que devem ser exercidos por todos os homens, quanto
mais não seja para exigirem do Estado reparações e
indenizações por erros ou abusos cometidos. São exemplos
do que acabei de examinar: perseguição dos castilhistas aos
adversários políticos, perseguição Vargas, perseguição
Franco, perseguição Médici, perseguição
Salazar, perseguição Stalin, perseguição Mao,
perseguição Videla, perseguição Stroessner,
perseguição Dadá, perseguição Castro,
perseguição Pinochet, perseguição Papa Doc,
perseguição Mussolini, perseguição Dezoito,
perseguição Milosevic et cetera. Nos regimes de exceção
a regra da sobrevivência é tornar-se caudatário do sistema
ou o silêncio. Poucos são os que lutam; alguns morrem, outros
se tornam heróis nacionais. Mas a liberdade é teimosa e um
dia prevalece. As trevas acabam por se dissipar e a luz volta a brilhar.
O arbítrio termina e o povo reencontra o caminho. Não serão
as ditaduras um aprendizado doloroso que acabam extirpadas da consciência
nacional quando ultrapassadas? Não será esse tempo anacrônico
um sempre alerta e uma recordação na mente do povo, como que
a lembrar: Evitem-me! Ou eu os devorarei novamente! Por
tudo isso, o que está abaixo resumido deve ser absolutamente evitado,
pois representa o meio de cultura propício à proliferação
de todos esses males:
1º
- Prevalência da doutrina positivista
sobre todas as outras, que preconiza a organização da sociedade
sob a hegemonia de uma única fé;
2º
- Concentração absoluta
de poderes nas mãos do ditador com prerrogativa, inclusive, de indicar
seu sucessor; e os membros da magistratura, estes demissíveis ad
nutum;
3º
- Ditadura Sociocrática. República
ditatorial como condição exclusiva para promover a definitiva
organização social;
4º
- Instalação, na ditadura
republicana, da denominada hereditariedade sociocrática;
5º
- Abolição do Parlamento
com base na suposição de que o Congresso Nacional constitui-se
num aparelho de permanente desconfiança contra o governo;
6º
- Suposição de que
só um ditador investido do poder supremo possa bem conduzir os destinos
de uma nação; e
7º
- Supressão do ensino secundário
e superior do Estado, bem como supressão de toda a ciência
do Estado com abolição dos orçamentos universitário
e acadêmico.
Enfim,
admitiam os adeptos da Ciência Positiva que a solução
para o estado atual em que se encontrava a sociedade é a ditadura republicana,
fundada na liberdade espiritual, na concentração temporal e
na abolição da monarquia. A efetivação dessa proposta
implicará na separação do Estado dos poderes teológico,
metafísico e científico, originando um governo monocrático
baseado em uma ditadura republicana.
Todavia,
a história tem ensinado que onde tal sistema de governo tem prevalecido
temporariamente, o país comprometeu-se interna e externamente, houve
retrogradação social e o homem, na sua individualidade, amesquinhou-se.
Por isso, o evolver individual e a manutenção da paz social,
do progresso e da ordem nacionais devem ter como base a
mais ampla tolerância dentro da mais estrita independência.28
E termina-se por concordar com Álvaro Ribeiro, quando diz em Escola
Formal: A cada povo é proposto um ideal diferente de realização
da Humanidade.29 Por isso, liberdade espiritual e ditadura
são antagônicas, não-convergentes e opostas em aspirações
e realizações. Onde há liberdade espiritual não
há ditadura, e onde se instala a ditadura a primeira supressão
aparece exatamente na liberdade espiritual. No que possam pesar as nobres
intenções em regenerar a Humanidade por intermédio
de uma ditadura republicana a doutrina mostrou-se falha e não se
sustentou onde foi aplicada. Por que a insistência?
Por
que será também que os TREZE são UM?
Rio
de Janeiro, 20 de junho de 2006.
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Referências
bibliográficas:
1. LAGARRIGUE,
Jorge. A ditadura republicana segundo Augusto Comte, p. 13. Uma
ditadura republicana poderá ser unitária ou federativa. Se
for unitária, os governos locais de cada circunscrição
da república são simples mandatários do governo central.
Se for federativa, os governos locais, embora subordinados ao governo central,
se mantêm e se constituem com maior autonomia. Exemplos históricos
de ditadura republicana unitária: Portugal e Espanha. Exemplo histórico
de ditadura republicana federativa: Brasil. Quanto ao funcionalismo público,
eles se compõem de três ordens de funcionários: a) ditatoriais:
a serviço do ditador; b) camarários: a serviço da câmara
financeira; e c) judiciais: a serviço da magistratura.
2.
Op. cit., pp. 12 e 13.
3. Na
primeira fase da transição orgânica à qual se
seguirá a regeneração da sociedade, os positivistas,
por preceito formal, não deveriam aceitar nenhuma função
política.
4. Op.
cit., p. 16.
4.
Op. cit., p. 18.
5.
Op. cit., p.19 e 20.
7.
Op. cit., p. 20.
8.
Ibid.
9. OLIVEIRA,
Henrique Batista da Silva. Nota sobre o Positivismo, p. 17.
10.
Op. cit., p. 20.
11.
LAGARRIGUE, Jorge. Op. cit., p. 24.
12.
CARVALHO, Reis. A ditadura republicana, pp. 11 e 12.
13.
LAGARRIGUE, Jorge. Op. cit., p. 25.
14.
Op. cit., p. 31.
15.
Op. cit., p. 38.
16.
Op. cit., p. 39.
17.
Op. cit., pp. 41 e 42.
18.
Op. cit., p. 45.
19.
CARVALHO, Reis. Op. cit., p. 14.
20.
LAGARRIGUE, Jorge. Op. cit., p. 49.
21.
Op. cit., p. 51.
22.
Op. cit., p. 53.
23.
CARVALHO, Reis. Op. cit., p. 15.
24.
MORAES FILHO, Alfredo. A educação e a instrução
no Positivismo, pp. 4 e 5.
25.
LAGARRIGUE, Jorge. Op. cit., p. 68.
26.
LEMOS, Miguel e TEIXEIRA MENDES, Raymundo.
Comemoração do primeiro centenário do nascimento
de Benjamim Constant Botelho de Magalhães, p. 21.
27.
PAULA, Ruben Descartes de Garcia. O Positivismo, o antipositivismo e
o fascismo, p.69.
28.
Lema da Ordem
Rosacruz AMORC.
29.
QUADROS, António. Portugal, razão e mistério,
p. 13.
Websites
consultados:
http://www.ensayistas.org/antologia/XIXA/lagarrigue/
http://www.memoriachilena.cl/mchilena01
/temas/documento_detalle.asp?id=MC0017539
http://pt.wikipedia.org/wiki/Muro_de_Berlim
http://pt.wikipedia.org/wiki/Religi%C3%A3o_da_Humanidade
http://www.igrejapositivistabrasil.org.br/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ditadura
http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/6367_6.asp
Fundo
musical:
Hino
do Chile
Fonte:
http://www.partnersinrhyme.com/midi/Anthems/index.shtml