É
humilde quem se esconde no seu nada e sabe se abandonar em Deus.
Que
descubramos o tesouro da cruz. Que a oração e o silêncio
nos levem a descobrir Deus. Que sejamos dóceis às inspirações
do alto. Que saibamos perdoar a todos que nos ofendem.
A
esperança em Deus só pode ser perfeita quando se afasta da
memória tudo o que se contrapõe a Deus.
Quando
a pessoa ama alguma coisa fora de Deus torna-se incapaz de se transformar
Nele e de se unir a Ele.
Quanto
mais se acredita em Deus e se serve a Ele sem testemunhos e sinais, tanto
mais Ele é exaltado pelo homem.
Enquanto
não te despojares de tudo, tu não terás capacidade
para receber o espírito de Deus em pura transformação.
Embora
a alma tenha altíssimas revelações divinas, a mais
elevada contemplação, a ciência de todos os mistérios...
se lhe falta amor, de nada lhe servirá para se unir a Deus.
Não
há trabalho melhor nem mais necessário do que o amor. Fomos
feitos para o amor. O único instrumento do qual Deus se serve é
o amor. Assim como o Pai e o Filho estão unidos pelo amor, assim
o amor é o laço de união da alma com Deus.
O
amor não cansa nem se cansa.
Sofrer
por Deus é melhor do que fazer milagres.
As
visões e as apreensões dos sentidos não podem servir
de meio para a união com Deus.
Para
chegares a saborear tudo, não
queiras ter gosto em coisa alguma. Para
chegares a possuir tudo, não queiras possuir coisa alguma. Para chegares
a ser tudo, não queiras ser coisa alguma. Para chegares a saber tudo,
não queiras saber coisa alguma. Para chegares ao que não gostas,
hás de ir por onde não gostas. Para chegares a saber o que
não sabes, hás de ir por onde não sabes. Para vires
o que não possuis, hás de ir por onde não possuis.
Para chegares ao que não és, hás de ir por onde não
és.
Ao
que está desprendido, não lhe pesam cuidados na hora da oração
ou fora dela.
O
progresso é maior quando se caminha às escuras e sem saber.
Criatura
alguma merece amor senão pelo bem que nela há. Amar desse
modo é amar segundo a vontade de Deus e com grande liberdade. E se
este amor nos une à criatura, mais fortemente ainda nos une ao Criador.
Onde
não há amor, põe amor e colherás amor.
Para
quem ama, a morte não pode ser amarga, pois nela se encontram todas
as doçuras e todas as alegrias do
amor. Sua lembrança não é triste, mas traz alegria.
Não apavora nem causa sofrimento, pois é o término
de todas as dores e o início de todo bem.
Quem
souber morrer para tudo terá vida em tudo.
Aprendam
a permanecer em Deus com atenção amorosa, com calma, sem se
preocuparem com a imaginação e com as imagens que ela forma.
Assim, as faculdades descansam e não atuam; recebem passivamente
a ação divina.
Quando
tiveres algum aborrecimento e desgosto, lembra-te do Cristo crucificado
e cala.
Quando
reparas em alguma coisa, deixas
de arrojar-te ao tudo. Porque para vir de todo ao tudo, hás de negar-te
de todo em tudo. E quando vieres a tudo ter, hás de tê-lo sem
nada querer. Porque se queres ter alguma coisa em tudo, não tens
puramente em Deus teu tesouro.
A
amplidão do deserto ajuda muito o espírito e o corpo.
Por
causa de prazeres passageiros, sofrem-se grandes tormentos...
Se
quiseres chegar a possuir o Cristo, jamais o busques sem a tua cruz.
Quando
a alma se acha livre e purificada de tudo, em união com Deus, nenhuma
coisa poderá aborrecê-la. Daqui se origina para ela, neste
estado, o gozo de uma contínua suavidade e de uma
tranqüilidade que ela nunca perde nem jamais lhe falta.
O
Silêncio leva ao recolhimento e dá força ao espírito.
Quando
tiveres teus desejos apagados e tuas faculdades incapazes de qualquer exercício
interior, não sofras por isso; considera-te feliz por estares assim.
É Deus que te vai livrando de ti mesmo e tirando-te das mãos
todas as coisas que possuis.
Caminhará
mais quem carregar consigo menos coisas e menos desejos.
A
mosca que pousa no mel não pode voar; a alma que fica presa ao sabor
do prazer sente-se impedida em sua liberdade e contemplação.
Amado
meu: tudo o que é difícil e trabalhoso eu o quero para mim;
e tudo o que é suave e saboroso eu o quero para ti.
Não
fujas dos sofrimentos, porque neles está a tua saúde.
A
alma que busca a Deus e permanece em seus desejos e comodismo, busca-o de
noite, e, portanto, não O encontrará. Mas quem O busca através
das obras e dos exercícios da virtude, deixando de lado seus gostos
e prazeres, certamente O encontrará, pois O busca de dia.
Todo
poder e liberdade do mundo – comparados com a soberania e a independência
do espírito de Deus – são
completa servidão, angústia e cativeiro.
Não
é bem orientado o espírito que quer caminhar por doçuras
e facilidades, fugindo de imitar a Cristo.
É
próprio do perfeito amor nada querer admitir ou tomar para si, nem
se atribuir coisa alguma...
O
demônio teme a alma unida a Deus como ao próprio
Deus.
Para
possuir Deus plenamente, é preciso nada ter; porque se o coração
pertence a Ele, não pode se voltar para outro.
A
alma que verdadeiramente ama a Deus não deixa de
fazer o que pode para achar o Filho de Deus, seu Amado. Mesmo depois de
haver empregado todos os esforços, não se contenta e julga
não ter feito nada.
A
criatura atormenta; Espírito de Deus gera alegria.
Quem
não renascer do Espírito Santo jamais verá o Reino
de Deus que é o estado de perfeição.
Há
uma distância infinita entre o ser divino e o ser das criaturas. Por
isso, é impossível à inteligência, por si só,
atingir a Deus.
Que
mais queres, ó alma, e que mais buscas fora de ti, se encontras em
teu próprio ser a riqueza, a satisfação, a fartura
e o reino, que é teu Amado, e a quem procuras e desejas?
Ainda
que estejas em sofrimento, não queiras fazer a tua vontade, pois
terás, assim, o dobro de sofrimento.
Para
se progredir, o que mais se necessita é saber calar diante de Deus...
A linguagem que Ele melhor ouve é a do silêncio de amor.
É
inegável que a alma chega ao conhecimento de Deus,
antes pelo que Ele não é do que pelo que Ele é.
A
pessoa cujo estado de perfeição não
corresponda à sua própria capacidade jamais gozará
da verdadeira paz e satisfação, porque, em suas faculdades,
não chegou ainda àquele grau de despojamento que se requer
para a simples união com Deus.
Ó
Senhor, Deus meu! Quem Te buscará com amor tão
puro e tão singelo que deixe de Te encontrar, conforme o Teu desejo
e a Tua vontade, se és Tu o primeiro a mostrar-Te e a saíres
ao encontro daqueles que Te desejam?
Em
teu recolhimento interior, regozija-te com Ele, pois Ele está muito
perto de ti.
A noite sossegada,
quase aos levantes do raiar da aurora;
a música calada
a solidão sonora,
a ceia que recreia e enamora.
Se
a atração dos olhos vos levar para as coisas que não
elevam nada para Deus, abstende-vos de as gozar. Suprimi a força
da atração exercida sobre cada um dos vossos sentidos... Mais
ainda: a exemplo de Jesus Cristo, procurai, não o mais fácil,
mas o mais difícil, não a consolação, mas a
desolação. Trabalhai no desprezo de vós mesmos.
Que
felicidade o homem poder se libertar de sua sensualidade! Isto não
pode ser bem compreendido, a meu ver, senão por quem o experimentou.
Só então verá claramente como era miserável
a escravidão em que se estava.
Alma
formosíssima entre todas as criaturas, que tanto desejas saber o
lugar onde está teu Amado, a fim de o buscares e a Ele te unires.
Já te foi dito que és tu mesma o aposento onde Ele mora, e
o recôndito esconderijo em que se oculta.
No
ocaso da vida serás examinado sobre o amor.
Suma
da perfeição: Esquecimento do criado, memória do Criador,
atenção ao interior e permanecer amando o Amado.
Quem
se lamenta ou murmura não é cristão perfeito, nem mesmo
bom cristão.
As
criaturas são vestígios das pegadas de Deus pelas quais se
reconhece Sua grandeza, poder e sabedoria.
Os
incomensuráveis bens de Deus só podem ser acolhidos por um
coração vazio.
É
em teu próprio ser que podes desejá-Lo e adorá-Lo –
não O procures fora de ti porque te distrairás e cansarás.
Não O encontrarás nem gozarás Dele com maior segurança,
nem mais depressa, nem mais de perto, do que dentro de ti mesmo.
O
estado de união consiste na transformação total da
vontade humana na divina, de modo que nela nada haja de contrário
a essa vontade, mas seja sempre movida, em tudo, pela vontade de Deus. Por
isso dizemos que, nesse estado, as duas vontades formam uma só –
a Vontade de Deus.
A
Questão do Sofrimento
(reflexões pessoais)
O
que irei discutir a seguir remete, mais uma vez e preliminarmente, para
a questão dos imperativos kantianos. Por isso, vou sintetizá-los
novamente.
Regra
de Vida para Kant: O
céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.
Imperativo
Categórico (É preciso porque é preciso):
Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa
valer sempre e ao mesmo tempo como princípio de uma legislação
universal. Isto é: cumpre o teu dever incondicionalmente. Exemplo:
12 + 1 = 13. O 13 não está contido na idéia de 12 ou
de 1; o resultado ocorre independentemente de qualquer experiência
e de modo irredutível e absolutamente necessário, isto é:
é uma legislação universal.
Imperativo
Hipotético: Dita um curso específico de uma
ação para se chegar a um fim almejado. Os imperativos hipotéticos
estão subordinados a uma determinada condição, correspondendo,
assim, a ações como meio de evitar tal ou qual castigo, ou
para que se obtenha tal ou qual recompensa. Enunciam um mandamento subordinado
a determinadas condições. No caso de uma doença, por
exemplo, a regra hipotética é: se queres sarar, toma o remédio.
Imperativo
Universal: Age como
se a máxima de tua ação devesse se tornar, por tua
vontade, lei universal da Natureza.
Imperativo
Prático: Age
de forma que reconheças a Humanidade, quer na tua pessoa como na
de qualquer outra, sempre e ao mesmo tempo como um fim, jamais meramente
como um simples meio.
Fórmula
da Autonomia: Devemos
agir de forma que possamos pensar de nós próprios como leis
universais legislativas através das nossas máximas. Poderemos
pensar em nós como tais legisladores autônomos apenas se seguirmos
as nossas próprias leis.
Revisitados
estes conceitos, discutirei um tema que não examinei em trabalhos
anteriores, e, desde já, apresento minhas desculpas pelo que irei
refletir, porque sei que muitos religiosos não concordarão
com os argumentos que serão apresentados. Mas, o fato é que
subscrevo inteiramente as reflexões morais de Immanuel Kant (1724-1804),
particularmente no que se referem aos imperativos, que valem, inclusive
e principalmente, para os temas teológicos. Quando se pratica uma
ação ancorada em um imperativo interesseiro (hipotético),
obviamente tudo que daí decorrer tenderá para zero ou, em
outras palavras, não tem valor espiritual efetivo. Obviamente isto
se aplica ao campo da moral e das relações que o ente presume
que possa ter com a(s) divindade(s); não é aplicável,
por exemplo, no curso de uma doença ou quando a pessoa imperativamente
toma um banho para ficar limpa. Mas, nos âmbitos religioso e moral
os exemplos são diversos, uns mais perversos (como matar em nome
de Deus), outros nem tanto (como comungar em nove primeiras sextas-feiras
seguidas para obter a graça da penitência final). Também
exemplificam imperativos hipotéticos as diversas formas de corrupção
praticadas por políticos e autoridades públicas, quando exigem
percentuais e participações para autorizar a implementação
de projetos de interesse (ou não) da população. O pior
é quando esses projetos não são concluídos e
ficam a se deteriorar no tempo. Isso geralmente acontece porque as propinas
e as bolas são recolhidas no início das obras, e daí
para frente não há interesse em concluí-las. Isso que
acabei de comentar é uma especificidade do Brasil, no qual, por esse
pérfido motivo, há centenas de obras inacabadas se deteriorando
ao luar. Passarei a examinar um pouco mais à frente a questão
do sofrimento em São João da Cruz.
Inquestionavelmente,
João da Cruz – o Poeta de Deus – é um dos expoentes
da mística e um dos maiores escritores do século de ouro
espanhol, tendo mergulhado, em suas reflexões, nos campos da Literatura,
da Teologia e da Filosofia. Seu pensamento está enquadrado e de certa
forma circunscrito ao rigor escolástico que aprendeu em Salamanca,
e que se manteve fiel a Santo Tomás de Aquino (perto de Aquino, Itália,
1227 - Paris, França, 1274), mas que também sofreu algumas
influências do Pseudo-Dionísio (o Areopagita) – que exerceu
uma forte influência em toda a mística cristã ocidental
na Idade Média – dos místicos flamengos da própria
Idade Média e ainda de Santo Agostinho de Hipona (13 de novembro
de 354, Tagaste, Argélia - 28 de agosto de 430, Hipona, Argélia),
que viveu, portanto, 1.200 anos antes de João. Como avaliou A. Leitão,
a sua antropologia segue a tradição cristã neoplatônica,
com a tricotomia 'corpo-alma-espírito', admitindo por vezes conceitos
intermédios, o que levou H. Sanson a observar tratar-se de uma 'síntese
feliz de antropologia plotiniana e de antropologia escolástica'.
Aqui, então, vai a primeira reflexão pessoal: como é
possível se fazer um síntese efetiva de Neoplatonismo
com a Escolástica católica? Isto é equivalente a se
tentar fazer uma síntese do Rosacrucianismo com o Anarquismo de Mikhail
Aleksandrovitch Bakunin (1814-1876) ou com o dualismo religioso sincretista
do Maniqueísmo ou, ainda, com a infalibilidade papal proposta pelo
Ultramontanismo. Particularmente e como exemplo na esfera do Catolicismo,
Santo Agostinho entendeu isso muito bem quando abandonou o Maniqueísmo
(Filosofia dualística que divide o mundo entre bem, ou Deus, e mal,
ou o Diabo; a matéria, portanto, é intrinsecamente má,
e o espírito é intrinsecamente bom) para se dedicar aos ensinamentos
de Jesus, convertendo-se ao Catolicismo pela pregação de Ambrósio
de Milão. Foi batizado na Páscoa de 387 e retornou ao norte
da África, estabelecendo em Tagaste uma fundação monástica
junto com alguns amigos. Em 391 foi ordenado sacerdote em Hipona.
Reduzir
maniqueisticamente as coisas a dois pólos que mutuamente se auto-excluem
é um equívoco, quer da razão, quer da fé. Por
isso, por exemplo, a doutrina americana de segurança nacional que
recentemente criou o eixo do mal é estruturalmente perversa e ambígua.
Também são perversas e ambíguas as teologias que admitem
uma salvação apenas para os seus confrades. Ou
aprendemos que somos todos um ou aprenderemos que somos todos um. Não
há uma segunda possibilidade.
Ainda
que eu compreenda e admita a unidade cósmica, essa unidade se manifesta
na Terra por caleidoscópicas maneiras (racionais, irracionais, religiosas,
fideístas, fanatizadoras, categóricas, hipotéticas
etc.), na maioria das vezes, como não poderia deixar de ser, discordantes
entre si. É por isso que já afirmei em trabalho anterior que
se equivalem as razões fideístas e as fés racionais
(ou irracionais), ainda que não possam mesmo coexistir compativelmente
uma fé/racional ou uma razão/fideísta. A fé
autêntica e a inabalabilidade da consciência só poderão
advir de uma experiência mística autêntica e transracional,
vale dizer, Iniciática. O resto são conjecturas, isto é,
inferências ou deduções que alguma coisa seja ou possa
ser provável (ou improvável) com base em presunções,
evidências incompletas e/ou inconsistentes, teoremas não demonstrados,
pressentimentos, arrepios, devaneios, entressonhos, estimativas, fantasias,
hipóteses, pressuposições etc. Logo, uma síntese
feliz de antropologia plotiniana e de antropologia escolástica
– como H. Sanson propôs para a mística especulativa de
João da Cruz – não pode produzir nada de edificante
e nem mesmo pode ser feliz, pois acaba(ria) se tornando uma mera repetição
de conceitos dogmáticos com outras palavras. Mas, pessoalmente, penso
que não tenha mesmo havido tal síntese em João; se
houve, foi superficial e involuntária, ainda que, como afirmei, seu
pensamento esteja enquadrado e circunscrito ao rigor escolástico
que aprendeu em Salamanca. E que não se esqueça: Plotino (205
- 270 d. C., que chegou a pensar em fundar uma cidade chamada Platonópolis
baseada nos ensinamentos da República de Platão)
era um Iniciado, e quem ler as suas Enéadas (enneadi)
verá que seus 54 capítulos em quase nada se assemelham ao
pensamento de São João da Cruz, que era um religioso católico.
Religião exotérica e Misticismo Iniciático
não combinam porque são inconciliáveis, particularmente
em questões como a providência, a salvação, os
prêmios divinos, as punições divinas, a revelação
divina, a criação a partir do nada e quetais que não
fazem liga com a Metafísica Iniciática. Na Metafísica
Iniciática tudo depende do Iniciado; já nas religiões,
de uma maneira geral, Deus e o conjunto dos seus assessores interferem em
tudo. Em resumo: na Metafísica Iniciática o mérito
é absoluto; nas religiões ele é relativo porque o milagre
e o perdão perdoam o que não pode ser perdoado, e o sofrimento,
os óbolos, as doações, as penitências, os jejuns
etc. não resolvem nada.
A
Escolástica possuía, é verdade, uma
constante de natureza neoplatônica que tentava conciliar elementos
da filosofia de Platão com determinados valores de ordem espiritual
que foram reinterpretados e incorporados pelo Ocidente cristão. Tomás
de Aquino, por exemplo, quando introduziu alguns componentes da filosofia
aristotélica no pensamento escolástico não conseguiu
eliminar a presença de alguns traços do pensamento de Platão.
Por tudo isso, penso que os múltiplos sincretismos que se observam,
particularmente no Catolicismo, só conseguiram produzir um monstrengo
deformado e completamente apartado do Cristianismo Esotérico e Gnóstico
primitivo. Mas, insisto: o pensamento de João foi particularmente
original, mesmo que sejam admitidas determinadas influências aqui
ou ali (Aquino, Agostinho, Pseudo-Dionísio etc.), como foi, por exemplo,
sua percepção da noche oscura. Vou sublinhar novamente:
como conciliar Misticismo com Anarquismo, com Maniqueísmo ou com
Ultramontanismo? Eu não posso compreender isso, como nunca pude aceitar,
quando fiz meu doutorado em Filosofia, as citações e as ligações/ilações
que alguns de meus professores faziam para vomitar acervo de conhecimentos.
Isso, aliás, é um dos inócuos cacoetes de diversos
professores de Filosofia, que, geralmente, estão muito mais para
devoradores de livros e muito menos para autênticos Filósofos
(Philosophikós). Adoram citar um pensamentozinho (às
vezes, até, de fontes equivocadas, de autores que nunca emitiram
aquele pensamento e com datas sem nexo ou contraditórias); mas, de
original costumam não dizer necas de pitibiribas. Portanto, síntese
feliz de antropologia plotiniana e de antropologia escolástica? Em
João? Essa não! Daí, sumarizando o que foi argumentado,
tudo acaba desembocando em um caleidoscópio multifacetado e oscilante
de razões, opiniões, religiões, sistemas políticos,
antropologias, especulações sem sentido et cetera não
concordantes entre si. Em uma palavra: mixórdia.
Um
outro aspecto do pensamento místico-teológico de João
da Cruz é a admissibilidade de que Deus é a causa e o fim
de toda a criação, o que não chega a ser uma novidade,
porque todas as teologias admitem a mesma coisa, isto é: Deus é
um ente infinito, eterno, sobrenatural e existente por si só
e causa necessária e fim último de tudo que existe. Quando
eu estudei o catecismo católico para fazer minha primeira comunhão
me ensinaram que Deus é um Espírito Perfeitíssimo
criador do céu e da Terra. Tive que decorar isso sem entender
e sem que alguém me desse uma explicação coerente para
essa afirmação. Na Noche Oscura escreveu João:
Deus está dentro da alma, substancialmente, onde não pode
chegar o demônio nem o sentido natural nem o entendimento. O
caminhar para Deus realiza-se nas trevas – a noche oscura
– por intermédio da fé, que nos faz aderir a um
Ser acima de toda formulação, de todo conceito e de todo sentimento,
como admitia João. Na realidade, segundo José
Ferrater Mora, a noche oscura, em São João, é
o meio-dia, ou o começo do meio-dia, da experiência mística.
Na noche joanina há uma relativa segurança porque
os sentidos, o entendimento e a razão ficam apenas suspensos, isto
é, não são eliminados. Logo, a fé tem importância
primordial no pensamento teológico do santo carmelita, mas o que
sustenta o dinamismo dessa fé é o amor, conforme demonstra
a maioria dos excertos que listei, e que está amparada na admissibilidade
de um Deus transcendental.
Mas,
o segundo ponto que gostaria de refletir um pouco, para concluir, é
mesmo a questão do sofrimento, pois, salvo melhor entendimento, pelo
menos há dois mil anos ele é muito mal compreendido e é
uma fonte de equívocos insustentáveis. Como ficou dito na
biografia resumida de João da Cruz, Padecer e depois morrer
era o seu lema. Da sua biografia, sabe-se que João da Cruz costumava
pedir a Deus três coisas: 1ª - que não deixasse passar
um só dia de sua vida sem lhe enviar sofrimentos; 2ª - que não
o deixasse morrer ocupando o cargo de superior; e 3ª - que lhe permitisse
morrer humilhado e desprezado. Ora, penso, em primeiro lugar, que Deus (admitindo-se,
para efeito dialético e especulativo, Sua transcendência-onipotência),
ainda que admitido como transcendente-onipotente, nada tenha a ver com o
fato de alguém estar ocupando um determinado cargo (ou não),
pois, afinal, ele foi aceito voluntariamente por quem o ocupa, e não
foi Deus quem obrigou essa aquiescência. Em segundo, se, a partir
de um dado momento, a pessoa não quiser mais ser superior de uma
ordem religiosa ou diretor de uma organização qualquer tem
a liberdade de se exonerar. Eu fiz isso várias vezes e não
me arrependo de nenhuma. Por que, então, pedir ou rogar a Deus que
intervenha nessa decisão se ela é exclusivamente pessoal?
Admito que a maioria dos cargos mundanos (seculares, místicos e religiosos)
inflam o ego e são um perigo e um possível fator retrocessivo
para a ascensão espiritual. Então, se a criatura percebe que
está resvalando (ou que poderá resvalar) para a esfera da
vaidade pessoal, que se demita. Isso é muito simples.
Contudo,
não adiarei mais: o que desejo realmente abordar é a questão
do sofrimento. Misticamente, concordo que não se deva blasfemar ou
se sublevar contra o sofrimento. Isso é ignorância e não
resolve absolutamente nada. O próprio processo de encarnação
em um planeta da Terceira Dimensão impõe que, para que a experiência
encarnativa seja eficaz e eficiente, a constelação de experiências
que esse plano dimensional oferece seja integralmente vivido por quem ali
encarna. As amaguras, as dores e os sofrimentos, assim, não podem
ser exceções. Não porque o sofrimento seja uma experiência
necessária e/ou obrigatória, não porque o sofrimento
seja uma experiência útil e não porque o sofrimento
seja uma experiência insubstituível. Pode até ser útil,
mas obrigatoriamente necessário e irredutivelmente insubstituível
o sofrimento não é. O fato que precisa ser compreendido é
que todo sofrimento tem uma origem. Ele não existe no Universo como
coisa isolada esperando avidamente uma oportunidade para se fazer presente
e cair no colo de alguém. E essa origem não está em
Deus, nos demônios ou nos outros; está em nós em virtude
de nossa abissal ignorância, ou seja, nossa grosseria, nossa incivilidade,
nossa ingenuidade, nossa inocência, nossa desinformação,
nossa barbaria, nossa cegueira, nosso desconhecimento, nosso desentendimento,
nossa incultura et cetera, et cetera, et cetera. Ridiculamente
pôr a culpa nos outros ou em satanás é como colocar
a sujeira embaixo do tapete ou tirar o sofá da sala. Podemos até
disfarçar para o público, mas para nós não podemos.
Somos nós que criamos o caldo fermentativo para que tudo aconteça,
inclusive e principalmente o sofrimento. Indigestão e/ou eliminação
freqüente de fezes líquidas e abundantes não aparecem
do nada. É como diz a música de Billy Blanco: O que dá
pra rir dá pra chorar/Questão só de peso e medida/Problema
de hora e lugar/Mas tudo são coisas da vida... Logo, sofremos
porque somos ignorantes. Mas incrementar os sofrimentos 'naturais'
da vida com automortificações para obter o que quer que seja
é uma maluquice hipotética que não é uma obsessão
apenas dos católicos. Isso pode ser observado em diversas religiões
com maior ou menor intensidade, com maior ou menor grau de insanidade.
Em
aditamento, eu não posso conceber e não consigo
compreender, como já me referi, que se admita o sofrimento como coisa
insubstituível e obrigatoriamente necessária, e que, em decorrência
dessa esquerda compreensão, se peça o sofrimento a Deus como
forma de expiação ou como via para se alcançar uma
suposta bem-aventurança eterna. Por que padecer e depois morrer?
Por que não Compreender e depois Viver? Por que a mortificação
e o cilício? Por que não a vivificação e o florescer
da rosa? Por que, finalmente, sofrer ao invés de fazer acontecer
e de misticamente Viver? O sofrimento é o oposto da Vida Cósmica.
É o oposto também de orar e trabalhar e de dissolver e aglutinar.
É o oposto do amor. Pior é quando, interesseira e hipoteticamente,
se usa e se admite o sofrimento como uma presumida via salvífica
ou beatificadora. Não. Isso é um grosso equívoco da
razão noética e das visões teológicas em geral.
Não haverá leite e não haverá mel para quem
cisma de viver sofrendo ou para quem faz sofrer os outros. Eu não
conheço nenhum Místico que tenha recomendado essas coisas.
Na verdade, tudo isso é uma grande doença, e só um
trabalho terapêutico feito por um especialista competente poderá
produzir algum resultado. Como escreveu Sar Alden (Harvey Spencer Lewis,
primeiro Imperator da Ordem
Rosacruz – AMORC
das Américas do Norte e do Sul e fundador de seu segundo ciclo de
atividades no Hemisfério Ocidental): Na maioria dos trabalhos
terapêuticos feitos por qualquer metafísico, o maior problema
não está em ministrar o tratamento correto para a cura, nem
em diagnosticar o que está errado e nem em recomendar alguma prática
construtiva. Mas, sim, em retirar da mente do paciente as idéias
que restringem os processos criativos que atrapalham o trabalho da própria
Natureza... É mais ou menos como se o médico penetrasse no
cérebro do paciente com vassoura, aspirador de pó, pás
e picaretas para limpar as teias de aranha e a poeira, e destruir toda sorte
de caixotes velhos e outros materiais semelhantes, colocando em ordem o
referido local. Mas, na cabeça de quem se automortifica para
agradar a um presumido Deus ou para ganhar a chave de um suposto céu
há muito mais do que teias de aranha, poeira e caixotes velhos:
aí existe um inferno fabricado e não identificado a fermentar
e a ser ampliado minuto-a-minuto, hora-a-hora, dia-a-dia em decorrência
das sucessivas prisões que a criatura pariu e que continua a parir.
Se um elefante amola muita gente e dois elefantes amolam muito mais, uma
prisão entrava um Coração de se manifestar e muitas
prisões entravam muito mais.
Quem
venceu a fé obscurante e atravessou o Portal que separa a razão
da transrazão aprendeu que a Vida só poderá ser alcançada
e conquistada pelo amor e pela compreensão (nesta ordem), sem, necessariamente,
que precise haver dor ou sofrimento auto-impostos. Dor e sofrimento oriundos
de uma saudade metafísica? Sim, isso é bom e alerta para as
ilusões da vida. (Agora chorei um pouquinho, mas já me acalmei.)
Dor e sofrimento derivados de uma ignorância consciente e inultrapassável
em uma única vida? Sim, isso é compreensível e aceitável,
pois a vida não se encerra com o término de uma vida. Ora
et labora... Solve et coagula... Dor e sofrimento provocados pelo egoísmo,
pela vaidade e pelas ilusões? Sim e não. Sim, porque tudo
pode ser transmutado. Não, porque sofrer e continuar a sofrer por
permanecer egoísta, vaidoso e iludido são opções
retrocessivas, e o sofrimento, nestes casos, é inútil como
escola ou aprendizagem, enquanto persistirem e forem alimentados o egoísmo,
a vaidade e as ilusões materiais. Para mudar vai de querer.
Porém,
dando um giro de 180 graus, usar quaisquer vestimentas, colares ou faixas
de crina ou de pano grosseiro e áspero sobre a pele por penitência,
cingir o corpo com cinto ou cordão eriçado de cerdas ou correntes
de ferro cheio de pontas, e praticar sacrifícios ou mortificações
corporais com o intuito de purgar os pecados, de combater as tentações
da carne ou de imitar o sofrimento físico de Jesus são contra-sensos
que beiram as raias da insanidade. De uma coisa estou convicto: a nossa
personalidade-alma não aprende absolutamente nada com sofrimentos
físicos rogados ou auto-impostos.
Personalidade-alma é personalidade-alma, corpo físico é
corpo físico. Portanto, imitar (ou toscamente tentar imitar) o sofrimento
de Jesus (qualquer que seja a imitação) não faz o menor
sentido. Primeiro, simplesmente porque não somos Ele. Segundo, Seu
sofrimento teve uma razão para acontecer. E Ele, ainda que sabedor
e preparado para o episódio transmutativo da Crucificação
Alquímica, não o desejou e não o pediu a priori.
Concordou em passar pela crucifixão, necessariamente, mas, segundo
Lucas XXII, 42, argüiu em seu favor: — Pai, se é do
teu agrado, afasta de mim este cálice; não se faça,
contudo, a minha vontade, mas a tua. Jesus não disse, portanto:
— Não agüento mais esperar a hora de sofrer e de ser
crucifixado pela Humanidade; Pai, se quiseres, podes dobrar ou triplicar
a dor que irei sofrer no madeiro. Isso Ele não disse e nem pensou.
Não disse e não pensou porque era um Iniciado e não
um esquizofrênico, e sabia exatamente porque havia encarnado e o porquê
de sua Santa Missão na Terra, ainda que o cálice não
pudesse mesmo ser afastado. Ou será que alguém, por outro
lado, pensa que Sar Alden sofreu o que sofreu porque quis? Se ele pudesse
faria tudo o que veio fazer sem passar por qualquer sofrimento ou traição.
Segundo
consta, os próprios pastorinhos de Fátima, sem nada conhecerem
de ascese, usavam como cilício uma corda que os fazia sofrer fisicamente
pela conversão dos pecadores. Esse sem nada conhecerem de ascese
é inverossímil, pois, no mínimo, os pastorinhos ouviram
falar dessa prática. Ignorantes, imitaram, sofreram e se automortificaram.
O fato é que pecador não se converte; pensa que se converteu.
A verdadeira conversão é interior – in Corde –
pela Iniciação-Compreensão. De passagem: por
que não utilizar a Lei da Assunção Mística ao
invés do cilício? Bem, para quem não sabe aplicar a
Lei da Assunção Mística usar o cilício é
uma inutilidade. Só dói em quem usa. O pior de tudo isso é
que, quando alguém roga por sofrimento, e sofre, vai criando psiquicamente
as condições para que o sofrimento, de uma forma ou de outra,
acabe paulatinamente se materializando. Os pensamentos são mantras
operativos e efetivos, criadores e destruidores. Por que luz polarizada
e não luz solar? O dado biográfico, enfim, é que o
próprio São João da Cruz faleceu
no convento de Ubeda, aos quarenta e nove anos, à meia-noite
do dia 14 de dezembro de 1591, após três
meses de sofrimentos atrozes, depois de pedir a vida inteira a Deus
que
lhe permitisse morrer humilhado e desprezado.
Não posso deixar de dizer que compreendo as boníssimas intenções
de São João da Cruz, mas não as apóio.
Penso,
conclusivamente, que à medida que o Amor impessoal e a Compreensão
reta vão se fazendo e se cristalizando na consciência do ser,
compromissos esquerdos e hipotéticos vão se dissipando e se
transmutando. E nisso concordo com São João da Cruz, pois
estava certíssimo o Doutor Místico quando ensinou: 1º
- Quando reparas em alguma coisa, deixas de arrojar-te ao tudo. Porque
para vir de todo ao tudo, hás de negar-te de todo em tudo. E quando
vieres a tudo ter, hás de tê-lo sem nada querer. Porque se
queres ter alguma coisa em tudo, não tens puramente em Deus teu tesouro;
2º - É próprio do perfeito amor nada querer
admitir ou tomar para si, nem se atribuir coisa alguma; e 3º
- Não há trabalho melhor nem mais necessário do que
o amor... De tudo o que foi visto, fico com a opinião de José
Ferrater Mora: É possível, pois, examinar temas metafísicos
em São joão da Cruz sem concluir que isso constitua uma suposta
metafísica de São João da Cruz. Que se entenda
definitivamente: metafísica teológica é uma coisa;
METAFÍSICA INICIÁTICA é outra completamente diferente.
Enfim,
cada um haverá de entender e de realizar Deus da forma que sua Consciência
e sua cultura mística permitirem. Mas, como deixou escrito Sar Validivar
(Ralph Maxwell Lewis, segundo Imperator da Ordem
Rosacruz – AMORC
das Américas do Norte e do Sul e fundador de seu segundo ciclo de
atividades no Hemisfério Ocidental) em seu Credo da Paz:
Sou responsável pela guerra... Se acredito que outras pessoas
devem pensar e viver da mesma maneira que eu... Quando penso que a mente
das pessoas deve ser dominada pela força e não educada pela
razão... Se acredito que o Deus de minha concepção
é aquele em que os outros devem acreditar... Enfim, conclui
Sar Validivar: Se estou em paz, eu promovo a paz dos que me cercam.
Por sua vez, eles promovem a paz daqueles que estão à sua
volta e que também farão o mesmo. Então, a paz começa
por mim! E sem ela não pode haver a necessária transformação
social. Sem sofrimentos rogados, auto-impostos ou compulsórios,
porque a paz (e mais do que isso, a Paz Profunda) é incompatível
com qualquer tipo de sofrimento.
Rio
de Janeiro, 10 de junho de 2006.
Revisto em 26 de julho de 2006.
Bibliografia
ABBAGNANO,
Nicola. Dicionário de filosofia. 2ª ed. São
Paulo: Mestre Jou, 1982.
LOGOS
– Enciclopédia Luso-Brasileira. Vol. III. Lisboa/São
Paulo: Editorial Verbo, 1991.
MORA,
José Ferrater. Diccionario de filosofia. Vol. II. 1ª
ed. 7ª reimp. Barcelona: Alianza Editorial, S.A., 1990.
SCIADINI,
Patrício. São João da Cruz. 2ª edição.
São Paulo: Edições Loyola, 1995.
_____.
São João da Cruz de A a Z. 2ª edição. São
Paulo: Edições Loyola, 2003.
_____.
San Juan de la Cruz (o poeta de Deus). São Paulo: Editora Palas Athena,
2004.
Páginas
Web e Websites
consultados:
http://br.geocities.com/monjascarmelitas/pensamentosjoao.html
http://br.geocities.com/monjascarmelitas/noiteescura.html
http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Jo%C3%A3o_da_Cruz
http://br.geocities.com/monjascarmelitas/juan.html
http://laranjamarga.weblog.com.pt/arquivo/045329.html
http://www.carmelosaojose.com.br/saojoao.php
http://misticaepoesia.zip.net/
http://www.lotusdosaber.com/TLL/pages/viverdeamor.html
http://www.oracaocentrante.org/sjcruz.htm
http://www.agencia.ecclesia.pt/catolicopedia/artigo.asp?id_entrada=325
http://es.wikipedia.org/wiki/Cilicio
http://www.calc101.com/animations/
http://www.cobra.pages.nom.br/fmp-kantcont.html
http://pt.wikipedia.org/wiki/Plotino
http://pt.wikipedia.org/wiki/Escol%C3%A1stica
http://pt.wikipedia.org/wiki/Agostinho_de_Hipona
Música
de fundo:
Glória
Fonte:
http://www.zeitun-eg.org/midi.htm
A
paz (e mais do que isso, a Paz Profunda)
é incompatível com qualquer tipo de sofrimento.