SÃO JOÃO DA CRUZ
(E a Questão do Sofrimento)

 

 

 

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

Objetivo do Trabalho

 

Este trabalho tem três objetivos principais: revisitar resumidamente a trajetória biográfica de São João da Cruz, apresentar alguns de seus pensamentos para reflexão e discutir a questão do sofrimento. As duas primeiras partes foram estruturadas a partir de alguns Websites que disponibilizam a biografia e os pensamentos do autor católico, de enciclopédias e dicionários de filosofia e de três livros sobre São João da Cruz de autoria de Patrício Sciadini, OCD. A terceira constituiu-se de uma rápida especulação metafísica que faço a respeito do sofrimento, um tema que não abordei em ensaios anteriores. Esta terceira parte foi motivada em virtude do lema de João – Padecer e depois morrer – do qual, antecipadamente, devo dizer que não concordo.

 

 

— São João da Cruz
Biografia Resumida
(Editada principalmente de:
http://br.geocities.com/monjascarmelitas/joao.html)

 

 

 

 

 

 

São João da Cruz (Juan de la Cruz) nasceu em 1542, talvez no dia 24 de junho, em Fontiveros, província de Ávila, na Espanha. Seus pais se chamavam Gonzalo de Yepes e Catalina Alvarez. Gonzalo pertencia a uma família de posses da cidade de Toledo. Por se ter casado com uma jovem de classe inferior foi deserdado por seus pais e tornou-se tecelão de seda. Em 1548, a família mudou-se para Arévalo. Em 1551 transferem-se para Medina del Campo, onde o futuro reformador do Carmelo estudou em uma escola destinada a crianças pobres. Por suas aptidões, tornou-se empregado do diretor do Hospital de Medina del Campo. Entre 1559 a 1563 estudou Humanidades com os Jesuítas. Ingressou na Ordem dos Carmelitas aos vinte e um anos de idade, em 1563, quando recebeu o nome de João de São Matias (Juan de Santo Matía), em Medina del Campo. Pensou em se tornar irmão leigo, mas seus superiores não o permitiram. Entre 1564 e 1568 fez sua profissão religiosa e estudou em Salamanca. Tendo concluído com êxito seus estudos teológicos em 1567, ordenou-se sacerdote e celebrou sua primeira Missa.


Infelizmente, ficou muito desiludido pelo relaxamento da vida monástica em que viviam os conventos carmelitas. Decepcionado, tentou passar para a Ordem dos Cartuxos, ordem muito austera, na qual poderia viver a severidade de vida religiosa à que se sentia chamado. Em setembro de 1567 encontrou-se com Santa Teresa, que lhe falou sobre o projeto de estender a Reforma da Ordem Carmelita também aos padres. O jovem de apenas vinte e cinco anos de idade aceitou o desafio imediatamente e trocou seu nome para João da Cruz. No dia 28 de novembro de 1568, juntamente com Frei Antônio de Jesús Heredia, iniciou a Reforma. O desejo de voltar à mística religiosidade do deserto custou ao santo fundador maus tratos físicos e difamações. Em 1577 foi preso por oito meses no cárcere de Toledo. Nessas trevas exteriores acendeu-se-lhe a chama de sua poesia espiritual. Padecer e depois morrer era o lema do autor da Noite Escura da Alma, da Subida do Monte Carmelo, do Cântico Espiritual e da Chama de Amor Viva.

A doutrina de João da Cruz é plenamente fiel à antiga tradição: o objetivo do homem na Terra é alcançar perfeição da caridade e elevar-se à dignidade de filho de Deus pelo amor. A contemplação não é um fim em si mesma, mas deve conduzir ao amor e à união com Deus pelo amor e, por último, deve levar à experiência dessa união à qual tudo se ordena. Não há trabalho melhor nem mais necessário do que o amor, disse o Santo. Também são suas as afirmações: Fomos feitos para o amor. O único instrumento do qual Deus se serve é o amor. Assim como o Pai e o Filho estão unidos pelo amor, assim o amor é o laço da união da alma com Deus.

O amor leva às alturas da contemplação, mas como o amor é produto da fé – que é a única ponte que pode salvar o abismo que separa a nossa inteligência do infinito de Deus – a fé ardente e vívida é o princípio da experiência mística. João da Cruz costumava pedir a Deus três coisas: que não deixasse passar um só dia de sua vida sem enviar-lhe sofrimentos; que não o deixasse morrer ocupando o cargo de superior; e que lhe permitisse morrer humilhado e desprezado. E assim sucedeu.

Faleceu no convento de Ubeda, aos quarenta e nove anos, à meia-noite do dia 14 de dezembro de 1591, após três meses de sofrimentos atrozes. Seu corpo foi trasladado para Segovia em maio de 1593. A primeira edição de suas obras deu-se em Alcalá, em 1618. No dia 25 de janeiro de 1675 foi beatificado por Clemente X. Foi canonizado em 27 de dezembro de 1726 e declarado Doutor da Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952 foi proclamado Patrono dos Poetas Espanhóis.

Talvez a mais bela e completa descrição física e espiritual do Santo tenha sido feita por Frei Eliseu dos Mártires que com ele conviveu em Baeza: Homem de estatura mediana, de rosto sério e venerável. Um pouco moreno e de boa fisionomia. Seu trato era muito agradável e sua conversa bastante espiritual era muito proveitosa para os que o ouviam. Todos os que o procuravam saíam espiritualizados e atraídos à virtude. Foi amigo do recolhimento e falava pouco. Quando repreendia como superior, que o foi muitas vezes, agia com doce severidade, exortando com amor paternal. Santa Teresa de Jesus o considerava uma das almas mais puras que Deus tem em sua Igreja. Nosso Senhor lhe infundiu grandes riquezas da sabedoria celestial. Mesmo pequeno ele é grande aos olhos de Deus. Não há frade que não fale bem dele, porque sua vida tem sido uma grande penitência. Poucos homens, no âmbito do Catolicismo, falaram dos sublimes mistérios de Deus na alma e da alma em Deus como São João da Cruz. Santa Teresinha conheceu João da Cruz quando ainda vivia nos Buissonnets. Ela, em seus escritos, referiu-se ao Santo Fundador cento e seis vezes, direta ou indiretamente, e confessa a forte influência que dele recebeu: Ah, quantas luzes hauri nas obras de Nosso Pai São João da Cruz! Com a idade de 17 a 18 anos, não tinha outro alimento espiritual...

 

Cronologia

 

1542: Nasce em Fontiveros (Ávila), talvez no dia 24 de junho, filho do casal Gonzalo de Yepes e Catalina Alvarez.

1548: Vai residir em Arévalo.

1551: Muda-se com a família para Medina del Campo.

1559-63: Cursa humanidades com os Jesuítas de Medina.

1563: Veste o hábito carmelitano, recebendo o nome de Fr. Juan de San Matias, em Medina del Campo.

1564-68: Professa os votos e estuda em Salamanca na Universidade e no Colégio de San Andrés.

1567: Ordena-se sacerdote e celebra sua primeira Missa, em Medina.

1567: Em setembro, encontra-se com a Santa Madre Teresa, que lhe fala sobre o projeto da Reforma da Ordem, também entre os religiosos.

1568: Em Duruelo começa a Reforma com o Pe. Antonio de Jesús Heredia.

1568-71: Mestre dos noviços em Duruelo, Mancera e Pastrana.

1569: Abre-se o convento de Pastrana e o Santo vai para lá a fim de suavizar a excessiva dureza de sua vida.

1570: A comunidade de Duruelo se transfere para Mancera.

1571: Nomeado Reitor do Colégio de Alcalá.

1572-77: Confessor e Vigário na Encarnação, em Ávila.

1577: Na noite de 3 para 4 de dezembro é levado para o cárcere de Toledo, onde ficou até 15 de agosto de 1578.

1579: Reitor do colégio de Baeza.

1581: No Capítulo de Alcalá é nomeado terceiro Definidor, Provincial e Prior de Granada.

1583: Reeleito Prior de Granada.

1585: Em Lisboa foi eleito segundo Definidor e em outubro o nomeiam Vigário Provincial de Andaluzia.

1586: Faz a fundação dos padres em Córdoba, Manchuela e Caravaca.

1587: No Capítulo de Valladolid é nomeado pela terceira vez Prior de Granada.

1588: No Primeiro Capítulo Geral, celebrado em Madrid, é nomeado Primeiro Definidor Geral, Prior de Segóvia e Terceiro Conselheiro de consulta.

1591: Assiste ao Capítulo Geral em Madri e terminam todos os seus cargos.

1591: Morre em Ubeda (Jaén), à meia-noite, aos 49 anos.

1593: Seu corpo é trasladado para Segóvia.

1618: Primeira edição de suas obras em Alcalá.

1675: Beatificado por Clemente X.

1726: Canonizado por Bento XIII.

1926: Declarado Doutor Místico da Igreja por Pio Xl.

1952: Proclamado patrono dos poetas espanhóis.

 

 

Poemas e Fragmentos

 

 

Poemas

 

Noite Escura
(tradução de Jorge de Sena)

 

Em uma Noite escura,
com ânsias em amores inflamada,
ó ditosa ventura!,
saí sem ser notada
estando minha casa sossegada.

À ocultas e segura,
pela secreta escada, disfarçada,
ó ditosa ventura!
À ocultas, embuçada,
estando minha casa sossegada.

Em uma Noite ditosa,
tão em segredo que ninguém me via,
nem eu nenhuma cousa,
sem outra luz e guia
senão aquela que em meu seio ardia.
Só ela me guiava,
mais certa do que a luz do meio-dia,
adonde me esperava
quem eu mui bem sabia,
em parte onde ninguém aparecia.

Ó Noite que guiaste!
Ó Noite amável mais do que a alvorada!
Ó Noite que juntaste
Amado com amada,
amada nesse Amado transformada!

No meu peito florido,
que inteiro para Ele se guardava,
quedou adormecido
do prazer que eu Lhe dava,
e a brisa no alto cedro suspirava.

Da torre a brisa amena,
quando eu a seus cabelos revolvia,
com fina mão serena
a meu colo feria
e todos meus sentidos suspendia.

Quedei-me e me olvidei,
e o rosto reclinei sobre o do Amado:
tudo cessou, me dei,
deixando meu cuidado
por entre as açucenas olvidado.

 

Toda Ciência Transcendendo

 

Entrei-me adonde não soube
e quedei-me não sabendo,
toda ciência transcendendo.

Eu não sabia onde entrava,
porém, quando ali me vi,
sem saber adonde entrava,
grandes coisas entendi:
não direi o que senti,
que mo quedei não sabendo,
toda ciência transcendendo.

De paz e de piedade
era a ciência perfeita,
em profunda soledade,
entendida a via reta:
era coisa tão secreta,
a fala subvertendo,
toda ciência transcendendo.

Estava tão embebido,
tão absorto e tão alheado,
que se quedou meu sentido
de todo o sentir privado:
e o espírito dotado
de entender não entendendo,
toda ciência transcendendo.

Que ali chega verdadeiro
de si mesmo desfalece;
quanto sabia primeiro
muito baixo lhe parece:
sua ciência tanto cresce
que se queda não sabendo
toda ciência transcendendo.

Quanto mais alto se ascende,
tanto menos entendia
que negra nuvem se acende
que as trevas esclarecia:
por isso quem a sabia
queda sempre não sabendo
toda ciência transcendendo.

Este saber não sabendo
é de tão alto poder,
que os mais sábios revolvendo
jamais o podem vencer:
pois não chega o seu saber
a no entender entendendo,
toda ciência transcendendo.

E é de tão alta excelência
este mais sumo saber
que faculdade ou ciência
não há para o compreender:
quem a si souber vencer
com um não saber sabendo,
irá sempre transcendendo.

E, se quiserdes ouvir,
consiste a suma ciência
em um subido sentir
da só divinal Essência:
obra é de sua clemência
o quedar não entendendo,
toda ciência transcendendo.

 

A Encarnação

 

Já que o tempo era chegado
em que se fazer devia
o resgate da esposa
que em duro jugo servia...
nos amores perfeitos
esta lei se requeria,
que se torne semelhante
o amante a quem queria,
porque a maior semelhança
mais deleite caberia;
o qual, por certo, em tua esposa
grandemente cresceria
se te visse semelhante
na carne que possuía.

Irei buscar minha esposa
e sobre mim tomaria
suas fadigas e dores
em que tanto padecia;
e para que tenha vida,
eu por ela morreria,
e tirando-a das profundas,
a ti a devolveria.

 

Cântico Espiritual

 

Quando tu me fitavas,
teus olhos sua graça me infundiam;
e assim me sobreamavas,
e nisso mereciam
meus olhos adorar o que em ti viam.

Não queiras desprezar-me,
porque, se cor trigueira em mim achaste,
já podes ver-me agora,
pois, desde que me olhaste,
a graça e a formosura em mim deixaste.

 

Chama Viva de Amor

 

Oh, chama viva de amor
que ternamente feres
de minha alma no mais profundo centro!
Pois não és mais esquiva,
acaba já, se queres.
Ah, rompe a tela deste doce encontro!


...


Oh, quão manso e amoroso
despertas em meu seio,
onde tu só secretamente moras:
nesse aspirar gostoso,
de bens e glória cheio,
quão delicadamente me enamoras!

 

Fragmentos

 

 

É humilde quem se esconde no seu nada e sabe se abandonar em Deus.

Que descubramos o tesouro da cruz. Que a oração e o silêncio nos levem a descobrir Deus. Que sejamos dóceis às inspirações do alto. Que saibamos perdoar a todos que nos ofendem.

A esperança em Deus só pode ser perfeita quando se afasta da memória tudo o que se contrapõe a Deus.

Quando a pessoa ama alguma coisa fora de Deus torna-se incapaz de se transformar Nele e de se unir a Ele.

Quanto mais se acredita em Deus e se serve a Ele sem testemunhos e sinais, tanto mais Ele é exaltado pelo homem.

Enquanto não te despojares de tudo, tu não terás capacidade para receber o espírito de Deus em pura transformação.

Embora a alma tenha altíssimas revelações divinas, a mais elevada contemplação, a ciência de todos os mistérios... se lhe falta amor, de nada lhe servirá para se unir a Deus.

Não há trabalho melhor nem mais necessário do que o amor. Fomos feitos para o amor. O único instrumento do qual Deus se serve é o amor. Assim como o Pai e o Filho estão unidos pelo amor, assim o amor é o laço de união da alma com Deus.

O amor não cansa nem se cansa.

Sofrer por Deus é melhor do que fazer milagres.

As visões e as apreensões dos sentidos não podem servir de meio para a união com Deus.

Para chegares a saborear tudo, não queiras ter gosto em coisa alguma. Para chegares a possuir tudo, não queiras possuir coisa alguma. Para chegares a ser tudo, não queiras ser coisa alguma. Para chegares a saber tudo, não queiras saber coisa alguma. Para chegares ao que não gostas, hás de ir por onde não gostas. Para chegares a saber o que não sabes, hás de ir por onde não sabes. Para vires o que não possuis, hás de ir por onde não possuis. Para chegares ao que não és, hás de ir por onde não és.

Ao que está desprendido, não lhe pesam cuidados na hora da oração ou fora dela.

O progresso é maior quando se caminha às escuras e sem saber.

Criatura alguma merece amor senão pelo bem que nela há. Amar desse modo é amar segundo a vontade de Deus e com grande liberdade. E se este amor nos une à criatura, mais fortemente ainda nos une ao Criador.

Onde não há amor, põe amor e colherás amor.

Para quem ama, a morte não pode ser amarga, pois nela se encontram todas as doçuras e todas as alegrias do amor. Sua lembrança não é triste, mas traz alegria. Não apavora nem causa sofrimento, pois é o término de todas as dores e o início de todo bem.

Quem souber morrer para tudo terá vida em tudo.

Aprendam a permanecer em Deus com atenção amorosa, com calma, sem se preocuparem com a imaginação e com as imagens que ela forma. Assim, as faculdades descansam e não atuam; recebem passivamente a ação divina.

Quando tiveres algum aborrecimento e desgosto, lembra-te do Cristo crucificado e cala.

Quando reparas em alguma coisa, deixas de arrojar-te ao tudo. Porque para vir de todo ao tudo, hás de negar-te de todo em tudo. E quando vieres a tudo ter, hás de tê-lo sem nada querer. Porque se queres ter alguma coisa em tudo, não tens puramente em Deus teu tesouro.

A amplidão do deserto ajuda muito o espírito e o corpo.

Por causa de prazeres passageiros, sofrem-se grandes tormentos...

Se quiseres chegar a possuir o Cristo, jamais o busques sem a tua cruz.

Quando a alma se acha livre e purificada de tudo, em união com Deus, nenhuma coisa poderá aborrecê-la. Daqui se origina para ela, neste estado, o gozo de uma contínua suavidade e de uma tranqüilidade que ela nunca perde nem jamais lhe falta.

O Silêncio leva ao recolhimento e dá força ao espírito.

Quando tiveres teus desejos apagados e tuas faculdades incapazes de qualquer exercício interior, não sofras por isso; considera-te feliz por estares assim. É Deus que te vai livrando de ti mesmo e tirando-te das mãos todas as coisas que possuis.

Caminhará mais quem carregar consigo menos coisas e menos desejos.

A mosca que pousa no mel não pode voar; a alma que fica presa ao sabor do prazer sente-se impedida em sua liberdade e contemplação.

Amado meu: tudo o que é difícil e trabalhoso eu o quero para mim; e tudo o que é suave e saboroso eu o quero para ti.

Não fujas dos sofrimentos, porque neles está a tua saúde.

A alma que busca a Deus e permanece em seus desejos e comodismo, busca-o de noite, e, portanto, não O encontrará. Mas quem O busca através das obras e dos exercícios da virtude, deixando de lado seus gostos e prazeres, certamente O encontrará, pois O busca de dia.

Todo poder e liberdade do mundo – comparados com a soberania e a independência do espírito de Deus são completa servidão, angústia e cativeiro.

Não é bem orientado o espírito que quer caminhar por doçuras e facilidades, fugindo de imitar a Cristo.

É próprio do perfeito amor nada querer admitir ou tomar para si, nem se atribuir coisa alguma...

O demônio teme a alma unida a Deus como ao próprio Deus.

Para possuir Deus plenamente, é preciso nada ter; porque se o coração pertence a Ele, não pode se voltar para outro.

A alma que verdadeiramente ama a Deus não deixa de fazer o que pode para achar o Filho de Deus, seu Amado. Mesmo depois de haver empregado todos os esforços, não se contenta e julga não ter feito nada.

A criatura atormenta; Espírito de Deus gera alegria.

Quem não renascer do Espírito Santo jamais verá o Reino de Deus que é o estado de perfeição.

Há uma distância infinita entre o ser divino e o ser das criaturas. Por isso, é impossível à inteligência, por si só, atingir a Deus.

Que mais queres, ó alma, e que mais buscas fora de ti, se encontras em teu próprio ser a riqueza, a satisfação, a fartura e o reino, que é teu Amado, e a quem procuras e desejas?

Ainda que estejas em sofrimento, não queiras fazer a tua vontade, pois terás, assim, o dobro de sofrimento.

Para se progredir, o que mais se necessita é saber calar diante de Deus... A linguagem que Ele melhor ouve é a do silêncio de amor.

É inegável que a alma chega ao conhecimento de Deus, antes pelo que Ele não é do que pelo que Ele é.

A pessoa cujo estado de perfeição não corresponda à sua própria capacidade jamais gozará da verdadeira paz e satisfação, porque, em suas faculdades, não chegou ainda àquele grau de despojamento que se requer para a simples união com Deus.

Ó Senhor, Deus meu! Quem Te buscará com amor tão puro e tão singelo que deixe de Te encontrar, conforme o Teu desejo e a Tua vontade, se és Tu o primeiro a mostrar-Te e a saíres ao encontro daqueles que Te desejam?

Em teu recolhimento interior, regozija-te com Ele, pois Ele está muito perto de ti.

A noite sossegada,
quase aos levantes do raiar da aurora;
a música calada
a solidão sonora,
a ceia que recreia e enamora.

Se a atração dos olhos vos levar para as coisas que não elevam nada para Deus, abstende-vos de as gozar. Suprimi a força da atração exercida sobre cada um dos vossos sentidos... Mais ainda: a exemplo de Jesus Cristo, procurai, não o mais fácil, mas o mais difícil, não a consolação, mas a desolação. Trabalhai no desprezo de vós mesmos.

Que felicidade o homem poder se libertar de sua sensualidade! Isto não pode ser bem compreendido, a meu ver, senão por quem o experimentou. Só então verá claramente como era miserável a escravidão em que se estava.

Alma formosíssima entre todas as criaturas, que tanto desejas saber o lugar onde está teu Amado, a fim de o buscares e a Ele te unires. Já te foi dito que és tu mesma o aposento onde Ele mora, e o recôndito esconderijo em que se oculta.

No ocaso da vida serás examinado sobre o amor.

Suma da perfeição: Esquecimento do criado, memória do Criador, atenção ao interior e permanecer amando o Amado.

Quem se lamenta ou murmura não é cristão perfeito, nem mesmo bom cristão.

As criaturas são vestígios das pegadas de Deus pelas quais se reconhece Sua grandeza, poder e sabedoria.

Os incomensuráveis bens de Deus só podem ser acolhidos por um coração vazio.

É em teu próprio ser que podes desejá-Lo e adorá-Lo – não O procures fora de ti porque te distrairás e cansarás. Não O encontrarás nem gozarás Dele com maior segurança, nem mais depressa, nem mais de perto, do que dentro de ti mesmo.

O estado de união consiste na transformação total da vontade humana na divina, de modo que nela nada haja de contrário a essa vontade, mas seja sempre movida, em tudo, pela vontade de Deus. Por isso dizemos que, nesse estado, as duas vontades formam uma só a Vontade de Deus.

 

 

A Questão do Sofrimento
(reflexões pessoais)

 

O que irei discutir a seguir remete, mais uma vez e preliminarmente, para a questão dos imperativos kantianos. Por isso, vou sintetizá-los novamente.

Regra de Vida para Kant: O céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.

Imperativo Categórico (É preciso porque é preciso): Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre e ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal. Isto é: cumpre o teu dever incondicionalmente. Exemplo: 12 + 1 = 13. O 13 não está contido na idéia de 12 ou de 1; o resultado ocorre independentemente de qualquer experiência e de modo irredutível e absolutamente necessário, isto é: é uma legislação universal.

Imperativo Hipotético: Dita um curso específico de uma ação para se chegar a um fim almejado. Os imperativos hipotéticos estão subordinados a uma determinada condição, correspondendo, assim, a ações como meio de evitar tal ou qual castigo, ou para que se obtenha tal ou qual recompensa. Enunciam um mandamento subordinado a determinadas condições. No caso de uma doença, por exemplo, a regra hipotética é: se queres sarar, toma o remédio.

Imperativo Universal: Age como se a máxima de tua ação devesse se tornar, por tua vontade, lei universal da Natureza.

Imperativo Prático: Age de forma que reconheças a Humanidade, quer na tua pessoa como na de qualquer outra, sempre e ao mesmo tempo como um fim, jamais meramente como um simples meio.

Fórmula da Autonomia: Devemos agir de forma que possamos pensar de nós próprios como leis universais legislativas através das nossas máximas. Poderemos pensar em nós como tais legisladores autônomos apenas se seguirmos as nossas próprias leis.

Revisitados estes conceitos, discutirei um tema que não examinei em trabalhos anteriores, e, desde já, apresento minhas desculpas pelo que irei refletir, porque sei que muitos religiosos não concordarão com os argumentos que serão apresentados. Mas, o fato é que subscrevo inteiramente as reflexões morais de Immanuel Kant (1724-1804), particularmente no que se referem aos imperativos, que valem, inclusive e principalmente, para os temas teológicos. Quando se pratica uma ação ancorada em um imperativo interesseiro (hipotético), obviamente tudo que daí decorrer tenderá para zero ou, em outras palavras, não tem valor espiritual efetivo. Obviamente isto se aplica ao campo da moral e das relações que o ente presume que possa ter com a(s) divindade(s); não é aplicável, por exemplo, no curso de uma doença ou quando a pessoa imperativamente toma um banho para ficar limpa. Mas, nos âmbitos religioso e moral os exemplos são diversos, uns mais perversos (como matar em nome de Deus), outros nem tanto (como comungar em nove primeiras sextas-feiras seguidas para obter a graça da penitência final). Também exemplificam imperativos hipotéticos as diversas formas de corrupção praticadas por políticos e autoridades públicas, quando exigem percentuais e participações para autorizar a implementação de projetos de interesse (ou não) da população. O pior é quando esses projetos não são concluídos e ficam a se deteriorar no tempo. Isso geralmente acontece porque as propinas e as bolas são recolhidas no início das obras, e daí para frente não há interesse em concluí-las. Isso que acabei de comentar é uma especificidade do Brasil, no qual, por esse pérfido motivo, há centenas de obras inacabadas se deteriorando ao luar. Passarei a examinar um pouco mais à frente a questão do sofrimento em São João da Cruz.

Inquestionavelmente, João da Cruz – o Poeta de Deus – é um dos expoentes da mística e um dos maiores escritores do século de ouro espanhol, tendo mergulhado, em suas reflexões, nos campos da Literatura, da Teologia e da Filosofia. Seu pensamento está enquadrado e de certa forma circunscrito ao rigor escolástico que aprendeu em Salamanca, e que se manteve fiel a Santo Tomás de Aquino (perto de Aquino, Itália, 1227 - Paris, França, 1274), mas que também sofreu algumas influências do Pseudo-Dionísio (o Areopagita) – que exerceu uma forte influência em toda a mística cristã ocidental na Idade Média – dos místicos flamengos da própria Idade Média e ainda de Santo Agostinho de Hipona (13 de novembro de 354, Tagaste, Argélia - 28 de agosto de 430, Hipona, Argélia), que viveu, portanto, 1.200 anos antes de João. Como avaliou A. Leitão, a sua antropologia segue a tradição cristã neoplatônica, com a tricotomia 'corpo-alma-espírito', admitindo por vezes conceitos intermédios, o que levou H. Sanson a observar tratar-se de uma 'síntese feliz de antropologia plotiniana e de antropologia escolástica'. Aqui, então, vai a primeira reflexão pessoal: como é possível se fazer um síntese efetiva de Neoplatonismo com a Escolástica católica? Isto é equivalente a se tentar fazer uma síntese do Rosacrucianismo com o Anarquismo de Mikhail Aleksandrovitch Bakunin (1814-1876) ou com o dualismo religioso sincretista do Maniqueísmo ou, ainda, com a infalibilidade papal proposta pelo Ultramontanismo. Particularmente e como exemplo na esfera do Catolicismo, Santo Agostinho entendeu isso muito bem quando abandonou o Maniqueísmo (Filosofia dualística que divide o mundo entre bem, ou Deus, e mal, ou o Diabo; a matéria, portanto, é intrinsecamente má, e o espírito é intrinsecamente bom) para se dedicar aos ensinamentos de Jesus, convertendo-se ao Catolicismo pela pregação de Ambrósio de Milão. Foi batizado na Páscoa de 387 e retornou ao norte da África, estabelecendo em Tagaste uma fundação monástica junto com alguns amigos. Em 391 foi ordenado sacerdote em Hipona.

Reduzir maniqueisticamente as coisas a dois pólos que mutuamente se auto-excluem é um equívoco, quer da razão, quer da fé. Por isso, por exemplo, a doutrina americana de segurança nacional que recentemente criou o eixo do mal é estruturalmente perversa e ambígua. Também são perversas e ambíguas as teologias que admitem uma salvação apenas para os seus confrades. Ou aprendemos que somos todos um ou aprenderemos que somos todos um. Não há uma segunda possibilidade.

Ainda que eu compreenda e admita a unidade cósmica, essa unidade se manifesta na Terra por caleidoscópicas maneiras (racionais, irracionais, religiosas, fideístas, fanatizadoras, categóricas, hipotéticas etc.), na maioria das vezes, como não poderia deixar de ser, discordantes entre si. É por isso que já afirmei em trabalho anterior que se equivalem as razões fideístas e as fés racionais (ou irracionais), ainda que não possam mesmo coexistir compativelmente uma fé/racional ou uma razão/fideísta. A fé autêntica e a inabalabilidade da consciência só poderão advir de uma experiência mística autêntica e transracional, vale dizer, Iniciática. O resto são conjecturas, isto é, inferências ou deduções que alguma coisa seja ou possa ser provável (ou improvável) com base em presunções, evidências incompletas e/ou inconsistentes, teoremas não demonstrados, pressentimentos, arrepios, devaneios, entressonhos, estimativas, fantasias, hipóteses, pressuposições etc. Logo, uma síntese feliz de antropologia plotiniana e de antropologia escolástica – como H. Sanson propôs para a mística especulativa de João da Cruz – não pode produzir nada de edificante e nem mesmo pode ser feliz, pois acaba(ria) se tornando uma mera repetição de conceitos dogmáticos com outras palavras. Mas, pessoalmente, penso que não tenha mesmo havido tal síntese em João; se houve, foi superficial e involuntária, ainda que, como afirmei, seu pensamento esteja enquadrado e circunscrito ao rigor escolástico que aprendeu em Salamanca. E que não se esqueça: Plotino (205 - 270 d. C., que chegou a pensar em fundar uma cidade chamada Platonópolis baseada nos ensinamentos da República de Platão) era um Iniciado, e quem ler as suas Enéadas (enneadi) verá que seus 54 capítulos em quase nada se assemelham ao pensamento de São João da Cruz, que era um religioso católico. Religião exotérica e Misticismo Iniciático não combinam porque são inconciliáveis, particularmente em questões como a providência, a salvação, os prêmios divinos, as punições divinas, a revelação divina, a criação a partir do nada e quetais que não fazem liga com a Metafísica Iniciática. Na Metafísica Iniciática tudo depende do Iniciado; já nas religiões, de uma maneira geral, Deus e o conjunto dos seus assessores interferem em tudo. Em resumo: na Metafísica Iniciática o mérito é absoluto; nas religiões ele é relativo porque o milagre e o perdão perdoam o que não pode ser perdoado, e o sofrimento, os óbolos, as doações, as penitências, os jejuns etc. não resolvem nada.

A Escolástica possuía, é verdade, uma constante de natureza neoplatônica que tentava conciliar elementos da filosofia de Platão com determinados valores de ordem espiritual que foram reinterpretados e incorporados pelo Ocidente cristão. Tomás de Aquino, por exemplo, quando introduziu alguns componentes da filosofia aristotélica no pensamento escolástico não conseguiu eliminar a presença de alguns traços do pensamento de Platão. Por tudo isso, penso que os múltiplos sincretismos que se observam, particularmente no Catolicismo, só conseguiram produzir um monstrengo deformado e completamente apartado do Cristianismo Esotérico e Gnóstico primitivo. Mas, insisto: o pensamento de João foi particularmente original, mesmo que sejam admitidas determinadas influências aqui ou ali (Aquino, Agostinho, Pseudo-Dionísio etc.), como foi, por exemplo, sua percepção da noche oscura. Vou sublinhar novamente: como conciliar Misticismo com Anarquismo, com Maniqueísmo ou com Ultramontanismo? Eu não posso compreender isso, como nunca pude aceitar, quando fiz meu doutorado em Filosofia, as citações e as ligações/ilações que alguns de meus professores faziam para vomitar acervo de conhecimentos. Isso, aliás, é um dos inócuos cacoetes de diversos professores de Filosofia, que, geralmente, estão muito mais para devoradores de livros e muito menos para autênticos Filósofos (Philosophikós). Adoram citar um pensamentozinho (às vezes, até, de fontes equivocadas, de autores que nunca emitiram aquele pensamento e com datas sem nexo ou contraditórias); mas, de original costumam não dizer necas de pitibiribas. Portanto, síntese feliz de antropologia plotiniana e de antropologia escolástica? Em João? Essa não! Daí, sumarizando o que foi argumentado, tudo acaba desembocando em um caleidoscópio multifacetado e oscilante de razões, opiniões, religiões, sistemas políticos, antropologias, especulações sem sentido et cetera não concordantes entre si. Em uma palavra: mixórdia.

 

 

 

 

Um outro aspecto do pensamento místico-teológico de João da Cruz é a admissibilidade de que Deus é a causa e o fim de toda a criação, o que não chega a ser uma novidade, porque todas as teologias admitem a mesma coisa, isto é: Deus é um ente infinito, eterno, sobrenatural e existente por si só e causa necessária e fim último de tudo que existe. Quando eu estudei o catecismo católico para fazer minha primeira comunhão me ensinaram que Deus é um Espírito Perfeitíssimo criador do céu e da Terra. Tive que decorar isso sem entender e sem que alguém me desse uma explicação coerente para essa afirmação. Na Noche Oscura escreveu João: Deus está dentro da alma, substancialmente, onde não pode chegar o demônio nem o sentido natural nem o entendimento. O caminhar para Deus realiza-se nas trevas – a noche oscura – por intermédio da fé, que nos faz aderir a um Ser acima de toda formulação, de todo conceito e de todo sentimento, como admitia João. Na realidade, segundo José Ferrater Mora, a noche oscura, em São João, é o meio-dia, ou o começo do meio-dia, da experiência mística. Na noche joanina há uma relativa segurança porque os sentidos, o entendimento e a razão ficam apenas suspensos, isto é, não são eliminados. Logo, a fé tem importância primordial no pensamento teológico do santo carmelita, mas o que sustenta o dinamismo dessa fé é o amor, conforme demonstra a maioria dos excertos que listei, e que está amparada na admissibilidade de um Deus transcendental.

Mas, o segundo ponto que gostaria de refletir um pouco, para concluir, é mesmo a questão do sofrimento, pois, salvo melhor entendimento, pelo menos há dois mil anos ele é muito mal compreendido e é uma fonte de equívocos insustentáveis. Como ficou dito na biografia resumida de João da Cruz, Padecer e depois morrer era o seu lema. Da sua biografia, sabe-se que João da Cruz costumava pedir a Deus três coisas: 1ª - que não deixasse passar um só dia de sua vida sem lhe enviar sofrimentos; 2ª - que não o deixasse morrer ocupando o cargo de superior; e 3ª - que lhe permitisse morrer humilhado e desprezado. Ora, penso, em primeiro lugar, que Deus (admitindo-se, para efeito dialético e especulativo, Sua transcendência-onipotência), ainda que admitido como transcendente-onipotente, nada tenha a ver com o fato de alguém estar ocupando um determinado cargo (ou não), pois, afinal, ele foi aceito voluntariamente por quem o ocupa, e não foi Deus quem obrigou essa aquiescência. Em segundo, se, a partir de um dado momento, a pessoa não quiser mais ser superior de uma ordem religiosa ou diretor de uma organização qualquer tem a liberdade de se exonerar. Eu fiz isso várias vezes e não me arrependo de nenhuma. Por que, então, pedir ou rogar a Deus que intervenha nessa decisão se ela é exclusivamente pessoal? Admito que a maioria dos cargos mundanos (seculares, místicos e religiosos) inflam o ego e são um perigo e um possível fator retrocessivo para a ascensão espiritual. Então, se a criatura percebe que está resvalando (ou que poderá resvalar) para a esfera da vaidade pessoal, que se demita. Isso é muito simples.

Contudo, não adiarei mais: o que desejo realmente abordar é a questão do sofrimento. Misticamente, concordo que não se deva blasfemar ou se sublevar contra o sofrimento. Isso é ignorância e não resolve absolutamente nada. O próprio processo de encarnação em um planeta da Terceira Dimensão impõe que, para que a experiência encarnativa seja eficaz e eficiente, a constelação de experiências que esse plano dimensional oferece seja integralmente vivido por quem ali encarna. As amaguras, as dores e os sofrimentos, assim, não podem ser exceções. Não porque o sofrimento seja uma experiência necessária e/ou obrigatória, não porque o sofrimento seja uma experiência útil e não porque o sofrimento seja uma experiência insubstituível. Pode até ser útil, mas obrigatoriamente necessário e irredutivelmente insubstituível o sofrimento não é. O fato que precisa ser compreendido é que todo sofrimento tem uma origem. Ele não existe no Universo como coisa isolada esperando avidamente uma oportunidade para se fazer presente e cair no colo de alguém. E essa origem não está em Deus, nos demônios ou nos outros; está em nós em virtude de nossa abissal ignorância, ou seja, nossa grosseria, nossa incivilidade, nossa ingenuidade, nossa inocência, nossa desinformação, nossa barbaria, nossa cegueira, nosso desconhecimento, nosso desentendimento, nossa incultura et cetera, et cetera, et cetera. Ridiculamente pôr a culpa nos outros ou em satanás é como colocar a sujeira embaixo do tapete ou tirar o sofá da sala. Podemos até disfarçar para o público, mas para nós não podemos. Somos nós que criamos o caldo fermentativo para que tudo aconteça, inclusive e principalmente o sofrimento. Indigestão e/ou eliminação freqüente de fezes líquidas e abundantes não aparecem do nada. É como diz a música de Billy Blanco: O que dá pra rir dá pra chorar/Questão só de peso e medida/Problema de hora e lugar/Mas tudo são coisas da vida... Logo, sofremos porque somos ignorantes. Mas incrementar os sofrimentos 'naturais' da vida com automortificações para obter o que quer que seja é uma maluquice hipotética que não é uma obsessão apenas dos católicos. Isso pode ser observado em diversas religiões com maior ou menor intensidade, com maior ou menor grau de insanidade.

Em aditamento, eu não posso conceber e não consigo compreender, como já me referi, que se admita o sofrimento como coisa insubstituível e obrigatoriamente necessária, e que, em decorrência dessa esquerda compreensão, se peça o sofrimento a Deus como forma de expiação ou como via para se alcançar uma suposta bem-aventurança eterna. Por que padecer e depois morrer? Por que não Compreender e depois Viver? Por que a mortificação e o cilício? Por que não a vivificação e o florescer da rosa? Por que, finalmente, sofrer ao invés de fazer acontecer e de misticamente Viver? O sofrimento é o oposto da Vida Cósmica. É o oposto também de orar e trabalhar e de dissolver e aglutinar. É o oposto do amor. Pior é quando, interesseira e hipoteticamente, se usa e se admite o sofrimento como uma presumida via salvífica ou beatificadora. Não. Isso é um grosso equívoco da razão noética e das visões teológicas em geral. Não haverá leite e não haverá mel para quem cisma de viver sofrendo ou para quem faz sofrer os outros. Eu não conheço nenhum Místico que tenha recomendado essas coisas. Na verdade, tudo isso é uma grande doença, e só um trabalho terapêutico feito por um especialista competente poderá produzir algum resultado. Como escreveu Sar Alden (Harvey Spencer Lewis, primeiro Imperator da Ordem Rosacruz – AMORC das Américas do Norte e do Sul e fundador de seu segundo ciclo de atividades no Hemisfério Ocidental): Na maioria dos trabalhos terapêuticos feitos por qualquer metafísico, o maior problema não está em ministrar o tratamento correto para a cura, nem em diagnosticar o que está errado e nem em recomendar alguma prática construtiva. Mas, sim, em retirar da mente do paciente as idéias que restringem os processos criativos que atrapalham o trabalho da própria Natureza... É mais ou menos como se o médico penetrasse no cérebro do paciente com vassoura, aspirador de pó, pás e picaretas para limpar as teias de aranha e a poeira, e destruir toda sorte de caixotes velhos e outros materiais semelhantes, colocando em ordem o referido local. Mas, na cabeça de quem se automortifica para agradar a um presumido Deus ou para ganhar a chave de um suposto céu há muito mais do que teias de aranha, poeira e caixotes velhos: aí existe um inferno fabricado e não identificado a fermentar e a ser ampliado minuto-a-minuto, hora-a-hora, dia-a-dia em decorrência das sucessivas prisões que a criatura pariu e que continua a parir. Se um elefante amola muita gente e dois elefantes amolam muito mais, uma prisão entrava um Coração de se manifestar e muitas prisões entravam muito mais.

 

 

 

 

Quem venceu a fé obscurante e atravessou o Portal que separa a razão da transrazão aprendeu que a Vida só poderá ser alcançada e conquistada pelo amor e pela compreensão (nesta ordem), sem, necessariamente, que precise haver dor ou sofrimento auto-impostos. Dor e sofrimento oriundos de uma saudade metafísica? Sim, isso é bom e alerta para as ilusões da vida. (Agora chorei um pouquinho, mas já me acalmei.) Dor e sofrimento derivados de uma ignorância consciente e inultrapassável em uma única vida? Sim, isso é compreensível e aceitável, pois a vida não se encerra com o término de uma vida. Ora et labora... Solve et coagula... Dor e sofrimento provocados pelo egoísmo, pela vaidade e pelas ilusões? Sim e não. Sim, porque tudo pode ser transmutado. Não, porque sofrer e continuar a sofrer por permanecer egoísta, vaidoso e iludido são opções retrocessivas, e o sofrimento, nestes casos, é inútil como escola ou aprendizagem, enquanto persistirem e forem alimentados o egoísmo, a vaidade e as ilusões materiais. Para mudar vai de querer.

Porém, dando um giro de 180 graus, usar quaisquer vestimentas, colares ou faixas de crina ou de pano grosseiro e áspero sobre a pele por penitência, cingir o corpo com cinto ou cordão eriçado de cerdas ou correntes de ferro cheio de pontas, e praticar sacrifícios ou mortificações corporais com o intuito de purgar os pecados, de combater as tentações da carne ou de imitar o sofrimento físico de Jesus são contra-sensos que beiram as raias da insanidade. De uma coisa estou convicto: a nossa personalidade-alma não aprende absolutamente nada com sofrimentos físicos rogados ou auto-impostos. Personalidade-alma é personalidade-alma, corpo físico é corpo físico. Portanto, imitar (ou toscamente tentar imitar) o sofrimento de Jesus (qualquer que seja a imitação) não faz o menor sentido. Primeiro, simplesmente porque não somos Ele. Segundo, Seu sofrimento teve uma razão para acontecer. E Ele, ainda que sabedor e preparado para o episódio transmutativo da Crucificação Alquímica, não o desejou e não o pediu a priori. Concordou em passar pela crucifixão, necessariamente, mas, segundo Lucas XXII, 42, argüiu em seu favor: — Pai, se é do teu agrado, afasta de mim este cálice; não se faça, contudo, a minha vontade, mas a tua. Jesus não disse, portanto: — Não agüento mais esperar a hora de sofrer e de ser crucifixado pela Humanidade; Pai, se quiseres, podes dobrar ou triplicar a dor que irei sofrer no madeiro. Isso Ele não disse e nem pensou. Não disse e não pensou porque era um Iniciado e não um esquizofrênico, e sabia exatamente porque havia encarnado e o porquê de sua Santa Missão na Terra, ainda que o cálice não pudesse mesmo ser afastado. Ou será que alguém, por outro lado, pensa que Sar Alden sofreu o que sofreu porque quis? Se ele pudesse faria tudo o que veio fazer sem passar por qualquer sofrimento ou traição.

Segundo consta, os próprios pastorinhos de Fátima, sem nada conhecerem de ascese, usavam como cilício uma corda que os fazia sofrer fisicamente pela conversão dos pecadores. Esse sem nada conhecerem de ascese é inverossímil, pois, no mínimo, os pastorinhos ouviram falar dessa prática. Ignorantes, imitaram, sofreram e se automortificaram. O fato é que pecador não se converte; pensa que se converteu. A verdadeira conversão é interior – in Corde – pela Iniciação-Compreensão. De passagem: por que não utilizar a Lei da Assunção Mística ao invés do cilício? Bem, para quem não sabe aplicar a Lei da Assunção Mística usar o cilício é uma inutilidade. Só dói em quem usa. O pior de tudo isso é que, quando alguém roga por sofrimento, e sofre, vai criando psiquicamente as condições para que o sofrimento, de uma forma ou de outra, acabe paulatinamente se materializando. Os pensamentos são mantras operativos e efetivos, criadores e destruidores. Por que luz polarizada e não luz solar? O dado biográfico, enfim, é que o próprio São João da Cruz faleceu no convento de Ubeda, aos quarenta e nove anos, à meia-noite do dia 14 de dezembro de 1591, após três meses de sofrimentos atrozes, depois de pedir a vida inteira a Deus que lhe permitisse morrer humilhado e desprezado. Não posso deixar de dizer que compreendo as boníssimas intenções de São João da Cruz, mas não as apóio.

Penso, conclusivamente, que à medida que o Amor impessoal e a Compreensão reta vão se fazendo e se cristalizando na consciência do ser, compromissos esquerdos e hipotéticos vão se dissipando e se transmutando. E nisso concordo com São João da Cruz, pois estava certíssimo o Doutor Místico quando ensinou: 1º - Quando reparas em alguma coisa, deixas de arrojar-te ao tudo. Porque para vir de todo ao tudo, hás de negar-te de todo em tudo. E quando vieres a tudo ter, hás de tê-lo sem nada querer. Porque se queres ter alguma coisa em tudo, não tens puramente em Deus teu tesouro; 2º - É próprio do perfeito amor nada querer admitir ou tomar para si, nem se atribuir coisa alguma; e 3º - Não há trabalho melhor nem mais necessário do que o amor... De tudo o que foi visto, fico com a opinião de José Ferrater Mora: É possível, pois, examinar temas metafísicos em São joão da Cruz sem concluir que isso constitua uma suposta metafísica de São João da Cruz. Que se entenda definitivamente: metafísica teológica é uma coisa; METAFÍSICA INICIÁTICA é outra completamente diferente.

Enfim, cada um haverá de entender e de realizar Deus da forma que sua Consciência e sua cultura mística permitirem. Mas, como deixou escrito Sar Validivar (Ralph Maxwell Lewis, segundo Imperator da Ordem Rosacruz – AMORC das Américas do Norte e do Sul e fundador de seu segundo ciclo de atividades no Hemisfério Ocidental) em seu Credo da Paz: Sou responsável pela guerra... Se acredito que outras pessoas devem pensar e viver da mesma maneira que eu... Quando penso que a mente das pessoas deve ser dominada pela força e não educada pela razão... Se acredito que o Deus de minha concepção é aquele em que os outros devem acreditar... Enfim, conclui Sar Validivar: Se estou em paz, eu promovo a paz dos que me cercam. Por sua vez, eles promovem a paz daqueles que estão à sua volta e que também farão o mesmo. Então, a paz começa por mim! E sem ela não pode haver a necessária transformação social. Sem sofrimentos rogados, auto-impostos ou compulsórios, porque a paz (e mais do que isso, a Paz Profunda) é incompatível com qualquer tipo de sofrimento.

 

 

 

Rio de Janeiro, 10 de junho de 2006.
Revisto em 26 de julho de 2006.

 

 

Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

LOGOS – Enciclopédia Luso-Brasileira. Vol. III. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 1991.

MORA, José Ferrater. Diccionario de filosofia. Vol. II. 1ª ed. 7ª reimp. Barcelona: Alianza Editorial, S.A., 1990.

SCIADINI, Patrício. São João da Cruz. 2ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

_____. São João da Cruz de A a Z. 2ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

_____. San Juan de la Cruz (o poeta de Deus). São Paulo: Editora Palas Athena, 2004.

 

Páginas Web e Websites consultados:

http://br.geocities.com/monjascarmelitas/pensamentosjoao.html

http://br.geocities.com/monjascarmelitas/noiteescura.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Jo%C3%A3o_da_Cruz

http://br.geocities.com/monjascarmelitas/juan.html

http://laranjamarga.weblog.com.pt/arquivo/045329.html

http://www.carmelosaojose.com.br/saojoao.php

http://misticaepoesia.zip.net/

http://www.lotusdosaber.com/TLL/pages/viverdeamor.html

http://www.oracaocentrante.org/sjcruz.htm

http://www.agencia.ecclesia.pt/catolicopedia/artigo.asp?id_entrada=325

http://es.wikipedia.org/wiki/Cilicio

http://www.calc101.com/animations/

http://www.cobra.pages.nom.br/fmp-kantcont.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/Plotino

http://pt.wikipedia.org/wiki/Escol%C3%A1stica

http://pt.wikipedia.org/wiki/Agostinho_de_Hipona

 

Música de fundo:

Glória

Fonte:

http://www.zeitun-eg.org/midi.htm

 

 

 


A paz (e mais do que isso, a Paz Profunda)
é incompatível com qualquer tipo de sofrimento.