Era
assim: o que quiser que tenha, tinha. Tinha arrebol? Rouxinol? Luar do sertão,
palmeira imperial, girassol, tinha. Também tinha temporal, barranco,
às vezes lamaçal, o diabo. Depois bananeira, até cachoeira,
mutuca, boto, urubu, horizonte, pedra, pau, trigo, joio, cáctus,
raios, estrela cadente, incandescências. Através da música
digo coisas que eu não conseguiria dizer sem ela.
Eu não sou tímido na
minha vida normal. Mas eu não acho que seja normal você subir
no palco e cantar.
Medo
da morte não tenho; mas quero distância dela.
Em
fins de 68, começou a verdadeira censura e a perseguição
aos opositores do regime, políticos, simples artistas ou fumadores
de maconha. Isso tudo era preciso combater e nós, os artistas mais
populares, o fizemos com a música, com prejuízo para a qualidade
artística.
Quem
tem cu tem medo. Na época da ditadura, recebia ameaças, cartas.
Hoje, tem gente no Brasil que tem medo de outras coisas e vive cercada de
guarda-costas, sobretudo os famosos, porque ter guarda-costas o torna ainda
mais famoso.
Experimente, diga-se coisas bonitas.
Me lembro de Vinicius de Moraes, que quando viajava sozinho e tinha sonhos,
se cantava canções de ninar e passava a mão no rosto
até adormecer. Eu tentei e não funcionou.
Sim,
sou um insone; por isso sempre trabalho de noite, o que é fatal para
o insone. Quando consigo dormir, escrevo música em sonhos. Compus
coisas maravilhosas, mas logo percebi que eram de outros.
Minha
mãe tem 95 anos e repete constantemente: — Juízo e alegria!
E eu lhe digo: — Mamãe, ou juízo ou alegria. Meu pai
era um sonhador e ela equilibrou seu lado boêmio. Impunha a disciplina,
mas com muito sentido de humor, com isso: com juízo e alegria. Sete
filhos!
Hoje
em dia, a gente vê pouquíssima margem de uma mudança
social. Ao mesmo tempo, em países pobres, como o Brasil é,
deveria ser mais do que nunca premente a necessidade de uma transformação
social. A situação se deteriora, e não se enxerga uma
alternativa razoável. Me preocupa que estamos nos encaminhando cada
vez mais para uma situação irracional. Tudo passa pela Economia.
Eu, cada vez mais, me abstenho por
reconhecimento da minha limitação, da minha ignorância.
Vejo
um pensamento cada vez mais conservador, até mesmo na aparência
das pessoas, todo mundo arrumadinho...
Diante
da ausência de perspectiva de mudança social a curto ou a médio
prazos, a sociedade toda está sendo levada a um certo conformismo
ou mesmo ao cinismo...
Às
vezes, descubro coisas que queria – e que também não
queria – descobrir.
O
trabalho de escritor, assim como o de compositor, é bastante egoísta.
Claro que eu escrevo em busca de alguma coisa, para entender talvez o passado,
talvez eu mesmo. Às vezes descubro coisas boas, às vezes não.
Não
tenho este orgulho de falar que sou um autor de teatro. Minhas peças
foram apenas a criação de 'links' para unir as minhas músicas.
Não me considero nem de longe um teatrólogo.
O
trabalho de escritor requer disciplina e fica meio solitário de vez
em quando.
Eu
tenho um pouco de dificuldade em distinguir trabalho de ócio. Não
posso ficar parado, catatônico. Mas ir ao cinema, para mim, é
trabalho. O tempo todo é assim. Esse negócio de hora é
estranho. Cada um tem seu tempo; cada um faz a sua parte.
O
tempo acrescenta com uma mão e tira com a outra... Com o tempo, você
fica cada vez menos disponível para esse tipo de centelha, perde
o gesto espontâneo de sentar, tocar violão... Fica mais exigente:
depois dos 50, você joga mais coisa fora do que aproveita. Você
tem mais conhecimento do que tinha aos 20 anos. E como já conhece
bem os caminhos, fica mais difícil encontrar um caminho pelo acaso...
Eu sei como buscar, mas não necessariamente como encontrar. Às
vezes, acontece de buscar, ralar e não encontrar. Mas sei que, mais
cedo ou mais tarde, vou conseguir. Na verdade, fácil, nenhuma música
é. Mas para quem passa um ano escrevendo um romance, ficar uma semana
tentando compor uma música não é tanto tempo assim.
Quando estou escrevendo, me divirto
à beça; quando estou compondo, também; quando estou
criando, encontro o prazer que não encontro nas férias. As
férias, para mim, são um grande aborrecimento: fico aflito,
ou porque acabei de concluir um trabalho ou porque estou procurando o que
fazer em seguida – é um intervalo inócuo.
O
momento mesmo de escrever não é tão prazeroso assim;
é um antegosto. Você sabe que está escrevendo para ler
depois, 'quando ficar bom, vai ficar ótimo de ler'.
Minhas músicas mais marcadamente
políticas são as que têm menor qualidade estética,
no meu ponto de vista... O mundo está despolitizado.
Não
acredito que eu tenha parado no tempo. Quando gravo um disco, intimamente
tenho a convicção de estar dando um passo adiante em relação
ao que fiz antes. Esse passo é talvez mais lento, mais custoso, mais
penoso. Estou andando mais devagar, mas acho que estou andando.
Gosto
muito da vida; não quero morrer, não. Quero viver, viver bastante.
E viver bem. Acho que com saúde, fazendo as coisas direito, dá
para viver um bocado mais. Gostaria de viver com saúde e com imaginação,
com vontade de criar coisas. Aos noventa e tantos anos e virando a noite
por causa de uma música, por causa de um livro.
O
Tom Jobim disse que 'a
gente só leva da vida a vida que a gente leva'. O que
você levará da sua vida? Não
vou levar nada. Alguma coisa deixarei. Umas musiquinhas, uns livros, filhas,
netos. Vou deixar umas coisas bonitas. Coisas que valeram a pena.
Antigamente,
ficávamos bêbados em Ipanema dizendo coisas absurdas, mas não
saía na imprensa. Hoje, alguém vai ver uma partida de futebol
e vem o jornalista lhe perguntar como está a partida. Isso não
me agrada.
Tem gente que persegue a fama que
não corresponde a nada. É insólito.
A
fama não corresponde a nada!
Não
tenho especial dificuldade com a língua portuguesa, mesmo porque
me socorro sempre dos dicionários. Consulto o Caldas Aulete, o Houaiss,
o Dicionário de Verbos e Regimes e o de Regimes de Substantivos e
Adjetivos, ambos de Francisco Fernandes, e o Dicionário Analógico
da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. E
o Aurélio, claro. Mas um deslize ou outro sempre aparece, quando
da revisão de meus livros.
Quando
escrevo um livro, trabalho sem parar, até dormindo. Às vezes,
viajo para ter sossego; às vezes, fico por aqui mesmo, mas mando
dizer que estou na fazenda, embora não tenha fazenda... Quando começo
a escrever sei exatamente o que vai acontecer depois. Só que depois
acontece outra coisa! Escrevo rascunhos, esboços, idéias esparsas,
no computador ou em qualquer papel ao alcance da mão. Quando o livro
já está encaminhado, escrevo no computador, imprimo, leio,
risco, rasuro, anoto, volto ao computador, imprimo, leio e assim sucessivamente.
Reescrevo tudo inúmeras vezes... Empaco muitas vezes, mas não
me sinto pressionado, geralmente trabalho com prazer. Com a experiência,
a gente aprende a fazer tudo mais devagar... E quando termino um trabalho
me sinto vazio.
Ouvi de tudo, desordenadamente, mas
o que mais me impressionou, e para sempre, foi a primeira audição
de Chega de Saudade, de Tom e Vinícius, com João Gilberto.
Escrever
romances é muito diferente de compor músicas. E minhas peças
de teatro, peças musicais, têm mais afinidade com a música
do que com a Literatura. A música acaba marcando a minha literatura.
Os personagens são obsessivos, repetem-se, são como personagens
de música, são como temas de música, que tendem a se
repetir. Mas o princípio que me move é o mesmo: vontade de
me comunicar.
Sou um artífice vagaroso.
Acho até que já escrevi músicas e letras em demasia,
mas ainda assim vou ficar devendo.
Não me preocupo em ser original.
Acho que sou meio esquisito mesmo.
Sei
que em jornal, crítico de música geralmente é crítico
de letra. É difícil não ser de outro jeito. A letra
é visível, impressa; a partitura não. No entanto, eu
dou cada vez mais importância à música. Quase sempre
faço a letra que a música pede. Todos deviam perceber que
as letras não são poesia; elas se integram à música
para compor uma canção. Mas talvez seja pedir demais.
Eu
não tenho crença. Eu fui criado na Igreja Católica,
fui educado em colégio de padre. Eu simplesmente perdi a fé.
Mas não faço disso uma bandeira. Eu sou ateu como o meu tipo
sanguíneo é esse. Hoje, há uma volta de certos valores
religiosos muito forte, acho que no mundo inteiro. O que é perigoso
quando passa para posições integristas e dá lugar ao
fanatismo. O Brasil talvez seja o País mais católico do mundo,
mas isso é um pouco de fachada. Conheço muitos católicos
que vão à umbanda, fazem despacho. E fica essa coisa de Deus,
que entra no vocabulário mais recente, que me incomoda um pouquinho.
Essa coisa de 'vai com Deus', 'fica com Deus'. Escuta, eu não posso
ir com o diabo que me carregue? Tem até um samba que fala algo como
'é Deus pra lá, Deus pra cá – e canta - Deus
já está de saco cheio'.
Passei
também por espíritas mais ortodoxos, do tipo que encarnava
um médico que me receitou um remédio para o aparelho digestivo.
Aí eu fui procurar o remédio, e ele não existia mais.
O remédio era do tempo do médico que ele encarnava.
Gosto
de acreditar um pouco nisso, um pouco naquilo, porque eu vejo coisas inacreditáveis.
Eu não acredito em Deus; acredito que há coisas inacreditáveis.
Sempre
que eu encontro o Pelé é igual, porque eu só quero
falar de futebol e ele só quer saber de música. Ele adora
fazer música, adora cantar, adora compor. Por ele, o Pelé
seria compositor.
Em
relação à música, eu sou um autor muito mais
passivo do que na Literatura. É evidente que eu sou um músico
intuitivo, mas não sou um escritor intuitivo. Eu tenho noção
perfeita do que estou escrevendo.
Tomei
umas aulas de música com a Vilma Graça. Sei escrever uma música,
não sendo muito complicada. Sei ler, solfejar, muito devagar, mas
sei. Já com palavras, eu sei mexer, sei a métrica do negócio.
Sei fazer a cor da palavra com mais facilidade. A música eu adivinho
o colorido. E a letra não precisa adivinhar, se for preciso eu procuro
no dicionário. Com a música, não. Se eu procurar muito,
não chego a lugar nenhum. Ela vem ou não vem.
Não danço; sou meio
desajeitado, sou desengonçado. Quando eu danço, as pessoas
acham graça...
Eu
não daria tudo para ter feito música nenhuma de outro compositor.
Mas existem músicas que amo. Gosto mais do que as minhas. Eu não
gostaria de ter feito uma música alheia. É uma coisa que não
me ocorre. Porque o maior prazer da música está exatamente
no momento em que você a cria. Nunca mais vai ser a mesma coisa. Quando
você a repete nos 'shows', não vive a mesma sensação.
Ignoro qual terá sido esse prazer em outro autor. Prefiro, então,
sentir o prazer que sinto a cada composição minha, por menor
que seja.
O
artista está sempre devendo alguma coisa, algum tipo de explicação.
A gente tem que encontrar a sabedoria de ficar com várias dívidas
e não pagar o que é cobrado.
Na realidade, você nunca acha
que está pronto.
Eu
sou uma pessoa muito afetiva; uma pessoa que age por afeto. Eu sou o homem
cordial. Eu sou um homem que age por impulso. Esse meu lado afetivo está,
talvez, na música, que sofre esses arroubos afetivos. Eu faço
uma distinção bastante clara: na Literatura sou um cidadão
sem afetos. O fato de estar solitário escrevendo um livro, que vai
ser apresentado em público e que vai ser lido individualmente, isso
me despe um pouco desse sujeito atirado e algo ingênuo. Já
a música me emociona; eu fico em lágrimas. Eu sou um bobo
como músico. Mas tenho o outro lado, racional e muito crítico,
muito seco, que é um lado que quase não cabe na música,
que precisa de outro veículo.
O
que me atraiu na bossa-nova foi a estética da timidez.
Meus cineastas prediletos são
Fellini e Buñuel. Mas eu me sinto muito mais em casa com Buñuel.
Não é um juízo de valor; é uma questão
de afinidade.
Eu sempre gostei mais da minha música
cantada por outras pessoas.
Não
era mito não; eu bebia muito. Bebia todo dia e bebia coisas fortes.
E fui parando, comecei a enjoar; não é nenhum mérito
meu não, acho que meu organismo é que foi pedindo água.
Então, hoje eu só tomo vinho, cerveja; e nem todo dia.
Estava
à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor...
A
minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor...
Solidão
é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão
pela nossa alma.
E
ele me conhece o suficiente para saber que eu poderia até receber
um estranho, mas nunca abriria a porta para alguém que de fato quisesse
entrar.
Pai!
Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...
De
que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra...
Eu
não ligo nem um pouco para o sucesso.
Eu
não sou tão politizado como parece ou como talvez a minha
imagem sugira. E nem gosto muito de política, mas sou obrigado, no
meu dia-a-dia, a conviver com fatos políticos.
Acho
o Djavan um craque.
Não gosto especialmente de
'rock'; não sou da geração do 'rock'. A mesma batida...
Não pode ser uma coisa só... Isso me enjoa... Mas procuro
ouvir de tudo.
Gosto muito de futebol; até
inventei um campeonato para ser campeão.
Águas
de Março – de Tom Jobim – é uma música
que eu não diria que gostaria de ter feito, porque é impossível
que eu fizesse uma música dessas. É outra cabeça. Mas
é uma música da qual eu adoraria conhecer o prazer e o mecanismo
da criação, assim como músicas de Noel Rosa, Cartola,
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento. Recorro a um recurso: tenho
parceiros que admiro muitíssimo – inclusive o próprio
Tom. Ao me fazer parceiro, eu crio a música com eles. Ao fazer a
letra para uma música alheia, eu estou me apropriando um pouco dessa
música – que não é minha.
Não
se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio...
Porque
nesses seis meses tudo o que falamos antes virou barulho, fica difícil
retomar a conversa.
Talvez
a música popular seja uma arte de juventude. Imagino que seja, porque
o consumidor de música popular é, sobretudo, o adolescente,
o jovem de vinte a trinta anos. Depois, começa a diminuir. Já
o autor de música popular tende a ser mais seletivo com o tempo.
Faz uma coisa ou outra, mas não com a exuberância que tinha
aos vinte anos de idade. Quando você tem vinte anos, você tem
um baú de músicas inéditas. Depois, as músicas
vão escasseando. Você fica mais exigente. Chega, então,
um tempo em que a gente começa a fazer música popular com
o resto de juventude que se tem. Depois, o melhor a fazer talvez seja imitar
Dorival Caymmi – que se recolheu aos seus pincéis e suas tintas.
Talvez seja melhor procurar outro afazer, outra ocupação...
A Literatura é uma alternativa. Talvez eu tenha me inspirado em Caymmi
ao pensar nisso: ter um recurso para continuar criando sem depender da juventude
– que é o motor da música popular.
A
curiosidade é mesmo feita do que já se conhece com a imaginação.
Vejo
a multidão fechando todos os meus caminhos, mas a realidade é
que sou eu o incômodo no caminho da multidão.
Há no PT a idéia de
que ou você é petista ou é calhorda, assim como o PSDB
acha que você ou é tucano ou é burro.
É
possível encontrar algo semelhante ao futebol no 'jazz', na música
instrumental. Alguma coisa pode acontecer enquanto você toca. Mas
não sou improvisador. De qualquer forma, há, no ato da criação,
momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem
sem que você tenha pressentido. De repente, vem uma idéia.
Você se pergunta: de onde veio? É o que acontece com o futebol:
é como se o corpo recebesse uma luz repentina, inexplicável.
Não
experimentei tudo. Nunca fui à heroína, nunca me piquei. Foi
o básico: fumei, cheirei, tomei ácido. E larguei isso tudo.
Na verdade, nunca fui um bom maconheiro. Posso eventualmente fumar aqui
e ali, não vejo muito mal. Mas não sou adepto.
Já
experimentei drogas; experimentei e gostei. Mas parei com as drogas ilegais.
Cocaína, nunca mais. Na verdade as drogas nunca foram um problema
sério para mim, mas poderiam vir a ser, porque eu tenho uma certa
propensão ao vício. Sou uma pessoa que cria hábitos.
Se eu fosse supersticioso, seria impossível de tratar. Tenho facilidade
para criar manias e luto contra isso. A única droga que realmente
me afeta hoje é o cigarro, sou um fumante compulsivo, então,
procuro me disciplinar. Isso poderia ter acontecido em relação
ao álcool – ter virado um alcoólatra – e, talvez,
tenha chegado perto. Consegui, por algum motivo que não é
tanto disciplina, poder beber socialmente, de vez em quando. Mas, ainda
assim, se eu entro numa temporada de 'shows', tenho que tomar vinho.
Acho
tão inócuo culpar o consumidor ou pedir que ele se abstenha
de consumir droga quanto o papa ou o Bush proporem a abstinência sexual
como única alternativa para se prevenir contra a AIDS. A repressão
policial também não produz resultados. É uma questão
complicadíssima. Como é que se vai legalizar o comércio
de drogas? Isso está sendo discutido em muitos outros lugares. No
México, na Holanda. E aqui eu não vejo isso ser discutido.
O problema não é levado a sério. Eu também não
gosto de ficar pontificando. Não quero que a minha canção
seja um hino, uma bandeira em defesa das drogas. Mas, de fato, eu acredito
que é melhor legalizar as drogas. Traz menos danos à sociedade
do que o tráfico. A tentativa de responsabilizar o consumidor é
ingênua, mais ingênuo do que o sonho descrito na canção,
que fala da maconha da tabacaria e das drogas da drogaria. Já
fumei, já cheirei, e abandonei. Não recomendo. Não
fumo maconha porque não faz bem para mim. Quando tenho insônia,
tomo Dormonid.
A
ocupação das favelas pelo Exército me espantou muito.
E o que mais me espantou foi o apoio maciço da classe média,
das pessoas que escrevem no jornal. Eu entendo o fato de a classe média
estar apavorada. Eu entendo o resultado do plebiscito das armas: a pessoa
achar que andar armada pode ser uma solução, pode contribuir
para a defesa. Eu discordo. A imagem de canhões apontados para a
favela, para mim, é assustadora. E, nas cartas de apoio, as pessoas
defendem soluções drásticas, como se isso fosse resolver
o problema do morro. É um erro tratar todo habitante do morro como
um delinqüente, dizer que todos os moradores das favelas precisam ser
removidos de lá, quando não eliminados, como está mais
ou menos aparente e às vezes até explícito. O que se
ouve é: 'Toca fogo no morro, resolve isso de uma vez'... O conservadorismo
está cada vez maior.
Não quero que ninguém
veja um rascunho inacabado. É uma questão de pudor. Então,
trituro todos os rascunhos e jogo na fogueira. Hoje, menos, porque muitos
rascunhos são apagados no computador. Algumas vezes eu imprimo e
corrijo a mão. Mas esse material impresso eu prefiro destruir...
O comércio de material inédito me incomoda bastante, mas comigo
não vai acontecer. Não deixei rastros. E não vou deixar.
Pergunte a qualquer pequeno empresário
como faz para levar adiante seu negócio. Ele é tentado o tempo
todo a molhar a mão do fiscal para não se estrepar. O mesmo
vale para o guarda de trânsito. E assim sucessivamente. A gente sabe
que a corrupção no Brasil está em toda a parte.
Eu
conheci o grau de agressividade do PT; sei como é. Eu já falava
isso: tem muito chato neste PT. Ficam enchendo o saco da gente, enchendo
o saco dos artistas, cobrando isso e aquilo.
São
Paulo é detestável, um desastre. É a cidade que não
deu certo. Estou falando da arquitetura, do urbanismo.
Garrincha
era muito musical. Tive um contato maior com ele em Roma. A gente acaba
mesmo falando mais de música do que de futebol. Garrincha conhecia
música muito mais do que eu imaginava antes. Gostava de João
Gilberto. Eu imaginava que Garrincha gostasse de uma música mais
simplória, mais ingênua, talvez. Mas não! Garrincha
gostava da sofisticação de um João Gilberto.
Na
Itália, eu era o chofer de Garrincha. Ele jogava umas peladas –
algumas remuneradas – na periferia de Roma. Ganhava um cachê.
Eu é que levava Garrincha, no meu Fiat. Era impressionante. As pessoas
paravam na rua. Garrincha era muito popular. Isso aconteceu entre 1969 e
1970. Garrincha já tinha parado de jogar há algum tempo. Oito
anos já tinham se passado desde a Copa de 1962. Mas ele ainda era
muito conhecido na Itália.
Nunca
escolhi sem músico. Quando eu pude – e quis escolher –
aos quatorze, quinze anos de idade, eu quis ser jogador de futebol mesmo.
Eu achava que poderia ser um bom jogador. Era uma ilusão. Mas eu
tinha essa ilusão, na época, com bastante segurança.
Tornei-me músico um pouco por acaso. Devo dizer que o sonho de ser
um craque permaneceu na minha cabeça. Ainda hoje acredito que seja.
Como
eu bebia muito, fiquei encarregado de arrumar garrafas para fazer bomba
molotov.
O Rio está em segundo plano.
É o subúrbio do Brasil. Foi capital, mas, hoje, político
importante no Rio é quase tão exótico quanto artista
em São Paulo. A reação que proponho tem a ver com auto-estima.
Canto para o Rio. Espero que o Rio cante para mim.
Eu
só sei pensar andando. Se você ficar parado, não consegue
pensar. Andar eu recomendo para tudo. Se você tem qualquer problema,
dê uma caminhada porque ajuda, inclusive a ter idéias. Se a
música ficou emperrada ou se a idéia para um livro não
vem, a melhor coisa a fazer é dar uma bela caminhada. Fiquei três
meses preso na cama. Eu não conseguia ter idéias. Só
sonhava que andava. Foram três meses perdidos pela imobilidade...
Associo o ato de andar ao ato de pensar, de criar e de compor.
Não
tomo mais uísque. Cantar bêbado pode ser engraçado,
mas não a temporada inteira. Faz mal para o fígado.
Essa
coisa do cariocão não tem muito a ver comigo, da mesma forma
que acho paulistice chata, baianice chata, mineirice chata.
Nunca imaginei que pudesse fazer
uma música pensando num general! A gente não faz isso. Você
pode fazer uma música com raiva de alguma coisa: acontecia na época
da ditadura militar, porque, com a censura, a política interferia
na criação, o que nos incomodava. Mas você não
ia dedicar uma canção a uma pessoa. Quando se falava 'você',
não se estava referindo a um general. Era uma generalidade.
Junto
à minha rua havia um bosque,
Que um muro alto proibia,
Lá todo balão caía,
Toda maçã nascia,
E o dono do bosque nem via,
Do lado de lá tanta aventura,
E eu a espreitar na noite escura,
A dedilhar essa modinha,
A felicidade,
Morava tão vizinha,
Que, de tolo,
Até pensei que fosse minha.
Não sou fanático por
nada.
Eu trocaria meu passado de compositor
por um de jogador, mas por um bom jogador, que pudesse participar da Copa
do Mundo. Um pacote completo. Um jogador mais ou menos, aí não.
O
Niemeyer me falou isso. Eu fui à festa dele de 90 anos e ele me disse:
— O importante é trabalhar e ó (fez sinal com a mão,
referente a transar). Aí eu falei: — É mesmo? E ele
respondeu — É mesmo.
O
Vinicius disse muito bem, né? — É melhor ser alegre
que ser triste… Mas pra fazer um samba com beleza, é preciso
um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, senão
não se faz um samba não.
Muita
coisa que vi no Vinicius já tinha aprendido com meu pai. Como achar
graça de quem se dá importância, de quem se leva muito
a sério.
Não
passo muito tempo relembrando minhas canções antigas. Mas
algumas me dão certa aflição, porque claramente foram
feitas às pressas, desperdiçadas. Outras me parecem obscuras;
não sei bem o que eu queria dizer com elas.
Drummond
dizia que, quando começava a escrever um poema, sentia um pouco de
febre.
Nós
aprendemos,
Palavras duras,
Como dizer perdi, perdi,
Palavras tontas,
Essas palavras,
Quem falou não está mais aqui.
Um
pessimista mais radical poderia sugerir que esse Ministério (Ministério
do Vai dar Merda) tivesse poderes retroativos, até 500 e tantos anos
atrás. Com o argumento do 'vai dar merda', D. Manuel seria convencido
a não financiar a expedição de Cabral.
Proponho
que se acabe com esse negócio de 'este País é uma merda'.
Além de ciclotímico, brasileiro é muito auto-referente.
Uma vez um italiano me perguntou por que aqui há tanta música
falando em Brasil, Brasil, Brasil. Drummond já dizia que o Brasil
precisa descansar de nossas terríveis carícias.
Como
beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta.
Na época da ditadura militar,
era televisão e futebol. Construíram estádios e essa
rede impressionante de telecomunicações por todo o Brasil,
e ao mesmo tempo uma degradação crescente em termos de educação
e saúde. Tudo isso foi descuidado.
Eu
tendo a acreditar nos economistas quando dizem ser impossível gerenciar
países como o nosso de outra forma. Quem sou eu para opinar? Tenho
também pouco interesse em ler opiniões de leigos, de gente
desavisada a esse respeito. Às vezes, podem dizer coisas interessantes
ou até brilhantes, mas quando chega a hora de uma discussão
mais séria essas opiniões soam quase como um escárnio,
coisa de poeta.
Hoje
na solidão ainda custo
A entender como o amor foi tão injusto
Pra quem só lhe foi dedicação.
Te
perdôo por fazeres mil perguntas que em vidas que andam juntas ninguém
faz...
Sonho
Impossível
(The
Impossible Dream)
Composição: Joe Darion e
Mitch Leigh
(Versão em português de Chico Buarque)
Sonhar
Mais um sonho impossível
Lutar
Quando é fácil ceder
Vencer
O inimigo invencível
Negar
Quando a regra é vender
Sofrer
A tortura implacável
Romper
A incabível prisão
Voar
Num limite improvável
Tocar
O inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo
Cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão
|
Quando
amo, eu devoro todo o meu coração,
Eu odeio, eu adoro numa mesma oração.
Que saudade é o pior tormento,
é pior do que o esquecimento, é pior do que se entrevar...
Por favor,
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa,
E qualquer desatenção, faça não,
Pode ser a gota d'água...
Sonhos
não morrem; apenas adormecem na alma da gente.
Olhos
nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais...
Olhos
nos olhos, quero ver o que você diz,
Quero ver como suporta me ver tão feliz...
Apesar
de você
Amanhã há de ser
Outro dia...
Já
de saída, a minha estrada entortou,
Mas vou até o fim...
Também
acho uma delícia quando você esquece os olhos em cima dos meus.
Valoriza
os amigos. Respeita os adversários.
Ouça
um bom conselho,
Que eu lhe dou de graça:
Inútil dormir, que a dor não passa.
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu.
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu?
O que será ser só
Quando outro dia amanhecer?
Será recomeçar?
Será ser livre sem querer?
... e se vai continuar enrustido
com essa cara de marido, a moça é capaz de se aborrecer...
Por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz...
Sei
que o seu caminho amanhã será tudo de bom, mas não
me leve...
Menino
quando morre vira anjo; mulher vira uma flor no céu; malandro quando
morre vira samba.
Corro
atrás do tempo.
Vim de não sei onde.
Devagar é que não se vai longe.
Está
provado: quem espera nunca alcança.
Prefiro,
então, partir,
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.
As
pessoas têm medo das mudanças. Eu tenho medo que as coisas
nunca mudem.
Hoje, lembrando-me dela,
Me vendo nos olhos dela,
Sei que o que tinha de ser se deu,
Porque era ela; porque era eu.
Para
sempre é sempre por um triz.
Não
se afobe não, que nada é pra já.
No tempo da maldade, acho que a gente
nem tinha nascido.
Todo
mundo sabe como foi conseguida a malfadada reeleição presidencial
do FHC... Mas qualquer um vai no jornal e manda que o Lula é um merda.
Se os candidatos forem Lula, Alckmin, Garotinho, voto no Lula.
Todo
mundo já brochou, menos o Ziraldo... Ele diz que nunca brochou. Isso
faz tempo. Sou contra essa dependência, de precisar tomar Viagra para
ficar de pau duro sempre.
Eu sou contra essa coisa de dependência;
tenho medo disso. Não sou contra Viagra, não, porque provavelmente
eu vá ter de recorrer a ele. O que eu acho um pouco preocupante é
esta idéia de ter um Viagra sempre à mão para facilitar
as coisas. E tem gente nova que toma por medo de fracassar. Isso pode se
tornar um problema, e você vai precisar de Viagra para ficar de pau
duro sempre. Posso até fazer uma experiência, mas criar essa
dependência... . Não sei, estou falando isso hoje, amanhã
pode ser diferente.
Sim,
eu já fui cantado por homens. Não foi adiante, claro. Eu achei
graça até. Era garoto, recebi uma proposta mirabolante. Achei
engraçado. Quando eu era garoto talvez achassem que eu pudesse ser
veado, pois eu era um menino atraente. Mas nunca fui veado, não.
Pensando bem, já faz muito tempo que não tem um homem que
me passa uma cantada.
E
qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer. A memória é
uma vasta ferida.
Mas
você não sabe o porquê de aquilo ter aparecido na tua
cabeça. E você não vai sossegar enquanto não
transformar em canção, em verso.
O
olhar de uma mulher faz pouco até de Deus, mas não engana
uma outra mulher.
Mesmo
que você fuja de mim,
por labirintos e alçapões,
saiba que os poetas, como os cegos,
podem ver na escuridão.
Pela
água do rio
Que é sem fim
E é nunca mais...
Desenho
cidades enormes, gigantescas, com fontes, com praças, com nomes,
com ruas. Quando não desenho, penso. Sonho muito com cidades. Os
meus sonhos misturam cidades que conheço. Também sonho com
cidades que não conheço e com cidades que imagino. São
as melhores de todas.
Ando naturalmente na rua. As pessoas
não perturbam muito. Se você andar como uma pessoa qualquer,
você fica sendo uma pessoa qualquer. As pessoas me reconhecem, e dizem:
— Olá, Chico, tudo bem? Não passa disso. Não
vou dizer que é mau. É bom, é simpático, é
gostoso. Não tenho nada contra.
Quando
quer, a imprensa incomoda.
Eu
falo bastante. Falo mais do que devia. Mas é que não tenho
tanto assunto. Tenho preguiça de falar. Gosto mais de fazer outras
coisas.
Se
eu fosse chamado para escrever o verbete Chico Buarque de Holanda em uma
enciclopédia de música popular, a primeira palavra seria:
Êpa!
Tem
dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu...
Palavra
boa, não de fazer Literatura, mas de habitar fundo o coração
do pensamento.
Eu
não gosto de ouvir música. Eu detesto ouvir música.
Ouço muito pouco. Às vezes, paro para ouvir um disco que eu
recebo, coisa assim. Mas aquela música que fica lá no fundo,
acho isso odioso. Se você está conversando aqui e tem uma música
tocando, fica aquele barulho... é desagradável.
Nada
me exaure. O que me exaure é dar entrevistas. Quando você está
fazendo um livro ou uma música, você não fica exausto.
Pelo contrário, você não quer dormir, quer continuar
fazendo; aquilo não te cansa. Mas você tem que botar um ponto
final no livro porque não quer largar dele. Na música também
tem isso: na última hora você quer botar mais uma coisinha,
quer retocar. Vocês conhecem a história do Bonnard,1
quando já era um pintor famoso, com quadros expostos? Essa história
é do cacete: ele entrava escondido nos museus, com pincéis
e tintas, e quando os guardas não estavam olhando, ia lá e
retocava os próprios quadros!
Fico
triste quando alguém me ofende, mas, com certeza, eu ficaria mais
triste se fosse eu o ofensor... Magoar alguém é terrível!
Não há problema que
não possa ser solucionado pela paciência.
Lembra-te
sempre: cada dia nasce de novo amanhecer.
A gente gosta das coisas que não
entende; as coisas que entende, a gente não gosta. Eu entendo de
quê? De Gramática, de Trigonometria! Mas eu não gosto
dessas coisas...
Quero
inventar o meu próprio pecado. Quero morrer do meu próprio
veneno.2
Para
um fã que gritou 'tesão' da platéia durante o seu show:
Tesão não pode. Já sou avô e meus netos estão
aí. Depois vai ser aquela coisa: 'vovô viu a vulva'.
Você
domina as palavras não ditas; porém, está subordinado
àquelas que pronunciou!
Ambiente
limpo não é o que mais se limpa, e, sim, o que menos se suja.
Vou
voltar, sei que ainda vou voltar, vou deitar à sombra de uma palmeira
que já não há, colher a flor que já não
dá.
Mas
para meu desencanto,
o que era doce acabou.
Tudo tomou seu lugar
depois que a banda passou.
E cada qual no seu canto,
em cada canto uma dor,
depois da banda passar,
cantando coisas de amor.
O
artista popular revolucionário poderia ser o indivíduo que
mora na Zona Sul, trabalha e ganha dinheiro, tem mãe, mas vê
que a favela é logo ali, e que na porta de seu edifício dorme
um mendigo adulto. Sente-se, então, compelido a renegar sua existência
de ‘burguês de doirada tez’ para se juntar ao povo. Sua
opção é moral. Sua ação política
é uma questão de honra e de doutrina.
Você
que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza de 'desinventar'.
O malandro/Na
dureza
Senta à mesa/Do café
Bebe um gole/De cachaça
Acha graça/E dá no pé.
O garçom/no
Prejuízo
Sem sorriso/Sem freguês
De passagem/Pela caixa
Dá uma baixa/No português.
O
malandro/Tá
na greta
Na sargeta/Do país
E quem passa/Acha graça
Na desgraça/Do infeliz.
O
malandro/Tá de coma
Hematoma/No nariz
E resgando/Sua bunda
Um funda/Cicatriz.
O
usineiro/Nessa luta
Grita (ponte que partiu)
Não é idiota/Trunca a nota
Lesa o Bancol/Do Brasil.
E
se me envaideciam os fraseados, bem maior era a vaidade de ser um criador
discreto. Não se tratava de orgulho ou soberba, sentimentos naturalmente
silenciosos, mas de vaidade mesmo, com desejo de jactância e exibicionismo,
o que muito valorizava minha discrição.
Estava atento a cada reticência,
a cada hesitação, à frase interrompida, à palavra
partida ao meio como fruta que eu pudesse espiar por dentro.
Experimentei escrever alguma coisa
em mim mesmo, mas não era tão bom; então fui a Copacabana
procurar as putas.
...
as capas estavam todas alinhadas; as letras
é que pareciam fora de ordem.
Acho
que me apeguei àquele silêncio, e, a fim de prolongá-lo,
me recolhi ao quarto, onde passei o resto da noite olhando para o teto.
A essência do estilo se dilui
até nas melhores traduções...
Hoje
em dia, você inventa amor para fazer música. Se não
tiver uma paixão, você inventa uma, para a partir daí
ficar eufórico ou sofrer.
Mas
fica meu amor.
Quem sabe, um dia,
Por descuido ou poesia,
Você goste de ficar.
Parece que é uma ofensa a
eles, ao Capital, não doar uma canção minha para um
produto comercial, porque você recusa, às vezes, quantias muito
altas. Aí fica aquela coisa, quase uma questão de honra. Parece
que você tá querendo chegar ao teu preço. E aí
você não pode ter preço. Talvez, se eu precisasse desse
dinheiro, eu cedesse. Porque estaria passando fome ou sei lá o quê.
Mas sei que, se eu precisasse, ninguém ofereceria tanto dinheiro
assim.
O
processo de criação, quando começa, não pára
mais; fico escrevendo o tempo todo. Tô conversando com vocês
aqui e fico pensando no que tenho que escrever. Com a música é
a mesma coisa.
Para
compor, antigamente, havia excitação, sim; sofrimento, não.
Compor sempre foi um grande prazer... Criação é uma
coisa muito íntima. Você tem que estar sozinho, com suas caretas
e esgares, como diz um poema do João Cabral.
Geralmente a música está
pronta; a letra ainda não. A letra nunca vem antes.
Eu
não acredito que o artista seja obrigado a ter um papel político
no País. Eu sou contra isso. Sou contra essa exigência. Sempre
fui. Mesmo quando eu tive a mais marcada atuação política,
não exigi isso de ninguém, não cobrei isso de nenhum
colega meu. Não acho isso justo. Acho até uma violência
com um sujeito que está em casa, pintando seu quadro, e por um motivo
ou outro, ou porque tem medo, ou porque não se sente à altura,
ou porque não se acha afetado por aquilo, ou porque se acha insignificante
como ator político, não acredito que esse cara tenha obrigação
de sair à rua e assinar um manifesto. Não gosto dessa imposição.
E existe também um julgamento político, a favor e contra o
artista. Muitas vezes o artista é elogiado, é apreciado porque
tem boas posições políticas. Isso não é
correto.
Acho
que a questão política contamina o julgamento estético,
e acho isso próprio de quem não gosta de Literatura, de que
não gosta de música. É próprio de fanáticos;
e eu não gosto de fanatismo.
Eu
já não vou a Cuba há uns oito anos, talvez. Em primeiro
lugar, todo mundo sabe: Cuba parece muito com o Brasil. Tem aquele povo
parecido com o nosso, alegre, e tem (pelo menos tinha) seus problemas básicos
resolvidos. Se isso é possível de se fazer em Cuba –
que é um país paupérrimo – não é
possível que não possa ser feito no Brasil. Não é
possível que não se possa dar escola, sapato no pé,
comida, hospital, atendimento básico. Não é possível
que não se possa fazer no Brasil alguma coisa parecida.
Caco:
—
Como você se sente sendo o Chico Buarque?
Chico:
— Eu não penso nisso! Tenho mais o que pensar!
Ziraldo:
— Pô,
Chico, não há hipótese de não pensar! Não
tem uma hora em que você, sozinho em casa, pensa assim: 'Puta que
pariu, eu sou o Chico Buarque'? Eu lá em Caratinga já pensava
nisso...
Chico
[se divertindo]:
— Ah,
é? E como é isso, Ziraldo? Eu quero saber. Em casa, sozinho,
você chega e fala: — Puta que pariu; eu sou o Ziraldo! Como
é que é isso?
Não
sou religioso não, mas sei que tem uns mistérios por aí...
E quando eu falo em mistérios, estou falando da vida, mesmo...
Você
acha que existe um plano cruel para imbecilizar o brasileiro?
Não, não acredito em nenhuma teoria conspiratória e
nem sou paranóico. Agora, aí é a questão do
ovo e da galinha. Você não sabe exatamente. Os meios de comunicação
vão dizer que a culpa é da população, que quer
ver esses programas. Bom, a TV Globo está instalada no Brasil desde
os anos 60. O fato de a Globo ser tão poderosa, isso, sim, eu acho
nocivo. Não se trata de monopólio, não estou querendo
que fechem a Globo. E a Globo levanta essa possibilidade comparando o Governo
Lula ao Governo Chavez. Esse exagero.
Todas
as grandes cidades pioraram. Não sou saudosista. Não tenho
saudades do Rio. Tenho boas lembranças. Não tenho saudades
de mim. Tenho boas lembranças. Hoje, o Rio é uma cidade mais
violenta, mais deteriorada.
Eu
não mudei porque tenho cabelos brancos.
Nunca tive partido nem pretendo ter.
A entrevista da edição passada foi com Hermínio Bello
de Carvalho, que disparou a idéia de uma seção de epitáfios.
O dele: 'Não vim ao mundo para fazer gracinhas!' Lembrou também
o de Eneida de Moraes: 'Essa mulher nunca topou chantagem'. E o seu, qual
é? Não quero epitáfio, não. Mas, para a sua
sessão, sugiro aquele do Aretino: Qui giace l’Aretin, poeta
tosco/Che disse mal d’ogni un, fuorché di Cristo./Scusandosi
col dir: non lo conosco.3
Depois
dos Governos de FHC e de Lula, você ainda tem esperanças na
política? Os dois decepcionaram. A pessoa que chega ao
poder se torna um pouco fantasma daquela que deu a vida por algo que não
se realizou.
O
que você
acha do PSOL e dessa turma que deixou o PT fazendo críticas pela
esquerda? Percebo nesses grupos um rancor que é próprio
dos ex: ex-petista, ex-comunista, ex-tudo. Não gosto disso, dessa
gente que está muito próxima do fanatismo, que parece pertencer
a uma tribo, e que, quando rompe, sai cuspindo fogo. Eleitoralmente, se
eles crescerem, vão crescer para cima do PT, e, eventualmente, ajudar
o adversário do Lula.
Não
acho que a mídia tenha inventado a crise do mensalão. Mas
a mídia ecoa muito mais o mensalão do que fazia com aquelas
histórias do Fernando Henrique, a compra de votos, as privatizações.
O Fernando Henrique sempre teve uma defesa sólida na mídia
– colunistas chapa-branca dispostos a defendê-lo. O Lula não
tem. Pelo contrário, é concurso de porrada para ver quem bate
mais.
Não
tenho maior simpatia pelo Zé Dirceu. Não assinei manifesto
em defesa dele; acho que ele errou, que ele tem culpa, sim, por tudo o que
aconteceu, mas eu respeito uma pessoa que, num determinado momento, entregou
a sua vida, jogou tudo o que tinha em nome de uma causa, do País.
Como o Zé Dirceu, eu poderia citar outros nomes que chegaram ao poder,
mas chegaram despidos daquele sonho em nome do qual eles lutaram a vida
toda. Quem sabe para chegar ao poder tiveram justamente que se render ao
pragmatismo.
O Brasil sempre ocupou uma posição
periférica no mundo e o Rio, cada vez mais, está numa situação
periférica em relação às decisões nacionais,
ao poder, a São Paulo. O subúrbio do Rio é a periferia
dessa Cidade meio marginalizada e está literalmente fora do mapa...
As pessoas se lembram de Vigário Geral por causa da chacina, sabem
que existe Olaria e Madureira por causa do futebol, mas não se vai
muito além.
Talvez
eu não seja a pessoa mais feliz do mundo. Sei o que é angústia,
mas não sou uma pessoa deprimida e nem dada a depressões.
Angústia criativa eu sei o que é. Nas três vezes em
que entrei para a Psicanálise foi um pouco por isso, assombrado por
um período de infertilidade criativa. Não conseguia fazer
nada, e aquilo foi me angustiando, e aí entrava na análise.
Por algum motivo, alguma hora eu começava a fazer música,
mas não acredito que isso se devia à análise. Quando
eu começava a fazer uma música ou algo assim eu me dava alta.
Hoje, lido melhor com isso. A experiência ajuda, você se diz:
'paciência, isso é normal'. Você passa por períodos
mais brilhantes e outros mais opacos.
Acho
que essa coisa de execrar a classe política como um todo é
muito perigosa, especialmente para quem viveu a época da ditadura,
para quem viu o golpe de 64, se arvorar como o defensor da cidadania contra
a corrupção, contra o Comunismo etc. A política foi
cerceada durante todos esses anos com essa justificativa: os políticos
são todos iguais, os políticos são todos corruptos,
a política é suja. Então, esse é um discurso
muito perigoso.
O Rio é sempre um problema.
A fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio foi nociva para
o Rio. Talvez fosse necessária, não sei. Mas foi imposta,
e o resultado não foi bom.
O
Rio de Janeiro já foi mais progressista, mais expressivo. No começo
da ditadura, o Rio de Janeiro era o Estado da oposição –
uma preocupação para os militares. Hoje em dia, isso se diluiu
um pouco. Há fenômenos novos, a própria emergência
dos evangélicos. O Brasil mudou; com o Rio não foi diferente.
Não
sei lidar muito bem com informática. Só sei o básico.
Até hoje não consegui entender como se faz para gravar um
CD. Tenho tudo lá em casa, mas aí quando fui fazer as músicas,
tive de mandar para o Luiz Cláudio Ramos, que é o arranjador.
Tentei e não consegui. E aí recorri ao velho gravador cassete.
Foi à moda antiga.
No
tempo em que a missa era em latim, eu fui coroinha no colégio. Tinha
a sacristia, e a gente roubava hóstia – não consagrada,
que é pecado mortal – e, às vezes, um gole de vinho.
Além de estudar latim, eu sabia ajudar na missa, sabia tudo.
Sete
anos em colégio de padre foi bom para não gostar muito de
Igreja. Eu não gosto de nada; sempre achei meio esquisito. As minhas
lembranças de Igreja, hoje, são sempre muito sombrias. Um
dia, em Roma, minha mãe conseguiu uma audiência – não
particular, claro, mas uma audiência restrita, com umas cem pessoas
– para ver o papa. Quando apareceu o papa, o Pio XII, fiquei com um
medo dele, daquele velho. Ficamos numa sala, e aquele cheiro de incenso
que me enjoa, e esperando, esperando, e em pé. E a minha mãe,
que é católica – meu pai, é claro, não
estava ali – levou os sete filhos para ver o papa de perto. Depois
de sei lá quanto tempo, apareceu o papa numa... não sei como
se chama esta cadeira, tem um nome em latim, depois eu vejo. E ele passando
carregado pelos soldados da Guarda Suíça. Ele com aquela batina
branca, sendo carregado, cheio de almofadas brancas... E aí minha
irmã mais nova falou alto: — a papa é folgada, não
é? Foi a única coisa que me relaxou. Enfim, eu me afastei
completamente da Igreja. Já perdi a fé lá na escola
de padre.
O
beijo e o sexo ficaram fáceis demais; perderam o valor da conquista.
No pós-pílula, anos 60 e tantos, já era assim. Eu não
peguei isso na minha formação sexual, e é uma pena,
gostaria muito de estar me formando sexualmente agora. Naquela época,
as primeiras experiências sexuais já eram mais tardias do que
hoje porque você tinha menos informação. Hoje, um garoto
de dez anos está sabendo o que um garoto de 15 daquela época
não sabia. E a formação sexual se dava com prostitutas
ou com empregadas domésticas, que faziam um pouco prostituição
também. No meu caso foi isso. Minha primeira mulher era uma empregada
que dava... Bem, ela não dava, cobrava, baratinho até. Era
a empregada de um amigo da turma que tinha essas liberalidades. A gente
sabia, e tinha aquela fila. E depois, as prostitutas e tal. Namoro não
chegava às vias de fato. Eu tive várias namoradas com quem
rolava uma forma qualquer de sexo, mas incompleto. Já depois, nos
anos 60, eu já com 20 anos, começou uma certa liberação.
Então, que bom que hoje a questão é mais aberta, menos
traumática, menos hipócrita. O que me preocupa é que
às vezes parece que há um certo enfado; que não existe
mais a vibração que existia pela própria facilidade
com que as coisas são obtidas. Pode ser. Mas pode ser impressão
minha.
Posso
estar acompanhado, mas, certamente, gosto de estar sozinho também.
Há momentos em que eu quero estar sozinho.
Acredito
que, naturalmente, na canção popular, a tendência seja
ir ficando mais lento, até deixar de existir. Acho que uma hora vá
me desinteressar por fazer música. Talvez esteja me preparando para
isso ao me dedicar à Literatura. Acredito mesmo que música
popular seja uma arte de juventude. O que componho é com o que me
resta de juventude, que já não é tanto. E vai acabar.
Vou ficar velho, caduco e vou morrer.
Meu
Pitaquinho
Sim,
eu faço coro e
grifo
que
devagar
não se vai longe.
E
caranguejola quimerizar que
bem-fada levar vida de monge.
Mas
correr atrás
do tempo
não
bota fim na esp'rança.
No
Tempo, não há antetempo;
Quem
espera nunca alcança.
Esperar
é coisa de zé-piegas,
É
preciso, já, meter a verônica
–
desde que não seja às cegas –
senão
a pasmaceira fica crônica!