CHICO BUARQUE DE HOLLANDA
(Pensamentos)

 

 

 

Chico Buarque de Hollanda

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Objetivo do Texto

 

 

 

Tenho sessenta anos. Nasci e vivo no Rio. Estou separado e tenho três filhas, duas netas e meia e um neto: Chico. Sou um democrata que ainda acredita na possibilidade de um Socialismo Democrático. Já tivemos quase duas décadas de idiotice globalizada. Sou ateu. Tenho uma vida rodeada de mulheres. Sim, irmãs, filhas, netas. Continuo com a curiosidade intacta, com o mesmo desconhecimento e esta estranha admiração pelas mulheres, que sempre me surpreendem. Suas opiniões me interessam mais do que a dos homens. Não sou nostálgico, não penso que éramos mais bonitos, mais magros e mais felizes, embora tudo isso seja verdade. Não me agrada recordar nem os anos 60 nem os 70, dos 80 não me lembro, e nos 90 começou a idiotice. Nunca estive de acordo com o que me cercava. Me agrada estar vivo, fazer as coisas em meu ritmo, sem pressões. Este é um pouquinho do Chico Buarque por Francisco Buarque de Hollanda.

 

Quantas guerras terei que vencer por um pouco de paz? Eu não sei. Você sabe? Enquanto eu não encontro a resposta – e acho que não vou encontrar nunca porque sempre haverá uma batalha (interior) a ser vencida – vou lutando por esta paz tão querida e aprendendo um pouquinho aqui um pouquinho ali. Com todos. Hoje, é a vez de Chico Buarque de Hollanda.


 

 

 

Breve Biografia

 

 

 

Chico Buarque de Holanda

Chico Buarque de Hollanda

 

 

 

Francisco Buarque de Hollanda (Rio de Janeiro, 19 de junho de 1944), mais conhecido como Chico Buarque ou ainda Chico Buarque de Hollanda, é um músico, dramaturgo e escritor brasileiro. O que interessa de sua biografia está em suas músicas e nos seus livros. Então, em forma de fragmentos, vamos a eles.

 

 

 

Fragmentos Hollandianos

 

 

 

Era assim: o que quiser que tenha, tinha. Tinha arrebol? Rouxinol? Luar do sertão, palmeira imperial, girassol, tinha. Também tinha temporal, barranco, às vezes lamaçal, o diabo. Depois bananeira, até cachoeira, mutuca, boto, urubu, horizonte, pedra, pau, trigo, joio, cáctus, raios, estrela cadente, incandescências. Através da música digo coisas que eu não conseguiria dizer sem ela.

 

Eu não sou tímido na minha vida normal. Mas eu não acho que seja normal você subir no palco e cantar.

 

Medo da morte não tenho; mas quero distância dela.

 

Em fins de 68, começou a verdadeira censura e a perseguição aos opositores do regime, políticos, simples artistas ou fumadores de maconha. Isso tudo era preciso combater e nós, os artistas mais populares, o fizemos com a música, com prejuízo para a qualidade artística.

 

Quem tem cu tem medo. Na época da ditadura, recebia ameaças, cartas. Hoje, tem gente no Brasil que tem medo de outras coisas e vive cercada de guarda-costas, sobretudo os famosos, porque ter guarda-costas o torna ainda mais famoso.

 

Experimente, diga-se coisas bonitas. Me lembro de Vinicius de Moraes, que quando viajava sozinho e tinha sonhos, se cantava canções de ninar e passava a mão no rosto até adormecer. Eu tentei e não funcionou.

 

Sim, sou um insone; por isso sempre trabalho de noite, o que é fatal para o insone. Quando consigo dormir, escrevo música em sonhos. Compus coisas maravilhosas, mas logo percebi que eram de outros.

 

Minha mãe tem 95 anos e repete constantemente: — Juízo e alegria! E eu lhe digo: — Mamãe, ou juízo ou alegria. Meu pai era um sonhador e ela equilibrou seu lado boêmio. Impunha a disciplina, mas com muito sentido de humor, com isso: com juízo e alegria. Sete filhos!

 

Hoje em dia, a gente vê pouquíssima margem de uma mudança social. Ao mesmo tempo, em países pobres, como o Brasil é, deveria ser mais do que nunca premente a necessidade de uma transformação social. A situação se deteriora, e não se enxerga uma alternativa razoável. Me preocupa que estamos nos encaminhando cada vez mais para uma situação irracional. Tudo passa pela Economia.

 

Eu, cada vez mais, me abstenho por reconhecimento da minha limitação, da minha ignorância.

 

Vejo um pensamento cada vez mais conservador, até mesmo na aparência das pessoas, todo mundo arrumadinho...

 

Diante da ausência de perspectiva de mudança social a curto ou a médio prazos, a sociedade toda está sendo levada a um certo conformismo ou mesmo ao cinismo...

 

Às vezes, descubro coisas que queria – e que também não queria – descobrir.

 

O trabalho de escritor, assim como o de compositor, é bastante egoísta. Claro que eu escrevo em busca de alguma coisa, para entender talvez o passado, talvez eu mesmo. Às vezes descubro coisas boas, às vezes não.

 

Não tenho este orgulho de falar que sou um autor de teatro. Minhas peças foram apenas a criação de 'links' para unir as minhas músicas. Não me considero nem de longe um teatrólogo.

 

O trabalho de escritor requer disciplina e fica meio solitário de vez em quando.

 

Eu tenho um pouco de dificuldade em distinguir trabalho de ócio. Não posso ficar parado, catatônico. Mas ir ao cinema, para mim, é trabalho. O tempo todo é assim. Esse negócio de hora é estranho. Cada um tem seu tempo; cada um faz a sua parte.

 

O tempo acrescenta com uma mão e tira com a outra... Com o tempo, você fica cada vez menos disponível para esse tipo de centelha, perde o gesto espontâneo de sentar, tocar violão... Fica mais exigente: depois dos 50, você joga mais coisa fora do que aproveita. Você tem mais conhecimento do que tinha aos 20 anos. E como já conhece bem os caminhos, fica mais difícil encontrar um caminho pelo acaso... Eu sei como buscar, mas não necessariamente como encontrar. Às vezes, acontece de buscar, ralar e não encontrar. Mas sei que, mais cedo ou mais tarde, vou conseguir. Na verdade, fácil, nenhuma música é. Mas para quem passa um ano escrevendo um romance, ficar uma semana tentando compor uma música não é tanto tempo assim.

 

 

 

 

Quando estou escrevendo, me divirto à beça; quando estou compondo, também; quando estou criando, encontro o prazer que não encontro nas férias. As férias, para mim, são um grande aborrecimento: fico aflito, ou porque acabei de concluir um trabalho ou porque estou procurando o que fazer em seguida – é um intervalo inócuo.

 

O momento mesmo de escrever não é tão prazeroso assim; é um antegosto. Você sabe que está escrevendo para ler depois, 'quando ficar bom, vai ficar ótimo de ler'.

 

Minhas músicas mais marcadamente políticas são as que têm menor qualidade estética, no meu ponto de vista... O mundo está despolitizado.

 

Não acredito que eu tenha parado no tempo. Quando gravo um disco, intimamente tenho a convicção de estar dando um passo adiante em relação ao que fiz antes. Esse passo é talvez mais lento, mais custoso, mais penoso. Estou andando mais devagar, mas acho que estou andando.

 

Gosto muito da vida; não quero morrer, não. Quero viver, viver bastante. E viver bem. Acho que com saúde, fazendo as coisas direito, dá para viver um bocado mais. Gostaria de viver com saúde e com imaginação, com vontade de criar coisas. Aos noventa e tantos anos e virando a noite por causa de uma música, por causa de um livro.

 

O Tom Jobim disse que 'a gente só leva da vida a vida que a gente leva'. O que você levará da sua vida? Não vou levar nada. Alguma coisa deixarei. Umas musiquinhas, uns livros, filhas, netos. Vou deixar umas coisas bonitas. Coisas que valeram a pena.

 

Antigamente, ficávamos bêbados em Ipanema dizendo coisas absurdas, mas não saía na imprensa. Hoje, alguém vai ver uma partida de futebol e vem o jornalista lhe perguntar como está a partida. Isso não me agrada.

 

Tem gente que persegue a fama que não corresponde a nada. É insólito.

 

 

A fama não corresponde a nada!

 

 

Não tenho especial dificuldade com a língua portuguesa, mesmo porque me socorro sempre dos dicionários. Consulto o Caldas Aulete, o Houaiss, o Dicionário de Verbos e Regimes e o de Regimes de Substantivos e Adjetivos, ambos de Francisco Fernandes, e o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. E o Aurélio, claro. Mas um deslize ou outro sempre aparece, quando da revisão de meus livros.

 

Quando escrevo um livro, trabalho sem parar, até dormindo. Às vezes, viajo para ter sossego; às vezes, fico por aqui mesmo, mas mando dizer que estou na fazenda, embora não tenha fazenda... Quando começo a escrever sei exatamente o que vai acontecer depois. Só que depois acontece outra coisa! Escrevo rascunhos, esboços, idéias esparsas, no computador ou em qualquer papel ao alcance da mão. Quando o livro já está encaminhado, escrevo no computador, imprimo, leio, risco, rasuro, anoto, volto ao computador, imprimo, leio e assim sucessivamente. Reescrevo tudo inúmeras vezes... Empaco muitas vezes, mas não me sinto pressionado, geralmente trabalho com prazer. Com a experiência, a gente aprende a fazer tudo mais devagar... E quando termino um trabalho me sinto vazio.

 

Ouvi de tudo, desordenadamente, mas o que mais me impressionou, e para sempre, foi a primeira audição de Chega de Saudade, de Tom e Vinícius, com João Gilberto.

 

Escrever romances é muito diferente de compor músicas. E minhas peças de teatro, peças musicais, têm mais afinidade com a música do que com a Literatura. A música acaba marcando a minha literatura. Os personagens são obsessivos, repetem-se, são como personagens de música, são como temas de música, que tendem a se repetir. Mas o princípio que me move é o mesmo: vontade de me comunicar.

 

Sou um artífice vagaroso. Acho até que já escrevi músicas e letras em demasia, mas ainda assim vou ficar devendo.

 

Não me preocupo em ser original. Acho que sou meio esquisito mesmo.

 

Sei que em jornal, crítico de música geralmente é crítico de letra. É difícil não ser de outro jeito. A letra é visível, impressa; a partitura não. No entanto, eu dou cada vez mais importância à música. Quase sempre faço a letra que a música pede. Todos deviam perceber que as letras não são poesia; elas se integram à música para compor uma canção. Mas talvez seja pedir demais.

 

Eu não tenho crença. Eu fui criado na Igreja Católica, fui educado em colégio de padre. Eu simplesmente perdi a fé. Mas não faço disso uma bandeira. Eu sou ateu como o meu tipo sanguíneo é esse. Hoje, há uma volta de certos valores religiosos muito forte, acho que no mundo inteiro. O que é perigoso quando passa para posições integristas e dá lugar ao fanatismo. O Brasil talvez seja o País mais católico do mundo, mas isso é um pouco de fachada. Conheço muitos católicos que vão à umbanda, fazem despacho. E fica essa coisa de Deus, que entra no vocabulário mais recente, que me incomoda um pouquinho. Essa coisa de 'vai com Deus', 'fica com Deus'. Escuta, eu não posso ir com o diabo que me carregue? Tem até um samba que fala algo como 'é Deus pra lá, Deus pra cá – e canta - Deus já está de saco cheio'.

 

 

 

 

Passei também por espíritas mais ortodoxos, do tipo que encarnava um médico que me receitou um remédio para o aparelho digestivo. Aí eu fui procurar o remédio, e ele não existia mais. O remédio era do tempo do médico que ele encarnava.

 

Gosto de acreditar um pouco nisso, um pouco naquilo, porque eu vejo coisas inacreditáveis. Eu não acredito em Deus; acredito que há coisas inacreditáveis.

 

Sempre que eu encontro o Pelé é igual, porque eu só quero falar de futebol e ele só quer saber de música. Ele adora fazer música, adora cantar, adora compor. Por ele, o Pelé seria compositor.

 

Em relação à música, eu sou um autor muito mais passivo do que na Literatura. É evidente que eu sou um músico intuitivo, mas não sou um escritor intuitivo. Eu tenho noção perfeita do que estou escrevendo.

 

 

 

 

Tomei umas aulas de música com a Vilma Graça. Sei escrever uma música, não sendo muito complicada. Sei ler, solfejar, muito devagar, mas sei. Já com palavras, eu sei mexer, sei a métrica do negócio. Sei fazer a cor da palavra com mais facilidade. A música eu adivinho o colorido. E a letra não precisa adivinhar, se for preciso eu procuro no dicionário. Com a música, não. Se eu procurar muito, não chego a lugar nenhum. Ela vem ou não vem.

 

Não danço; sou meio desajeitado, sou desengonçado. Quando eu danço, as pessoas acham graça...

 

Eu não daria tudo para ter feito música nenhuma de outro compositor. Mas existem músicas que amo. Gosto mais do que as minhas. Eu não gostaria de ter feito uma música alheia. É uma coisa que não me ocorre. Porque o maior prazer da música está exatamente no momento em que você a cria. Nunca mais vai ser a mesma coisa. Quando você a repete nos 'shows', não vive a mesma sensação. Ignoro qual terá sido esse prazer em outro autor. Prefiro, então, sentir o prazer que sinto a cada composição minha, por menor que seja.

 

O artista está sempre devendo alguma coisa, algum tipo de explicação. A gente tem que encontrar a sabedoria de ficar com várias dívidas e não pagar o que é cobrado.

 

Na realidade, você nunca acha que está pronto.

 

Eu sou uma pessoa muito afetiva; uma pessoa que age por afeto. Eu sou o homem cordial. Eu sou um homem que age por impulso. Esse meu lado afetivo está, talvez, na música, que sofre esses arroubos afetivos. Eu faço uma distinção bastante clara: na Literatura sou um cidadão sem afetos. O fato de estar solitário escrevendo um livro, que vai ser apresentado em público e que vai ser lido individualmente, isso me despe um pouco desse sujeito atirado e algo ingênuo. Já a música me emociona; eu fico em lágrimas. Eu sou um bobo como músico. Mas tenho o outro lado, racional e muito crítico, muito seco, que é um lado que quase não cabe na música, que precisa de outro veículo.

 

O que me atraiu na bossa-nova foi a estética da timidez.

 

Meus cineastas prediletos são Fellini e Buñuel. Mas eu me sinto muito mais em casa com Buñuel. Não é um juízo de valor; é uma questão de afinidade.

 

Eu sempre gostei mais da minha música cantada por outras pessoas.

 

Não era mito não; eu bebia muito. Bebia todo dia e bebia coisas fortes. E fui parando, comecei a enjoar; não é nenhum mérito meu não, acho que meu organismo é que foi pedindo água. Então, hoje eu só tomo vinho, cerveja; e nem todo dia.

 

Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor...

A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor...

 

Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma.

 

 

E ele me conhece o suficiente para saber que eu poderia até receber um estranho, mas nunca abriria a porta para alguém que de fato quisesse entrar.

 

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

De que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra...

 

Eu não ligo nem um pouco para o sucesso.

 

Eu não sou tão politizado como parece ou como talvez a minha imagem sugira. E nem gosto muito de política, mas sou obrigado, no meu dia-a-dia, a conviver com fatos políticos.

 

Acho o Djavan um craque.

 

Não gosto especialmente de 'rock'; não sou da geração do 'rock'. A mesma batida... Não pode ser uma coisa só... Isso me enjoa... Mas procuro ouvir de tudo.

 

Gosto muito de futebol; até inventei um campeonato para ser campeão.

 

Águas de Março – de Tom Jobim – é uma música que eu não diria que gostaria de ter feito, porque é impossível que eu fizesse uma música dessas. É outra cabeça. Mas é uma música da qual eu adoraria conhecer o prazer e o mecanismo da criação, assim como músicas de Noel Rosa, Cartola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento. Recorro a um recurso: tenho parceiros que admiro muitíssimo – inclusive o próprio Tom. Ao me fazer parceiro, eu crio a música com eles. Ao fazer a letra para uma música alheia, eu estou me apropriando um pouco dessa música – que não é minha.

 

Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio...

 

Porque nesses seis meses tudo o que falamos antes virou barulho, fica difícil retomar a conversa.

 

Talvez a música popular seja uma arte de juventude. Imagino que seja, porque o consumidor de música popular é, sobretudo, o adolescente, o jovem de vinte a trinta anos. Depois, começa a diminuir. Já o autor de música popular tende a ser mais seletivo com o tempo. Faz uma coisa ou outra, mas não com a exuberância que tinha aos vinte anos de idade. Quando você tem vinte anos, você tem um baú de músicas inéditas. Depois, as músicas vão escasseando. Você fica mais exigente. Chega, então, um tempo em que a gente começa a fazer música popular com o resto de juventude que se tem. Depois, o melhor a fazer talvez seja imitar Dorival Caymmi – que se recolheu aos seus pincéis e suas tintas. Talvez seja melhor procurar outro afazer, outra ocupação... A Literatura é uma alternativa. Talvez eu tenha me inspirado em Caymmi ao pensar nisso: ter um recurso para continuar criando sem depender da juventude – que é o motor da música popular.

 

A curiosidade é mesmo feita do que já se conhece com a imaginação.

 

Vejo a multidão fechando todos os meus caminhos, mas a realidade é que sou eu o incômodo no caminho da multidão.

 

 

 

 

Há no PT a idéia de que ou você é petista ou é calhorda, assim como o PSDB acha que você ou é tucano ou é burro.

 

É possível encontrar algo semelhante ao futebol no 'jazz', na música instrumental. Alguma coisa pode acontecer enquanto você toca. Mas não sou improvisador. De qualquer forma, há, no ato da criação, momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem sem que você tenha pressentido. De repente, vem uma idéia. Você se pergunta: de onde veio? É o que acontece com o futebol: é como se o corpo recebesse uma luz repentina, inexplicável.

 

Não experimentei tudo. Nunca fui à heroína, nunca me piquei. Foi o básico: fumei, cheirei, tomei ácido. E larguei isso tudo. Na verdade, nunca fui um bom maconheiro. Posso eventualmente fumar aqui e ali, não vejo muito mal. Mas não sou adepto.

 

Já experimentei drogas; experimentei e gostei. Mas parei com as drogas ilegais. Cocaína, nunca mais. Na verdade as drogas nunca foram um problema sério para mim, mas poderiam vir a ser, porque eu tenho uma certa propensão ao vício. Sou uma pessoa que cria hábitos. Se eu fosse supersticioso, seria impossível de tratar. Tenho facilidade para criar manias e luto contra isso. A única droga que realmente me afeta hoje é o cigarro, sou um fumante compulsivo, então, procuro me disciplinar. Isso poderia ter acontecido em relação ao álcool – ter virado um alcoólatra – e, talvez, tenha chegado perto. Consegui, por algum motivo que não é tanto disciplina, poder beber socialmente, de vez em quando. Mas, ainda assim, se eu entro numa temporada de 'shows', tenho que tomar vinho.

 

Acho tão inócuo culpar o consumidor ou pedir que ele se abstenha de consumir droga quanto o papa ou o Bush proporem a abstinência sexual como única alternativa para se prevenir contra a AIDS. A repressão policial também não produz resultados. É uma questão complicadíssima. Como é que se vai legalizar o comércio de drogas? Isso está sendo discutido em muitos outros lugares. No México, na Holanda. E aqui eu não vejo isso ser discutido. O problema não é levado a sério. Eu também não gosto de ficar pontificando. Não quero que a minha canção seja um hino, uma bandeira em defesa das drogas. Mas, de fato, eu acredito que é melhor legalizar as drogas. Traz menos danos à sociedade do que o tráfico. A tentativa de responsabilizar o consumidor é ingênua, mais ingênuo do que o sonho descrito na canção, que fala da maconha da tabacaria e das drogas da drogaria. Já fumei, já cheirei, e abandonei. Não recomendo. Não fumo maconha porque não faz bem para mim. Quando tenho insônia, tomo Dormonid.

 

A ocupação das favelas pelo Exército me espantou muito. E o que mais me espantou foi o apoio maciço da classe média, das pessoas que escrevem no jornal. Eu entendo o fato de a classe média estar apavorada. Eu entendo o resultado do plebiscito das armas: a pessoa achar que andar armada pode ser uma solução, pode contribuir para a defesa. Eu discordo. A imagem de canhões apontados para a favela, para mim, é assustadora. E, nas cartas de apoio, as pessoas defendem soluções drásticas, como se isso fosse resolver o problema do morro. É um erro tratar todo habitante do morro como um delinqüente, dizer que todos os moradores das favelas precisam ser removidos de lá, quando não eliminados, como está mais ou menos aparente e às vezes até explícito. O que se ouve é: 'Toca fogo no morro, resolve isso de uma vez'... O conservadorismo está cada vez maior.

 

Não quero que ninguém veja um rascunho inacabado. É uma questão de pudor. Então, trituro todos os rascunhos e jogo na fogueira. Hoje, menos, porque muitos rascunhos são apagados no computador. Algumas vezes eu imprimo e corrijo a mão. Mas esse material impresso eu prefiro destruir... O comércio de material inédito me incomoda bastante, mas comigo não vai acontecer. Não deixei rastros. E não vou deixar.

 

Pergunte a qualquer pequeno empresário como faz para levar adiante seu negócio. Ele é tentado o tempo todo a molhar a mão do fiscal para não se estrepar. O mesmo vale para o guarda de trânsito. E assim sucessivamente. A gente sabe que a corrupção no Brasil está em toda a parte.

 

Eu conheci o grau de agressividade do PT; sei como é. Eu já falava isso: tem muito chato neste PT. Ficam enchendo o saco da gente, enchendo o saco dos artistas, cobrando isso e aquilo.

 

São Paulo é detestável, um desastre. É a cidade que não deu certo. Estou falando da arquitetura, do urbanismo.

 

Garrincha era muito musical. Tive um contato maior com ele em Roma. A gente acaba mesmo falando mais de música do que de futebol. Garrincha conhecia música muito mais do que eu imaginava antes. Gostava de João Gilberto. Eu imaginava que Garrincha gostasse de uma música mais simplória, mais ingênua, talvez. Mas não! Garrincha gostava da sofisticação de um João Gilberto.

 

Na Itália, eu era o chofer de Garrincha. Ele jogava umas peladas – algumas remuneradas – na periferia de Roma. Ganhava um cachê. Eu é que levava Garrincha, no meu Fiat. Era impressionante. As pessoas paravam na rua. Garrincha era muito popular. Isso aconteceu entre 1969 e 1970. Garrincha já tinha parado de jogar há algum tempo. Oito anos já tinham se passado desde a Copa de 1962. Mas ele ainda era muito conhecido na Itália.

 

Nunca escolhi sem músico. Quando eu pude – e quis escolher – aos quatorze, quinze anos de idade, eu quis ser jogador de futebol mesmo. Eu achava que poderia ser um bom jogador. Era uma ilusão. Mas eu tinha essa ilusão, na época, com bastante segurança. Tornei-me músico um pouco por acaso. Devo dizer que o sonho de ser um craque permaneceu na minha cabeça. Ainda hoje acredito que seja.

 

Como eu bebia muito, fiquei encarregado de arrumar garrafas para fazer bomba molotov.

 

 

 

 

O Rio está em segundo plano. É o subúrbio do Brasil. Foi capital, mas, hoje, político importante no Rio é quase tão exótico quanto artista em São Paulo. A reação que proponho tem a ver com auto-estima. Canto para o Rio. Espero que o Rio cante para mim.

 

Eu só sei pensar andando. Se você ficar parado, não consegue pensar. Andar eu recomendo para tudo. Se você tem qualquer problema, dê uma caminhada porque ajuda, inclusive a ter idéias. Se a música ficou emperrada ou se a idéia para um livro não vem, a melhor coisa a fazer é dar uma bela caminhada. Fiquei três meses preso na cama. Eu não conseguia ter idéias. Só sonhava que andava. Foram três meses perdidos pela imobilidade... Associo o ato de andar ao ato de pensar, de criar e de compor.

 

Não tomo mais uísque. Cantar bêbado pode ser engraçado, mas não a temporada inteira. Faz mal para o fígado.

 

Essa coisa do cariocão não tem muito a ver comigo, da mesma forma que acho paulistice chata, baianice chata, mineirice chata.

 

Nunca imaginei que pudesse fazer uma música pensando num general! A gente não faz isso. Você pode fazer uma música com raiva de alguma coisa: acontecia na época da ditadura militar, porque, com a censura, a política interferia na criação, o que nos incomodava. Mas você não ia dedicar uma canção a uma pessoa. Quando se falava 'você', não se estava referindo a um general. Era uma generalidade.

 

Junto à minha rua havia um bosque,
Que um muro alto proibia,
Lá todo balão caía,
Toda maçã nascia,
E o dono do bosque nem via,
Do lado de lá tanta aventura,
E eu a espreitar na noite escura,
A dedilhar essa modinha,
A felicidade,
Morava tão vizinha,
Que, de tolo,
Até pensei que fosse minha.

 

Não sou fanático por nada.

 

 

 

 

Eu trocaria meu passado de compositor por um de jogador, mas por um bom jogador, que pudesse participar da Copa do Mundo. Um pacote completo. Um jogador mais ou menos, aí não.

 

O Niemeyer me falou isso. Eu fui à festa dele de 90 anos e ele me disse: — O importante é trabalhar e ó (fez sinal com a mão, referente a transar). Aí eu falei: — É mesmo? E ele respondeu — É mesmo.

 

O Vinicius disse muito bem, né? — É melhor ser alegre que ser triste… Mas pra fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não.

 

Muita coisa que vi no Vinicius já tinha aprendido com meu pai. Como achar graça de quem se dá importância, de quem se leva muito a sério.

 

Não passo muito tempo relembrando minhas canções antigas. Mas algumas me dão certa aflição, porque claramente foram feitas às pressas, desperdiçadas. Outras me parecem obscuras; não sei bem o que eu queria dizer com elas.

 

Drummond dizia que, quando começava a escrever um poema, sentia um pouco de febre.

 

Nós aprendemos,
Palavras duras,
Como dizer perdi, perdi,
Palavras tontas,
Essas palavras,
Quem falou não está mais aqui.

 

Um pessimista mais radical poderia sugerir que esse Ministério (Ministério do Vai dar Merda) tivesse poderes retroativos, até 500 e tantos anos atrás. Com o argumento do 'vai dar merda', D. Manuel seria convencido a não financiar a expedição de Cabral.

 

Proponho que se acabe com esse negócio de 'este País é uma merda'. Além de ciclotímico, brasileiro é muito auto-referente. Uma vez um italiano me perguntou por que aqui há tanta música falando em Brasil, Brasil, Brasil. Drummond já dizia que o Brasil precisa descansar de nossas terríveis carícias.

 

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta.

 

Na época da ditadura militar, era televisão e futebol. Construíram estádios e essa rede impressionante de telecomunicações por todo o Brasil, e ao mesmo tempo uma degradação crescente em termos de educação e saúde. Tudo isso foi descuidado.

 

Eu tendo a acreditar nos economistas quando dizem ser impossível gerenciar países como o nosso de outra forma. Quem sou eu para opinar? Tenho também pouco interesse em ler opiniões de leigos, de gente desavisada a esse respeito. Às vezes, podem dizer coisas interessantes ou até brilhantes, mas quando chega a hora de uma discussão mais séria essas opiniões soam quase como um escárnio, coisa de poeta.

 

Hoje na solidão ainda custo
A entender como o amor foi tão injusto
Pra quem só lhe foi dedicação.

 

Te perdôo por fazeres mil perguntas que em vidas que andam juntas ninguém faz...

 

 

 

Sonho Impossível
(The Impossible Dream)
Composição: Joe Darion e Mitch Leigh
(Versão em português de Chico Buarque)

 

Sonhar
Mais um sonho impossível
Lutar
Quando é fácil ceder
Vencer
O inimigo invencível
Negar
Quando a regra é vender
Sofrer
A tortura implacável
Romper
A incabível prisão
Voar
Num limite improvável
Tocar
O inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo
Cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão

 

 

 

Quando amo, eu devoro todo o meu coração,
Eu odeio, eu adoro numa mesma oração.

 

Que saudade é o pior tormento, é pior do que o esquecimento, é pior do que se entrevar...

 

Por favor,
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa,
E qualquer desatenção, faça não,
Pode ser a gota d'água...

 

Sonhos não morrem; apenas adormecem na alma da gente.

 

Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais...

 

Olhos nos olhos, quero ver o que você diz,
Quero ver como suporta me ver tão feliz...

 

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia...

 

Já de saída, a minha estrada entortou,
Mas vou até o fim...

 

Também acho uma delícia quando você esquece os olhos em cima dos meus.

 

Valoriza os amigos. Respeita os adversários.

 

Ouça um bom conselho,
Que eu lhe dou de graça:
Inútil dormir, que a dor não passa.

 

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu.
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu?

 

O que será ser só
Quando outro dia amanhecer?
Será recomeçar?
Será ser livre sem querer?

 

... e se vai continuar enrustido com essa cara de marido, a moça é capaz de se aborrecer... Por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz...

 

Sei que o seu caminho amanhã será tudo de bom, mas não me leve...

 

Menino quando morre vira anjo; mulher vira uma flor no céu; malandro quando morre vira samba.

 

 

 

 

Corro atrás do tempo.
Vim de não sei onde.
Devagar é que não se vai longe.

 

Está provado: quem espera nunca alcança.

 

Prefiro, então, partir,
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.

 

As pessoas têm medo das mudanças. Eu tenho medo que as coisas nunca mudem.

 

Hoje, lembrando-me dela,
Me vendo nos olhos dela,
Sei que o que tinha de ser se deu,
Porque era ela; porque era eu.

 

Para sempre é sempre por um triz.

 

Não se afobe não, que nada é pra já.

 

No tempo da maldade, acho que a gente nem tinha nascido.

 

Todo mundo sabe como foi conseguida a malfadada reeleição presidencial do FHC... Mas qualquer um vai no jornal e manda que o Lula é um merda. Se os candidatos forem Lula, Alckmin, Garotinho, voto no Lula.

 

Todo mundo já brochou, menos o Ziraldo... Ele diz que nunca brochou. Isso faz tempo. Sou contra essa dependência, de precisar tomar Viagra para ficar de pau duro sempre.

 

Eu sou contra essa coisa de dependência; tenho medo disso. Não sou contra Viagra, não, porque provavelmente eu vá ter de recorrer a ele. O que eu acho um pouco preocupante é esta idéia de ter um Viagra sempre à mão para facilitar as coisas. E tem gente nova que toma por medo de fracassar. Isso pode se tornar um problema, e você vai precisar de Viagra para ficar de pau duro sempre. Posso até fazer uma experiência, mas criar essa dependência... . Não sei, estou falando isso hoje, amanhã pode ser diferente.

 

Sim, eu já fui cantado por homens. Não foi adiante, claro. Eu achei graça até. Era garoto, recebi uma proposta mirabolante. Achei engraçado. Quando eu era garoto talvez achassem que eu pudesse ser veado, pois eu era um menino atraente. Mas nunca fui veado, não. Pensando bem, já faz muito tempo que não tem um homem que me passa uma cantada.

 

E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer. A memória é uma vasta ferida.

 

Mas você não sabe o porquê de aquilo ter aparecido na tua cabeça. E você não vai sossegar enquanto não transformar em canção, em verso.

 

O olhar de uma mulher faz pouco até de Deus, mas não engana uma outra mulher.

 

Mesmo que você fuja de mim,
por labirintos e alçapões,
saiba que os poetas, como os cegos,
podem ver na escuridão.

 

Pela água do rio
Que é sem fim
E é nunca mais...

 

Desenho cidades enormes, gigantescas, com fontes, com praças, com nomes, com ruas. Quando não desenho, penso. Sonho muito com cidades. Os meus sonhos misturam cidades que conheço. Também sonho com cidades que não conheço e com cidades que imagino. São as melhores de todas.

 

Ando naturalmente na rua. As pessoas não perturbam muito. Se você andar como uma pessoa qualquer, você fica sendo uma pessoa qualquer. As pessoas me reconhecem, e dizem: — Olá, Chico, tudo bem? Não passa disso. Não vou dizer que é mau. É bom, é simpático, é gostoso. Não tenho nada contra.

 

Quando quer, a imprensa incomoda.

 

Eu falo bastante. Falo mais do que devia. Mas é que não tenho tanto assunto. Tenho preguiça de falar. Gosto mais de fazer outras coisas.

 

Se eu fosse chamado para escrever o verbete Chico Buarque de Holanda em uma enciclopédia de música popular, a primeira palavra seria: Êpa!

 

Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu...

 

Palavra boa, não de fazer Literatura, mas de habitar fundo o coração do pensamento.

 

Eu não gosto de ouvir música. Eu detesto ouvir música. Ouço muito pouco. Às vezes, paro para ouvir um disco que eu recebo, coisa assim. Mas aquela música que fica lá no fundo, acho isso odioso. Se você está conversando aqui e tem uma música tocando, fica aquele barulho... é desagradável.

 

Nada me exaure. O que me exaure é dar entrevistas. Quando você está fazendo um livro ou uma música, você não fica exausto. Pelo contrário, você não quer dormir, quer continuar fazendo; aquilo não te cansa. Mas você tem que botar um ponto final no livro porque não quer largar dele. Na música também tem isso: na última hora você quer botar mais uma coisinha, quer retocar. Vocês conhecem a história do Bonnard,1 quando já era um pintor famoso, com quadros expostos? Essa história é do cacete: ele entrava escondido nos museus, com pincéis e tintas, e quando os guardas não estavam olhando, ia lá e retocava os próprios quadros!

 

Fico triste quando alguém me ofende, mas, com certeza, eu ficaria mais triste se fosse eu o ofensor... Magoar alguém é terrível!

 

Não há problema que não possa ser solucionado pela paciência.

 

Lembra-te sempre: cada dia nasce de novo amanhecer.

 

A gente gosta das coisas que não entende; as coisas que entende, a gente não gosta. Eu entendo de quê? De Gramática, de Trigonometria! Mas eu não gosto dessas coisas...

 

Quero inventar o meu próprio pecado. Quero morrer do meu próprio veneno.2

 

Para um fã que gritou 'tesão' da platéia durante o seu show: Tesão não pode. Já sou avô e meus netos estão aí. Depois vai ser aquela coisa: 'vovô viu a vulva'.

 

Você domina as palavras não ditas; porém, está subordinado àquelas que pronunciou!

 

Ambiente limpo não é o que mais se limpa, e, sim, o que menos se suja.

 

Vou voltar, sei que ainda vou voltar, vou deitar à sombra de uma palmeira que já não há, colher a flor que já não dá.

 

Mas para meu desencanto,
o que era doce acabou.
Tudo tomou seu lugar
depois que a banda passou.
E cada qual no seu canto,
em cada canto uma dor,
depois da banda passar,
cantando coisas de amor.

 

O artista popular revolucionário poderia ser o indivíduo que mora na Zona Sul, trabalha e ganha dinheiro, tem mãe, mas vê que a favela é logo ali, e que na porta de seu edifício dorme um mendigo adulto. Sente-se, então, compelido a renegar sua existência de ‘burguês de doirada tez’ para se juntar ao povo. Sua opção é moral. Sua ação política é uma questão de honra e de doutrina.

 

Você que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza de 'desinventar'.

 

O malandro/Na dureza
Senta à mesa
/Do café
Bebe um gole
/De cachaça
Acha graça
/E dá no pé.

O garçom/no Prejuízo
Sem sorriso
/Sem freguês
De passagem
/Pela caixa
Dá uma baixa
/No português.

 

O malandro/Tá na greta
Na sargeta
/Do país
E quem passa
/Acha graça
Na desgraça
/Do infeliz.

O malandro/Tá de coma
Hematoma
/No nariz
E resgando
/Sua bunda
Um funda
/Cicatriz.

 

O usineiro/Nessa luta
Grita
(ponte que partiu)
Não é idiota
/Trunca a nota
Lesa o Bancol
/Do Brasil.

 

E se me envaideciam os fraseados, bem maior era a vaidade de ser um criador discreto. Não se tratava de orgulho ou soberba, sentimentos naturalmente silenciosos, mas de vaidade mesmo, com desejo de jactância e exibicionismo, o que muito valorizava minha discrição.

 

Estava atento a cada reticência, a cada hesitação, à frase interrompida, à palavra partida ao meio como fruta que eu pudesse espiar por dentro.

 

Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom; então fui a Copacabana procurar as putas.

 

... as capas estavam todas alinhadas; as letras é que pareciam fora de ordem.

 

 

 

 

 

Acho que me apeguei àquele silêncio, e, a fim de prolongá-lo, me recolhi ao quarto, onde passei o resto da noite olhando para o teto.

 

A essência do estilo se dilui até nas melhores traduções...

 

Hoje em dia, você inventa amor para fazer música. Se não tiver uma paixão, você inventa uma, para a partir daí ficar eufórico ou sofrer.

 

Mas fica meu amor.
Quem sabe, um dia,
Por descuido ou poesia,
Você goste de ficar.

 

Parece que é uma ofensa a eles, ao Capital, não doar uma canção minha para um produto comercial, porque você recusa, às vezes, quantias muito altas. Aí fica aquela coisa, quase uma questão de honra. Parece que você tá querendo chegar ao teu preço. E aí você não pode ter preço. Talvez, se eu precisasse desse dinheiro, eu cedesse. Porque estaria passando fome ou sei lá o quê. Mas sei que, se eu precisasse, ninguém ofereceria tanto dinheiro assim.

 

O processo de criação, quando começa, não pára mais; fico escrevendo o tempo todo. Tô conversando com vocês aqui e fico pensando no que tenho que escrever. Com a música é a mesma coisa.

 

Para compor, antigamente, havia excitação, sim; sofrimento, não. Compor sempre foi um grande prazer... Criação é uma coisa muito íntima. Você tem que estar sozinho, com suas caretas e esgares, como diz um poema do João Cabral.

 

Geralmente a música está pronta; a letra ainda não. A letra nunca vem antes.

 

Eu não acredito que o artista seja obrigado a ter um papel político no País. Eu sou contra isso. Sou contra essa exigência. Sempre fui. Mesmo quando eu tive a mais marcada atuação política, não exigi isso de ninguém, não cobrei isso de nenhum colega meu. Não acho isso justo. Acho até uma violência com um sujeito que está em casa, pintando seu quadro, e por um motivo ou outro, ou porque tem medo, ou porque não se sente à altura, ou porque não se acha afetado por aquilo, ou porque se acha insignificante como ator político, não acredito que esse cara tenha obrigação de sair à rua e assinar um manifesto. Não gosto dessa imposição. E existe também um julgamento político, a favor e contra o artista. Muitas vezes o artista é elogiado, é apreciado porque tem boas posições políticas. Isso não é correto.

 

Acho que a questão política contamina o julgamento estético, e acho isso próprio de quem não gosta de Literatura, de que não gosta de música. É próprio de fanáticos; e eu não gosto de fanatismo.

 

Eu já não vou a Cuba há uns oito anos, talvez. Em primeiro lugar, todo mundo sabe: Cuba parece muito com o Brasil. Tem aquele povo parecido com o nosso, alegre, e tem (pelo menos tinha) seus problemas básicos resolvidos. Se isso é possível de se fazer em Cuba – que é um país paupérrimo – não é possível que não possa ser feito no Brasil. Não é possível que não se possa dar escola, sapato no pé, comida, hospital, atendimento básico. Não é possível que não se possa fazer no Brasil alguma coisa parecida.

 

Caco: — Como você se sente sendo o Chico Buarque?

Chico: — Eu não penso nisso! Tenho mais o que pensar!

Ziraldo: — Pô, Chico, não há hipótese de não pensar! Não tem uma hora em que você, sozinho em casa, pensa assim: 'Puta que pariu, eu sou o Chico Buarque'? Eu lá em Caratinga já pensava nisso...

Chico [se divertindo]: — Ah, é? E como é isso, Ziraldo? Eu quero saber. Em casa, sozinho, você chega e fala: — Puta que pariu; eu sou o Ziraldo! Como é que é isso?

 

Não sou religioso não, mas sei que tem uns mistérios por aí... E quando eu falo em mistérios, estou falando da vida, mesmo...

 

Você acha que existe um plano cruel para imbecilizar o brasileiro? Não, não acredito em nenhuma teoria conspiratória e nem sou paranóico. Agora, aí é a questão do ovo e da galinha. Você não sabe exatamente. Os meios de comunicação vão dizer que a culpa é da população, que quer ver esses programas. Bom, a TV Globo está instalada no Brasil desde os anos 60. O fato de a Globo ser tão poderosa, isso, sim, eu acho nocivo. Não se trata de monopólio, não estou querendo que fechem a Globo. E a Globo levanta essa possibilidade comparando o Governo Lula ao Governo Chavez. Esse exagero.

 

Todas as grandes cidades pioraram. Não sou saudosista. Não tenho saudades do Rio. Tenho boas lembranças. Não tenho saudades de mim. Tenho boas lembranças. Hoje, o Rio é uma cidade mais violenta, mais deteriorada.

 

Eu não mudei porque tenho cabelos brancos.

 

Nunca tive partido nem pretendo ter. A entrevista da edição passada foi com Hermínio Bello de Carvalho, que disparou a idéia de uma seção de epitáfios. O dele: 'Não vim ao mundo para fazer gracinhas!' Lembrou também o de Eneida de Moraes: 'Essa mulher nunca topou chantagem'. E o seu, qual é? Não quero epitáfio, não. Mas, para a sua sessão, sugiro aquele do Aretino: Qui giace l’Aretin, poeta tosco/Che disse mal d’ogni un, fuorché di Cristo./Scusandosi col dir: non lo conosco.3

 

Depois dos Governos de FHC e de Lula, você ainda tem esperanças na política? Os dois decepcionaram. A pessoa que chega ao poder se torna um pouco fantasma daquela que deu a vida por algo que não se realizou.

 

O que você acha do PSOL e dessa turma que deixou o PT fazendo críticas pela esquerda? Percebo nesses grupos um rancor que é próprio dos ex: ex-petista, ex-comunista, ex-tudo. Não gosto disso, dessa gente que está muito próxima do fanatismo, que parece pertencer a uma tribo, e que, quando rompe, sai cuspindo fogo. Eleitoralmente, se eles crescerem, vão crescer para cima do PT, e, eventualmente, ajudar o adversário do Lula.

 

Não acho que a mídia tenha inventado a crise do mensalão. Mas a mídia ecoa muito mais o mensalão do que fazia com aquelas histórias do Fernando Henrique, a compra de votos, as privatizações. O Fernando Henrique sempre teve uma defesa sólida na mídia – colunistas chapa-branca dispostos a defendê-lo. O Lula não tem. Pelo contrário, é concurso de porrada para ver quem bate mais.

 

Não tenho maior simpatia pelo Zé Dirceu. Não assinei manifesto em defesa dele; acho que ele errou, que ele tem culpa, sim, por tudo o que aconteceu, mas eu respeito uma pessoa que, num determinado momento, entregou a sua vida, jogou tudo o que tinha em nome de uma causa, do País. Como o Zé Dirceu, eu poderia citar outros nomes que chegaram ao poder, mas chegaram despidos daquele sonho em nome do qual eles lutaram a vida toda. Quem sabe para chegar ao poder tiveram justamente que se render ao pragmatismo.

 

O Brasil sempre ocupou uma posição periférica no mundo e o Rio, cada vez mais, está numa situação periférica em relação às decisões nacionais, ao poder, a São Paulo. O subúrbio do Rio é a periferia dessa Cidade meio marginalizada e está literalmente fora do mapa... As pessoas se lembram de Vigário Geral por causa da chacina, sabem que existe Olaria e Madureira por causa do futebol, mas não se vai muito além.

 

Talvez eu não seja a pessoa mais feliz do mundo. Sei o que é angústia, mas não sou uma pessoa deprimida e nem dada a depressões. Angústia criativa eu sei o que é. Nas três vezes em que entrei para a Psicanálise foi um pouco por isso, assombrado por um período de infertilidade criativa. Não conseguia fazer nada, e aquilo foi me angustiando, e aí entrava na análise. Por algum motivo, alguma hora eu começava a fazer música, mas não acredito que isso se devia à análise. Quando eu começava a fazer uma música ou algo assim eu me dava alta. Hoje, lido melhor com isso. A experiência ajuda, você se diz: 'paciência, isso é normal'. Você passa por períodos mais brilhantes e outros mais opacos.

 

Acho que essa coisa de execrar a classe política como um todo é muito perigosa, especialmente para quem viveu a época da ditadura, para quem viu o golpe de 64, se arvorar como o defensor da cidadania contra a corrupção, contra o Comunismo etc. A política foi cerceada durante todos esses anos com essa justificativa: os políticos são todos iguais, os políticos são todos corruptos, a política é suja. Então, esse é um discurso muito perigoso.

 

O Rio é sempre um problema. A fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio foi nociva para o Rio. Talvez fosse necessária, não sei. Mas foi imposta, e o resultado não foi bom.

 

O Rio de Janeiro já foi mais progressista, mais expressivo. No começo da ditadura, o Rio de Janeiro era o Estado da oposição – uma preocupação para os militares. Hoje em dia, isso se diluiu um pouco. Há fenômenos novos, a própria emergência dos evangélicos. O Brasil mudou; com o Rio não foi diferente.

 

Não sei lidar muito bem com informática. Só sei o básico. Até hoje não consegui entender como se faz para gravar um CD. Tenho tudo lá em casa, mas aí quando fui fazer as músicas, tive de mandar para o Luiz Cláudio Ramos, que é o arranjador. Tentei e não consegui. E aí recorri ao velho gravador cassete. Foi à moda antiga.

 

No tempo em que a missa era em latim, eu fui coroinha no colégio. Tinha a sacristia, e a gente roubava hóstia – não consagrada, que é pecado mortal – e, às vezes, um gole de vinho. Além de estudar latim, eu sabia ajudar na missa, sabia tudo.

 

Sete anos em colégio de padre foi bom para não gostar muito de Igreja. Eu não gosto de nada; sempre achei meio esquisito. As minhas lembranças de Igreja, hoje, são sempre muito sombrias. Um dia, em Roma, minha mãe conseguiu uma audiência – não particular, claro, mas uma audiência restrita, com umas cem pessoas – para ver o papa. Quando apareceu o papa, o Pio XII, fiquei com um medo dele, daquele velho. Ficamos numa sala, e aquele cheiro de incenso que me enjoa, e esperando, esperando, e em pé. E a minha mãe, que é católica – meu pai, é claro, não estava ali – levou os sete filhos para ver o papa de perto. Depois de sei lá quanto tempo, apareceu o papa numa... não sei como se chama esta cadeira, tem um nome em latim, depois eu vejo. E ele passando carregado pelos soldados da Guarda Suíça. Ele com aquela batina branca, sendo carregado, cheio de almofadas brancas... E aí minha irmã mais nova falou alto: — a papa é folgada, não é? Foi a única coisa que me relaxou. Enfim, eu me afastei completamente da Igreja. Já perdi a fé lá na escola de padre.

 

O beijo e o sexo ficaram fáceis demais; perderam o valor da conquista. No pós-pílula, anos 60 e tantos, já era assim. Eu não peguei isso na minha formação sexual, e é uma pena, gostaria muito de estar me formando sexualmente agora. Naquela época, as primeiras experiências sexuais já eram mais tardias do que hoje porque você tinha menos informação. Hoje, um garoto de dez anos está sabendo o que um garoto de 15 daquela época não sabia. E a formação sexual se dava com prostitutas ou com empregadas domésticas, que faziam um pouco prostituição também. No meu caso foi isso. Minha primeira mulher era uma empregada que dava... Bem, ela não dava, cobrava, baratinho até. Era a empregada de um amigo da turma que tinha essas liberalidades. A gente sabia, e tinha aquela fila. E depois, as prostitutas e tal. Namoro não chegava às vias de fato. Eu tive várias namoradas com quem rolava uma forma qualquer de sexo, mas incompleto. Já depois, nos anos 60, eu já com 20 anos, começou uma certa liberação. Então, que bom que hoje a questão é mais aberta, menos traumática, menos hipócrita. O que me preocupa é que às vezes parece que há um certo enfado; que não existe mais a vibração que existia pela própria facilidade com que as coisas são obtidas. Pode ser. Mas pode ser impressão minha.

 

Posso estar acompanhado, mas, certamente, gosto de estar sozinho também. Há momentos em que eu quero estar sozinho.

 

Acredito que, naturalmente, na canção popular, a tendência seja ir ficando mais lento, até deixar de existir. Acho que uma hora vá me desinteressar por fazer música. Talvez esteja me preparando para isso ao me dedicar à Literatura. Acredito mesmo que música popular seja uma arte de juventude. O que componho é com o que me resta de juventude, que já não é tanto. E vai acabar. Vou ficar velho, caduco e vou morrer.

 

 

 

 

Meu Pitaquinho

 

 

 

Sim, eu faço coro e grifo que

devagar não se vai longe.

E caranguejola quimerizar que

bem-fada levar vida de monge.

 

Mas correr atrás do tempo

não bota fim na esp'rança.

No Tempo, não há antetempo;

 

Quem espera nunca alcança.

Esperar é coisa de zé-piegas,

 

É preciso, já, meter a verônica

– desde que não seja às cegas –

senão a pasmaceira fica crônica!

 

 

 

 

 

 

______

Notas:

1. Pierre Bonnard (Fontenay-aux-Roses, 3 de outubro de 1867 – Le Cannet, 23 de janeiro de 1947) foi um pintor francês.

2. Esta é a grande e augusta questão da liberdade: termos liberdade. Simplesmente. E claro, arcar responsavelmente com esta liberdade.

3. Pietro Aretino (Arezzo, Itália, 20 de abril de 1492 – Veneza, Itália, 21 de outubro de 1556) foi um escritor, poeta e dramaturgo italiano. É autor de Diálogo das Prostitutas, tendo sido conhecido no seu tempo pelo nome de secretário do mundo. Libelista terrível e sem escrúpulos, vendia a pena a quem melhor pagasse. Protegido e respeitado pelos nobres, que temiam a sua grande influência pessoal e a mordacidade dos seus escritos, Aretino desenvolveu em Roma e depois em Veneza uma carreira de panfletário licencioso, deixando principalmente em Cartas (1537 – 1557) o registro da vida cultural e política de sua época. Em Juízos (1534), analisa a instituição cortesã como um fenômeno de prostituição física e moral e como efeito típico de uma sociedade em crise. Tradução da citação de Chico: Aqui jaz Aretino, poeta toscano/Que falou mal de todos, menos de Cristo./Desculpou-se dizendo: não o conheço.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://fijisharkdiving.blogspot.com/
2010/06/dancing-with-devil.html

http://brasillivreedemocrata.blogspot.com/
2011/01/consideracoes-sobre-o-fanatismo.html

http://s739.photobucket.com/

http://www.makingfriends.com/
preschool/fruit_hands.htm

http://www.chicobuarque.com.br/texto/index.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/Pietro_Aretino

http://rogsil.wordpress.com/

http://lisandronogueira.blogspot.com/2011
/01/chico-buarque-entrevista-cheia-de.html

http://www.outraspalavras.net/2010/04/29/
caro-amigo-as-coisas-estao-melhorando/

http://www.anschauenoderauch.net/
watch/?v=nU0XBZAQ7sg

http://www.clker.com/
clipart-molotov-cocktail.html

http://angeloitalo.blogspot.com/
2010/04/multidao.html

http://spleenbored-minhaspoesiasfavoritas.
blogspot.com/2009_11_01_archive.html

http://www.ronaud.com/frases-
pensamentos-citacoes-de/chico-buarque

http://www.aids.gov.br/es/node/14099

http://www.chicobuarque.com.br/texto/
mestre.asp?pg=entrevistas/bundas.htm

http://biblioteka.hd1.com.br/
Budapeste_Chico_Buarque.pdf

ftp://ftp.usjt.br/pub/revistaic/pag35_edi01.pdf

http://peramblogando.blogspot.com/
2011/02/frases-antologicas-chico-buarque.html

http://www.frazz.com.br/autor/
chico_buarque_de_holanda/1391

http://www.geneton.com.br/
archives/000041.html

http://www.frasesfamosas.com.br/
de/chico-buarque.html

http://pensador.uol.com.br/
frases_de_chico_buarque_de_holanda/2/

http://pensador.uol.com.br/
frases_de_chico_buarque_de_holanda/

http://pensador.uol.com.br/
autor/Chico_Buarque_de_Holanda/

http://pt.wikiquote.org/
wiki/Chico_Buarque

 

Música de fundo:

Sonho Impossível
Composição: Joe Darion e Mitch Leigh
Versão em português: Chico Buarque
Interpretação: Maria Bethania

Fonte:

http://www.4shared.com/get/RilMVLPx/
Maria_Bethania_-_Sonho_impossi.html