Prezado
e Digno Deus,
Saudações
Universais.
Primeiro,
devo confessar que, por mais que eu me esforce, não consigo encontrar
uma prova cabal, efetiva, de Sua existência, seja ela considerada
transcendente ou imanente. Mesmo que se argumente que tudo o que muda é
mudado por Outro e que este Outro Primordial seja Você; que tudo o
que se move é movido por Outro e que este Outro Primordial seja Você;
que não há coisa alguma que seja causa de si mesma, e que,
portanto, exista, então, uma Causa Primeira que tudo causou e que
não foi causada, e que esta Causa Primeira é Você; que
o que existe só pode começar a existir e ter existência
em virtude de um Outro Ente já existente, e que o Causador absolutamente
necessário da existência dos demais entes seja Você;
que, conforme diz Aristóteles, a Verdade Máxima é a
Máxima Entidade, e que, por decorrência dialética, o
Bem Máximo e a Beleza Máxima derivem de Você; e, que,
finalmente, exista um Ser Inteligente, Único e Incriado (e que, se
foi criado, foi criado por Si-Mesmo) que dirige todas as coisas naturais
a seu fim próprio, e que este Ser Inteligente seja Você, ainda
assim, estas provas não me convencem, simplesmente porque derivam
tão-somente de um esforço racional, objetivo, cogitativo,
cuja base é a cultura pessoal-experiencial de quem as propõe.
É
óbvio, e sei que Você concordará comigo, que da mesma
forma que não se pode cientificamente provar que Você não
exista, também não se pode provar a Sua existência apenas
fideisticamente. Mas, nem a razão (seja dianóica, seja noética)
nem a fé têm argumentos para mim, ainda que tudo o que se seguirá
seja estritamente racional e constatável. O fato é que eu
simplesmente não consigo compreender a Sua existência, e como
não consigo compreender a Sua existência, me classifico como
um Místico Ateísta.
Por
todos os motivos que exporei a seguir, é-me difícil aceitar
e acreditar que Você possa ter Se autogerado, que exista desde sempre,
e que continuará a existir para sempre. Entretanto, se Você
existe, se é mesmo Deus, e se é oniparente, onipresente, onissapiente,
onividente e onipoderoso, como dizem os que acreditam em Você, deverá
ser, quero crer, também onibondoso, onitolerante, onicondolente e
onibenevolente. Assim sendo, se eu estiver equivocado, Você me perdoará
pela minha ignorância, pois compassivamente compreenderá os
motivos que me levaram a escrever esta despretensiosa carta, e, mais do
que isto, pensará um pouquinho no seu conteúdo, já
que não é só uma aflição minha, mas de
muitos indivíduos sinceros que supostamente Você gerou. Quem
sabe, de alguma forma, Você poderá dar um jeito divino de esclarecer
as minhas dúvidas e a de todos os outros que têm as mesmas
dúvidas.
Em
segundo lugar, seja como for e apesar de tudo, não obstante Sua reiterada
onisciência, quero que Você saiba que respeito todos aqueles
que acreditam em Você e que, em seu Nome, construíram sistemas
religiosos através dos tempos. Se eles estiverem certos, bom para
eles e para os que os seguiram; se estiverem equivocados, não serei
eu que os julgarei. Deus: posso não crer em Sua existência,
mas, certa e convictamente, não sou um iconoclasta.
A
título de esclarecimento, abordarei tão-somente alguns poucos
motivos que me impedem de aceitar Sua existência, pois, se eu tivesse
que, argumentativamente, escrever tudo o que penso, esta carta não
teria fim. Também não me preocuparei com a ordem histórica
dos fatos e dos acontecimentos; deixarei que as coisas corram ao sabor da
minha memória e das minhas inquietações, tudo em forma
de perguntas para as quais jamais encontrei uma resposta religiosa que me
satisfizesse.
Para
começar, no tempo presente, por que Você permite que os homens,
criados, segundo dizem, por Você, à sua imagem e semelhança,
possam estar alucinada e progressivamente destruindo e esgotando a Terra
e os seres que a habitam, também criações Suas, em
todos os quadrantes? Poluições de toda ordem, aquecimento
globalizante e desflorestações em todos os continentes são
apenas três exemplos desta minha primeira incompreensão. Por
favor, não argumente que Você dotou o homem de livre-arbítrio,
e que, por isto, nada pode fazer. Contraponho argumentando que um livre-arbítrio
recheado de ignorância e de egoísmo, se serve para alguma coisa,
serve para muito pouco, e este pouco, geralmente, só leva de arrasto
perversidades e incongruências. Perdoe-me: criar os homens para que
usem sua possibilidade de decidir e de escolher em função
da própria vontade e, em princípio, isentos de qualquer condicionamento,
da forma mais absurda e da maneira mais destrutiva, foi um projeto muito
mal elaborado e uma implementação irresponsável e temerária.
Agora, se o homem é um mero esboço provisório, isto,
para mim, foi uma perda de tempo, mais do que uma inconseqüência,
porque em Sua onissapiência Você poderia muito bem ter fabricado
algo muito melhor. Não estou julgando Seus motivos, mas eu não
consigo compreender como um presumido Ser Perfeito, oni-tudo-que-é-bom-e-belo,
possa ter produzido ou deixar que fosse produzida tanta imperfeição.
E se eu também fui criado por Você, coisa que não consigo
atinar com o porquê, minha falta de compreensão, apesar de
eu muito me esforçar, é Sua responsabilidade, ainda que eu
admita que uma parte da responsabilidade de todas estas coisas seja minha
também.
Aquecimento
Global
Por
que, no passado, Você permitiu que, em seu Nome, se fizessem as cruzadas
e a inquisição? Quanto à inquisição,
em primeiro lugar, Você sabe que eu não tenho a mínima
vocação para censor. Portanto, por exemplo, quanto ao manual
de diagnóstico para bruxas, o Malleus Maleficarum (Martelo
das Bruxas), divulgado em 1.487 por dois de seus piores cães, só
direi que foi uma obra-cocô de muito mau gosto. Cães de Francisco
amorosos, tudo bem; mas, inquisidores perversos cães de deus metidos
a escritores é dose para mamute! De passagem, só para que
Você saiba que eu sei que existe, outra obra-cocô fedorentérrima
é o livrinho Protocolos dos Sábios do Sião,
que de tão perversa é apócrifa. Estas coisas me horrorizam
e me pinicam as entranhas! Deus, eu fico a me perguntar: como a Sua onimagnanimidade
pode se compatibilizar com estas desconexões, impropriedades e inconveniências?
Quanto às cruzadas, por que a antiga Terra Santa e a cidade de Jerusalém
tinham que estar sob a soberania dos cristãos? Cristãos, judeus,
muçulmanos, ateus e todos os outros não são, todos,
criações Suas? Não são todos seus filhos? Meus
irmãos eu sei que são. Voltando à maldita inquisição,
de infeliz representação na Terra, por que, inquisitorialmente,
supliciantemente, torturar e punir pessoas por heresia? Por que Você
permitiu que isto acontecesse? Se eu tivesse nascido antes de 1.826, talvez
eu-Ateu também tivesse sido assado na fogueira católica. Deus:
longe de mim querer ensinar o padre-nosso ao vigário, mas na Vulgata,
Deuteronômio, XXVII, 24, está escrito que é
maledictus qui clam percusserit
proximum suum.
Maldito o que à traição ferir o seu próximo.
Já na Al-Fátiha, primeira Surata do Alcorão
Sagrado (A Abertura), está escrito: Em
nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. Louvado seja Deus, Senhor do
Universo... Guia-nos à Senda Reta...
Eu não entendo como Você pôde ter criado tantos traidores
da sua misericórdia, da sua clemência, da Beleza Cósmica
e do Amor Universal. Isto, para mim, é um mistério, ao mesmo
tempo, insondável, inexplicável e incompreensível!
Mas eu não acho que seja tarde. Guia-nos
– traidores
e cumpridores
–
à Senda Reta...
Mas
ainda que o Tribunal do Santo Ofício fosse apenas uma entidade jurídica
que engenhosa e habilmente não executava as penas, Você sabe
muito bem que o resultado do processo inquisitório era sádica
e sangrentamente entregue ao poder régio para que, se fosse o caso,
aplicasse da prisão perpétua à pena capital, isto porque
as penas mais brandas o Tribunal das Trevas (hoje, Congregação
para a Doutrina da Fé, que como disse Paulo VI, em 1.965, agora
nos armamos melhor para a defesa da fé, promovendo a doutrina)
se incumbia de fazer cumprir. Isto permitirá que a Igreja católica
argua, até hoje, em seu favor, de forma absolutamente tergiversante,
que jamais matou ou mandou matar uma só pessoa. Está bem,
seja; mas permitiu que fossem mortas milhares de pessoas por favor.
Você também sabe perfeitamente bem que a inquisição
espanhola tornou-se uma das mais tenebrosas realizações da
Humanidade. Em Castela, na década de 1.480, diz-se que mais de 1.500
vítimas foram queimadas na estaca em conseqüência de falso
testemunho, muitas delas sem que fosse identificada a origem da acusação
contra elas. Como Você permitiu tudo isto? Em Seu Nome? Como Você
criou, por exemplo, um Tomás de Torquemada – Grande Inquisidor
de Castela – que, sob suas ordens, foram julgadas, torturadas e executadas
cerca de 20.000 pessoas? Você deve saber oniscientemente bem que o
Santo Ofício, enquanto existiu, indiretamente queimou mais de 1 milhão
de pessoas, particularmente judeus, cristãos-novos, muçulmanos
convertidos, médicos, cientistas e os apontados como bruxos
e hereges. Afinal, esses tais eram ou não também seus filhos?
Ainda
bem, Deus, que a última feiticeira foi torrada viva em 1.788,
e o último herege teve a sua vez em 1.826. Todavia, não
estou julgando Seus motivos, mas eu não consigo compreender como
um presumido Ser Perfeito, oni-tudo-que-é-bom-e-belo, possa
ter produzido ou deixar que fosse produzida tanta imperfeição.
E se eu também fui criado por Você, coisa que não consigo
atinar com o porquê, minha falta de compreensão, apesar de
eu muito me esforçar, é Sua responsabilidade, ainda que eu
admita que uma parte da responsabilidade de todas estas coisas seja minha
também.
Auto-de-fé
Por
que Você autorizou que o Genocídio perpetrado em Ruanda, em
1994, matasse, a facões e porretes, mais de 900 mil tútsis
em apenas 100 dias?
A ONU sabia o que estava acontecendo,
foi alertada, mas houve um esforço consciente do Ocidente em ignorar.
Isto, Deus, foi dito por Keir Pearson, roteirista do filme Hotel Ruanda.
Não ter havido qualquer tipo de intervenção de órgãos
de segurança mundial e a omissão inconcebível da ONU
quanto à possibilidade de salvamento das vítimas é
uma coisa. Agora, Você deixar que tudo isto tenha acontecido é
outra. Não estou julgando Seus motivos, mas eu não consigo
compreender como um presumido Ser Perfeito, oni-tudo-que-é-bom-e-belo,
possa ter produzido ou deixar que fosse produzida tanta imperfeição.
E se eu também fui criado por Você, coisa que não consigo
atinar com o porquê, minha falta de compreensão, apesar de
eu muito me esforçar, é Sua responsabilidade, ainda que eu
admita que uma parte da responsabilidade de todas estas coisas seja minha
também.
Caveiras
da Violência
Um
pouco mais atrás no tempo histórico, por que você não
impediu que acontecessem a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais? Como você
permitiu que Hitler e sua caterva fizessem o que fizeram? Por que você
permitiu que Hiroshima e Nagazaki fossem destruídas? Você sabia
que na Segunda Grande Guerra, que foi muito pior do que a Primeira, morreram
cerca de 50 milhões de pessoas da coalizão aliada e aproximadamente
22 milhões de pessoas do Eixo? Afinal, todos eram Seus filhos. Você
sabia que o Holocausto, comandado pelas autoridades nazis, como parte da
solução final para o problema judeu, levou
ao genocídio de cerca de seis milhões de judeus nos campos
de concentração, para além de outras pessoas consideradas
indesejáveis, como membros da etnia cigana, eslavos, homossexuais,
portadores de deficiência, Testemunhas de Jeová e dissidentes
políticos? Afinal, todos eram Seus filhos. Você sabia que milhares
de judeus foram usados como cobaias em diversas experiências –
particularmente sob a supervisão direta do Doutor Anjo
da Morte Josef Mengele, título posteriormente revogado pelas
Universidades de Frankfurt e de Munique, que injetava tinta azul nos olhos
de crianças, unia as veias de gêmeos tentando criar siameses
artificialmente, deixava pessoas em tanques de água gelada para testar
suas resistências ante à hipotermia, submetia pessoas à
mudanças de pressão extremas sob as quais os indivíduos
morriam com horrorosas convulsões por excessiva pressão intracraniana,
esterilizava em massa, amputava membros de prisioneiros e coletava milhares
de órgãos para fazer macabras experiências sem qualquer
valor científico – no complexo Auschwitz-Birkenau, o que acarretou
colateralmente a propagação de doenças como o tifo
e a tuberculose? Afinal, todos eram Seus filhos. Não estou julgando
Seus motivos, mas eu não consigo compreender como todo este mal possa
ser compatível com a existência de um Deus, segundo dizem,
oniparente, onipresente, onissapiente, onividente, onipoderoso onibondoso,
onitolerante, onicondolente e onibenevolente et cetera. E se eu
também fui criado por Você, minha falta de compreensão
é Sua responsabilidade, ainda que eu admita que uma parte da responsabilidade
de todas estas coisas seja minha também.
Insanidade
Um
pouco depois, como Você – Oh!, Deus! – consentiu a Primeira
Guerra da Indochina, que aconteceu entre 1946 e 1954, a Guerra da Coréia,
travada entre 1950 e 1953, a Guerra da Argélia, entre 1954 e 1962,
a Guerra Colonial Portuguesa, entre 1961 e 1974, a Guerra do Vietnã,
ocorrida no Sudeste Asiático entre 1959 e 1975, a invasão-ocupação
soviética do Afeganistão, de 1979 a 1989, a Guerra do Iraque,
que começou em 20 de março de 2003 com a Invasão do
Iraque liderada pelos Estados Unidos... Faltaram muitas, eu sei. Mas, como
Você consentiu tudo isto? Não estou julgando Seus motivos,
mas eu não consigo compreender como um presumido Ser Perfeito, oni-tudo-que-é-bom-e-belo,
possa ter produzido ou deixar que fosse produzida tanta imperfeição.
E se eu também fui criado por Você, coisa que não consigo
atinar com o porquê, minha falta de compreensão, apesar de
eu muito me esforçar, é Sua responsabilidade, ainda que eu
admita que uma parte da responsabilidade de todas estas coisas seja minha
também.
Vietnã-Napalm
Eu
poderia ficar aqui a argumentar até o Sol raiar. Exemplos é
que não faltam, particularmente as deformidades ou imperfeições
inatas. Natimortos, cegos, surdos e mudos de nascença, Anemia Falciforme,
Fibrose Cística, Fenilcetonúria, Tirosinemia, Homocistinúria
e Síndrome de Down ou Trissomia do Cromossomo 21 são exemplos
de erros inatos do metabolismo, enfermidades genéticas ou doenças
congênitas. Ora, se os seres foram todos criados à sua imagem
e semelhança, ab absurdo, poder-se-ia admitir que em Você
estão, em potência, fermentando todas estas desarmonias? Sim
ou não? Se não, qual a origem de todas elas? Afinal, dizem
as pessoas, ninguém pede para nascer; logo, nascer com uma carga
deste tamanho é um desajustamento impiedoso.
Mas
quero, pelo menos, ainda, para dar um fim a esta carta – que não
deveria ter sido escrita – falar da fome e da miséria. Em 1974,
durante a Conferência Mundial sobre Alimentação, as
Nações Unidas estabeleceram que todo
homem, toda mulher e toda criança têm o direito inalienável
de ser livres da fome e da desnutrição…
O acesso ao alimento, sempre, e não apenas em certos momentos, por
todos os seres-no-mundo, deve ser de tal forma que propicie uma
vida sadia, ativa e produtiva. Oh! Deus! Não é isto o que
se vê! Em um trecho da Carta Encíclica Redemptor Hominis,
de João Paulo II, está escrito: