CARTA A DEUS
(a carta que não deveria ter sido escrita)

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Prezado e Digno Deus,

Saudações Universais.

 

 

Primeiro, devo confessar que, por mais que eu me esforce, não consigo encontrar uma prova cabal, efetiva, de Sua existência, seja ela considerada transcendente ou imanente. Mesmo que se argumente que tudo o que muda é mudado por Outro e que este Outro Primordial seja Você; que tudo o que se move é movido por Outro e que este Outro Primordial seja Você; que não há coisa alguma que seja causa de si mesma, e que, portanto, exista, então, uma Causa Primeira que tudo causou e que não foi causada, e que esta Causa Primeira é Você; que o que existe só pode começar a existir e ter existência em virtude de um Outro Ente já existente, e que o Causador absolutamente necessário da existência dos demais entes seja Você; que, conforme diz Aristóteles, a Verdade Máxima é a Máxima Entidade, e que, por decorrência dialética, o Bem Máximo e a Beleza Máxima derivem de Você; e, que, finalmente, exista um Ser Inteligente, Único e Incriado (e que, se foi criado, foi criado por Si-Mesmo) que dirige todas as coisas naturais a seu fim próprio, e que este Ser Inteligente seja Você, ainda assim, estas provas não me convencem, simplesmente porque derivam tão-somente de um esforço racional, objetivo, cogitativo, cuja base é a cultura pessoal-experiencial de quem as propõe.

 

É óbvio, e sei que Você concordará comigo, que da mesma forma que não se pode cientificamente provar que Você não exista, também não se pode provar a Sua existência apenas fideisticamente. Mas, nem a razão (seja dianóica, seja noética) nem a fé têm argumentos para mim, ainda que tudo o que se seguirá seja estritamente racional e constatável. O fato é que eu simplesmente não consigo compreender a Sua existência, e como não consigo compreender a Sua existência, me classifico como um Místico Ateísta.

 

Por todos os motivos que exporei a seguir, é-me difícil aceitar e acreditar que Você possa ter Se autogerado, que exista desde sempre, e que continuará a existir para sempre. Entretanto, se Você existe, se é mesmo Deus, e se é oniparente, onipresente, onissapiente, onividente e onipoderoso, como dizem os que acreditam em Você, deverá ser, quero crer, também onibondoso, onitolerante, onicondolente e onibenevolente. Assim sendo, se eu estiver equivocado, Você me perdoará pela minha ignorância, pois compassivamente compreenderá os motivos que me levaram a escrever esta despretensiosa carta, e, mais do que isto, pensará um pouquinho no seu conteúdo, já que não é só uma aflição minha, mas de muitos indivíduos sinceros que supostamente Você gerou. Quem sabe, de alguma forma, Você poderá dar um jeito divino de esclarecer as minhas dúvidas e a de todos os outros que têm as mesmas dúvidas.

 

Em segundo lugar, seja como for e apesar de tudo, não obstante Sua reiterada onisciência, quero que Você saiba que respeito todos aqueles que acreditam em Você e que, em seu Nome, construíram sistemas religiosos através dos tempos. Se eles estiverem certos, bom para eles e para os que os seguiram; se estiverem equivocados, não serei eu que os julgarei. Deus: posso não crer em Sua existência, mas, certa e convictamente, não sou um iconoclasta.

 

A título de esclarecimento, abordarei tão-somente alguns poucos motivos que me impedem de aceitar Sua existência, pois, se eu tivesse que, argumentativamente, escrever tudo o que penso, esta carta não teria fim. Também não me preocuparei com a ordem histórica dos fatos e dos acontecimentos; deixarei que as coisas corram ao sabor da minha memória e das minhas inquietações, tudo em forma de perguntas para as quais jamais encontrei uma resposta religiosa que me satisfizesse.

 

Para começar, no tempo presente, por que Você permite que os homens, criados, segundo dizem, por Você, à sua imagem e semelhança, possam estar alucinada e progressivamente destruindo e esgotando a Terra e os seres que a habitam, também criações Suas, em todos os quadrantes? Poluições de toda ordem, aquecimento globalizante e desflorestações em todos os continentes são apenas três exemplos desta minha primeira incompreensão. Por favor, não argumente que Você dotou o homem de livre-arbítrio, e que, por isto, nada pode fazer. Contraponho argumentando que um livre-arbítrio recheado de ignorância e de egoísmo, se serve para alguma coisa, serve para muito pouco, e este pouco, geralmente, só leva de arrasto perversidades e incongruências. Perdoe-me: criar os homens para que usem sua possibilidade de decidir e de escolher em função da própria vontade e, em princípio, isentos de qualquer condicionamento, da forma mais absurda e da maneira mais destrutiva, foi um projeto muito mal elaborado e uma implementação irresponsável e temerária. Agora, se o homem é um mero esboço provisório, isto, para mim, foi uma perda de tempo, mais do que uma inconseqüência, porque em Sua onissapiência Você poderia muito bem ter fabricado algo muito melhor. Não estou julgando Seus motivos, mas eu não consigo compreender como um presumido Ser Perfeito, oni-tudo-que-é-bom-e-belo, possa ter produzido ou deixar que fosse produzida tanta imperfeição. E se eu também fui criado por Você, coisa que não consigo atinar com o porquê, minha falta de compreensão, apesar de eu muito me esforçar, é Sua responsabilidade, ainda que eu admita que uma parte da responsabilidade de todas estas coisas seja minha também.

 

 

 

 

Aquecimento Global

 

 

 

Por que, no passado, Você permitiu que, em seu Nome, se fizessem as cruzadas e a inquisição? Quanto à inquisição, em primeiro lugar, Você sabe que eu não tenho a mínima vocação para censor. Portanto, por exemplo, quanto ao manual de diagnóstico para bruxas, o Malleus Maleficarum (Martelo das Bruxas), divulgado em 1.487 por dois de seus piores cães, só direi que foi uma obra-cocô de muito mau gosto. Cães de Francisco amorosos, tudo bem; mas, inquisidores perversos cães de deus metidos a escritores é dose para mamute! De passagem, só para que Você saiba que eu sei que existe, outra obra-cocô fedorentérrima é o livrinho Protocolos dos Sábios do Sião, que de tão perversa é apócrifa. Estas coisas me horrorizam e me pinicam as entranhas! Deus, eu fico a me perguntar: como a Sua onimagnanimidade pode se compatibilizar com estas desconexões, impropriedades e inconveniências? Quanto às cruzadas, por que a antiga Terra Santa e a cidade de Jerusalém tinham que estar sob a soberania dos cristãos? Cristãos, judeus, muçulmanos, ateus e todos os outros não são, todos, criações Suas? Não são todos seus filhos? Meus irmãos eu sei que são. Voltando à maldita inquisição, de infeliz representação na Terra, por que, inquisitorialmente, supliciantemente, torturar e punir pessoas por heresia? Por que Você permitiu que isto acontecesse? Se eu tivesse nascido antes de 1.826, talvez eu-Ateu também tivesse sido assado na fogueira católica. Deus: longe de mim querer ensinar o padre-nosso ao vigário, mas na Vulgata, Deuteronômio, XXVII, 24, está escrito que é maledictus qui clam percusserit proximum suum. Maldito o que à traição ferir o seu próximo. Já na Al-Fátiha, primeira Surata do Alcorão Sagrado (A Abertura), está escrito: Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. Louvado seja Deus, Senhor do Universo... Guia-nos à Senda Reta... Eu não entendo como Você pôde ter criado tantos traidores da sua misericórdia, da sua clemência, da Beleza Cósmica e do Amor Universal. Isto, para mim, é um mistério, ao mesmo tempo, insondável, inexplicável e incompreensível! Mas eu não acho que seja tarde. Guia-nos traidores e cumpridores – à Senda Reta...

 

Mas ainda que o Tribunal do Santo Ofício fosse apenas uma entidade jurídica que engenhosa e habilmente não executava as penas, Você sabe muito bem que o resultado do processo inquisitório era sádica e sangrentamente entregue ao poder régio para que, se fosse o caso, aplicasse da prisão perpétua à pena capital, isto porque as penas mais brandas o Tribunal das Trevas (hoje, Congregação para a Doutrina da Fé, que como disse Paulo VI, em 1.965, agora nos armamos melhor para a defesa da fé, promovendo a doutrina) se incumbia de fazer cumprir. Isto permitirá que a Igreja católica argua, até hoje, em seu favor, de forma absolutamente tergiversante, que jamais matou ou mandou matar uma só pessoa. Está bem, seja; mas permitiu que fossem mortas milhares de pessoas por favor. Você também sabe perfeitamente bem que a inquisição espanhola tornou-se uma das mais tenebrosas realizações da Humanidade. Em Castela, na década de 1.480, diz-se que mais de 1.500 vítimas foram queimadas na estaca em conseqüência de falso testemunho, muitas delas sem que fosse identificada a origem da acusação contra elas. Como Você permitiu tudo isto? Em Seu Nome? Como Você criou, por exemplo, um Tomás de Torquemada – Grande Inquisidor de Castela – que, sob suas ordens, foram julgadas, torturadas e executadas cerca de 20.000 pessoas? Você deve saber oniscientemente bem que o Santo Ofício, enquanto existiu, indiretamente queimou mais de 1 milhão de pessoas, particularmente judeus, cristãos-novos, muçulmanos convertidos, médicos, cientistas e os apontados como bruxos e hereges. Afinal, esses tais eram ou não também seus filhos?

 

Ainda bem, Deus, que a última feiticeira foi torrada viva em 1.788, e o último herege teve a sua vez em 1.826. Todavia, não estou julgando Seus motivos, mas eu não consigo compreender como um presumido Ser Perfeito, oni-tudo-que-é-bom-e-belo, possa ter produzido ou deixar que fosse produzida tanta imperfeição. E se eu também fui criado por Você, coisa que não consigo atinar com o porquê, minha falta de compreensão, apesar de eu muito me esforçar, é Sua responsabilidade, ainda que eu admita que uma parte da responsabilidade de todas estas coisas seja minha também.

 

 

 

Auto-de-fé

 

Auto-de-fé

 

 

Por que Você autorizou que o Genocídio perpetrado em Ruanda, em 1994, matasse, a facões e porretes, mais de 900 mil tútsis em apenas 100 dias? A ONU sabia o que estava acontecendo, foi alertada, mas houve um esforço consciente do Ocidente em ignorar. Isto, Deus, foi dito por Keir Pearson, roteirista do filme Hotel Ruanda. Não ter havido qualquer tipo de intervenção de órgãos de segurança mundial e a omissão inconcebível da ONU quanto à possibilidade de salvamento das vítimas é uma coisa. Agora, Você deixar que tudo isto tenha acontecido é outra. Não estou julgando Seus motivos, mas eu não consigo compreender como um presumido Ser Perfeito, oni-tudo-que-é-bom-e-belo, possa ter produzido ou deixar que fosse produzida tanta imperfeição. E se eu também fui criado por Você, coisa que não consigo atinar com o porquê, minha falta de compreensão, apesar de eu muito me esforçar, é Sua responsabilidade, ainda que eu admita que uma parte da responsabilidade de todas estas coisas seja minha também.

 

 

 

Ruanda

 

Caveiras da Violência

 

 

 

Um pouco mais atrás no tempo histórico, por que você não impediu que acontecessem a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais? Como você permitiu que Hitler e sua caterva fizessem o que fizeram? Por que você permitiu que Hiroshima e Nagazaki fossem destruídas? Você sabia que na Segunda Grande Guerra, que foi muito pior do que a Primeira, morreram cerca de 50 milhões de pessoas da coalizão aliada e aproximadamente 22 milhões de pessoas do Eixo? Afinal, todos eram Seus filhos. Você sabia que o Holocausto, comandado pelas autoridades nazis, como parte da solução final para o problema judeu, levou ao genocídio de cerca de seis milhões de judeus nos campos de concentração, para além de outras pessoas consideradas indesejáveis, como membros da etnia cigana, eslavos, homossexuais, portadores de deficiência, Testemunhas de Jeová e dissidentes políticos? Afinal, todos eram Seus filhos. Você sabia que milhares de judeus foram usados como cobaias em diversas experiências – particularmente sob a supervisão direta do Doutor Anjo da Morte Josef Mengele, título posteriormente revogado pelas Universidades de Frankfurt e de Munique, que injetava tinta azul nos olhos de crianças, unia as veias de gêmeos tentando criar siameses artificialmente, deixava pessoas em tanques de água gelada para testar suas resistências ante à hipotermia, submetia pessoas à mudanças de pressão extremas sob as quais os indivíduos morriam com horrorosas convulsões por excessiva pressão intracraniana, esterilizava em massa, amputava membros de prisioneiros e coletava milhares de órgãos para fazer macabras experiências sem qualquer valor científico – no complexo Auschwitz-Birkenau, o que acarretou colateralmente a propagação de doenças como o tifo e a tuberculose? Afinal, todos eram Seus filhos. Não estou julgando Seus motivos, mas eu não consigo compreender como todo este mal possa ser compatível com a existência de um Deus, segundo dizem, oniparente, onipresente, onissapiente, onividente, onipoderoso onibondoso, onitolerante, onicondolente e onibenevolente et cetera. E se eu também fui criado por Você, minha falta de compreensão é Sua responsabilidade, ainda que eu admita que uma parte da responsabilidade de todas estas coisas seja minha também.

 

 

 

 

Insanidade

 

 

 

Um pouco depois, como Você – Oh!, Deus! – consentiu a Primeira Guerra da Indochina, que aconteceu entre 1946 e 1954, a Guerra da Coréia, travada entre 1950 e 1953, a Guerra da Argélia, entre 1954 e 1962, a Guerra Colonial Portuguesa, entre 1961 e 1974, a Guerra do Vietnã, ocorrida no Sudeste Asiático entre 1959 e 1975, a invasão-ocupação soviética do Afeganistão, de 1979 a 1989, a Guerra do Iraque, que começou em 20 de março de 2003 com a Invasão do Iraque liderada pelos Estados Unidos... Faltaram muitas, eu sei. Mas, como Você consentiu tudo isto? Não estou julgando Seus motivos, mas eu não consigo compreender como um presumido Ser Perfeito, oni-tudo-que-é-bom-e-belo, possa ter produzido ou deixar que fosse produzida tanta imperfeição. E se eu também fui criado por Você, coisa que não consigo atinar com o porquê, minha falta de compreensão, apesar de eu muito me esforçar, é Sua responsabilidade, ainda que eu admita que uma parte da responsabilidade de todas estas coisas seja minha também.

 

 

 

 

Vietnã-Napalm

 

 

Eu poderia ficar aqui a argumentar até o Sol raiar. Exemplos é que não faltam, particularmente as deformidades ou imperfeições inatas. Natimortos, cegos, surdos e mudos de nascença, Anemia Falciforme, Fibrose Cística, Fenilcetonúria, Tirosinemia, Homocistinúria e Síndrome de Down ou Trissomia do Cromossomo 21 são exemplos de erros inatos do metabolismo, enfermidades genéticas ou doenças congênitas. Ora, se os seres foram todos criados à sua imagem e semelhança, ab absurdo, poder-se-ia admitir que em Você estão, em potência, fermentando todas estas desarmonias? Sim ou não? Se não, qual a origem de todas elas? Afinal, dizem as pessoas, ninguém pede para nascer; logo, nascer com uma carga deste tamanho é um desajustamento impiedoso.

 

Mas quero, pelo menos, ainda, para dar um fim a esta carta – que não deveria ter sido escrita – falar da fome e da miséria. Em 1974, durante a Conferência Mundial sobre Alimentação, as Nações Unidas estabeleceram que todo homem, toda mulher e toda criança têm o direito inalienável de ser livres da fome e da desnutrição… O acesso ao alimento, sempre, e não apenas em certos momentos, por todos os seres-no-mundo, deve ser de tal forma que propicie uma vida sadia, ativa e produtiva. Oh! Deus! Não é isto o que se vê! Em um trecho da Carta Encíclica Redemptor Hominis, de João Paulo II, está escrito:

 

A amplitude do fenômeno põe em questão as estruturas e os mecanismos financeiros, monetários, produtivos e comerciais, que, apoiando-se em diversas pressões políticas, regem a economia mundial: eles demonstram-se como que incapazes quer para reabsorver as situações sociais injustas, herdadas do passado, quer para fazer face aos desafios urgentes e às exigências éticas do presente. Submetendo o homem às tensões por ele mesmo criadas, dilapidando, com um ritmo acelerado, os recursos materiais e energéticos e comprometendo o ambiente geofísico, tais estruturas dão azo a que se estendam incessantemente as zonas de miséria e, junto com esta, a angústia, a frustração e a amargura... Não será fácil avançar, porém, neste difícil caminho, no caminho da indispensável transformação das estruturas da vida econômica, se não intervier uma verdadeira conversão das mentes, das vontades e dos corações. A tarefa exige a aplicação decidida de homens e de povos livres e solidários.

 

Não será fácil avançar, Deus, se Você, que tudo criou ao seu bel-prazer, segundo muitos acreditam, não quiser. Mas, se Você quiser, não será assim. Avançaremos, sim. Todavia, em Roma, em 9 de dezembro de 2008, a ONU anunciou que o número de pessoas subalimentadas, em todo o mundo, atingiu, este ano, a espantosa cifra de 963 milhões de pessoas, mais 40 milhões do que em 2007 – isto devido à subida dos preços dos alimentos. Se a população do mundo, hoje, atinge em torno de 6,5 bilhões de pessoas, mais ou menos a sexta parte não tem o que comer. Logo, Deus, em parte extremamente ponderável, a fome está associada à ganância (dos seres que Você supostamente criou), que especulam com tudo, até com a comida. Um exemplo disto, como explica Délcio César Cordeiro Rocha, é o ocorre na entressafra, período normalmente entre a segunda quinzena de maio e a última de junho no qual ocorre a transição entre as pastagens de verão e de inverno. A alimentação das vacas diminui, reduzindo a produção de leite, o que faz os preços subirem. Óleo de soja, banana, batata, tomate, hortaliças e verduras também ficam suscetíveis a aumento de preço em função das variações climáticas.

 

O quadro é pior, muito pior, se levarmos em conta que cerca de 100 milhões de pessoas estão sem teto, 1 bilhão de pessoas são analfabetas, 1,1 bilhão de pessoas vivem na mais absoluta pobreza, 1,5 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável, 150 milhões de crianças estão subnutridas, 12,9 milhões de crianças morrem, a cada ano, antes de completarem 5 anos de vida, e por aí vai. Deus, quando Você terminar de ler esta carta, 60 crianças, no Planeta que Você criou, terão morrido de desnutrição! Só na Etiópia, entre 1984 e 1986, um milhão de pessoas morreram de fome em meio a uma guerra civil! Fome e miséria para ninguém botar defeito. Como isto é possível? Como Você permite? Volto a dizer: não estou julgando Seus motivos, mas eu não consigo compreender como um presumido Ser Perfeito, oni-tudo-que-é-bom-e-belo, possa ter produzido ou deixar que fosse produzida tanta imperfeição. E se eu também fui criado por Você, coisa que não consigo atinar com o porquê, minha falta de compreensão, apesar de eu muito me esforçar, é Sua responsabilidade, ainda que eu admita que uma parte da responsabilidade de todas estas coisas seja minha também.

 

 

 

 

A Fome de Um é a Fome de Todos

 

 

 

 

 

 

 

Oh!, Deus! Perdão pela minha ignorância! Mas, depois de tudo isto, de repente, me lembrei do filósofo grego Epicuro de Samos, nascido há, mais ou menos, 2.350 anos, na Ásia Menor. Farei das palavras dele as minhas palavras para, derradeiramente, elaborar, parafraseando, o que se seguirá.

 

Deus, por que Você permitiu o mal em um mundo que, segundo todos os religiosos, Você mesmo criou? Se, por algum motivo que não consigo compreender, permitiu, por que não acaba de vez com ele? Devo supor, então, como também supôs Epicuro, que, salvo melhor juízo, ou Você quer impedir os males do mundo e não pode, ou Você pode e não quer, ou Você não quer nem pode, ou Você quer e pode, mas não consegue, o que é uma lástima. Se Você quer e não pode, como pode ser justificada a Sua onipotência? Se pode e não quer, como podem ser justificadas a Sua onibenevolência, a sua onibondade e a sua onicondolência? Se nem quer nem pode, como podem ser justificadas a Sua onissapiência e a sua onitolerância? Se pode e quer, que é a única coisa compatível com Você e com as Suas oniqualidades divinas, de onde provém, então, a existência das guerras, dos pogroms, das dissensões, dos males, da fome, da miséria, da exclusão, da dor, dos erros inatos do metabolismo, das enfermidades genéticas ou doenças congênitas et cetera e tal? E por que razão Você – Oh!, Deus! – não os impede? Circularmente, assim, volto à questão da onipoderosidade, que, por estas perguntas sem respostas até o momento, só pode ser relativa. Mas como onipoderosidade relativa é uma coisa absurda e impossível pela própria definição do conceito, é, pelo menos por isto, que eu afirmei que não consigo compreender e nem admitir a Sua Divina existência. Na verdade, este não é o motivo principal, mas qualquer argumento adicional seria como chover no molhado. Isto basta.

 

Tenho que terminar, pois esta carta já está muito longa, apesar de muitas coisas não terem sido nem abordadas nem questionadas. Mas, em meu favor, coisa que francamente não me preocupa, parafrasearei uma rubai do poeta, matemático e astrônomo iraniano Omar Khayyam:

 

 

Rubai de Omar Khayyam

 

 

Nunca murmurei uma prece;

nunca escondi meus pecados.

Ignoro se existe Justiça ou Misericórdia;

mas não desespero: sou um homem sincero.

 

 

 

Minha Paráfrase

 

 

Não me preocupo com uma Justiça Divina;

não me preocupo com uma Piedade Divina.

Peregrinando, probamente, não desespero;

sou um Místico Ateu Rosæ+Crucis sincero.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Como, conforme declarei, por mais que eu me esforce, não consigo encontrar uma prova cabal da existência de Deus, seja ela considerada transcendente ou imanente, só posso reafirmar o que venho dizendo e repetindo: tudo depende de nós, pois, categoricamente, somos responsáveis por tudo. Logo, ninguém fará por nós a tarefa que é nossa incumbência e nosso dever fazer. Ponto final.

 

 

Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2008.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fundo musical:

Pange Lingua (Tantum Ergo)
Compositor: Santo Tomás de Aquino

Fonte:

Schola Cantorum do Pontifício Col. Intern.
dos Beneditinos de S. Anselmo em Roma

 

Observações:

1ª) Recomendo a leitura do texto A Página Negra do Cristianismo: 2.000 Anos de Crimes, Terror e Repressão, de autoria de Enrico Riboni e disponibilizado para consulta no endereço:

http://svmmvmbonvm.org/doctemp/crist.htm

 

1ª) Recomendo a leitura do texto Em Nome da Luz Eterna, de autoria do Frater Velado e disponibilizado para consulta no endereço:

http://svmmvmbonvm.org/doctemp/cristcomment.htm