O BRACELETE

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

 

aria Firmina é mesmo uma mulher de muita sorte. Lindíssima em sua juventude, casou-se duas vezes e enviuvou duas vezes. Pode-se pensar em má fortuna, mas não. Ela não foi apaixonada por nenhum dos seus dois maridos, mas enquanto esteve casada foi leal a cada um e uma esposa exemplar. Os seus dois falecidos maridos foram empresários de sucesso e homens muito ricos, e deram a Maria Firmina uma vida de luxo e conforto. Foi amada e mimada pelos dois, que sempre fizeram de tudo para agradá-la e vê-la feliz. Portanto, apesar de ter enviuvado e de não ter tido filhos, ficou muito bem, pois as duas heranças que recebeu deixaram-na livre de preocupações financeiras e materiais para o resto da vida.

 

aria Firmina continua sendo até hoje uma mulher muito bonita. Por onde passa chama atenção pelo seu porte discreto, ainda que elegante e brejeiro, mas isso não contrasta em nada com sua profunda religiosidade. Foi educada na fé católica e é uma religiosa praticante e sincera. Ajuda regularmente os necessitados e sempre está pronta para ouvir as agonias dos outros e para atender e aconselhar os que a procuram. Contribui sistematicamente para diversas instituições filantrópicas e promove chás de caridade para auxiliar os despossuídos. É realmente uma mulher especial, e esse comportamento não é devido ao fato de ser religiosa. Ela é naturalmente assim e faz as coisas porque acha que deve fazer. Em suas orações jamais pediu alguma coisa em troca. Na verdade, sempre abominou os negócios com Deus. Sua frase predileta nessa matéria é: — Deus é Deus; não é agiota nem banqueiro.

 

oje, aos cinqüenta e cinco anos, decidiu que não se casará mais, para terminar seus dias trabalhando em prol dos indigentes, dos pobres e dos miseráveis. Todas as quartas-feiras à noite alguns amigos se reunem em sua casa para estudar a Santa Bíblia. Não há padres ou pastores presentes, e as discussões são orientadas no sentido do livre exame das escrituras, até porque freqüentam essas reuniões pessoas das mais diversas religiões, inclusive alguns materialistas e ateus. Não é exibido nenhum tipo de preconceito, todos opinando, ouvindo e se respeitando mutuamente. Essa prática, Maria Firmina adotou desde o seu primeiro casamento, e seus dois maridos jamais criaram qualquer obstáculo a essa demanda de Maria Firmina. Assim, há exatamente trinta e cinco anos as reuniões se sucedem quase sem nenhuma interrupção, mudando apenas os participantes, ainda que alguns sejam os mesmos das primeiras reuniões. Contudo, há uma característica singular em sua personalidade: Maria Firmina é louca por jóias. Sempre ganhou muitas jóias de seus maridos, fora as que ela mesma comprou e continua a comprar. Mas isso nunca a impediu de sempre dar aquelas peças das quais perde o interesse. A roda sempre girou da mesma forma: ganhava ou comprava as jóias, usava por um tempo e acabava dando para alguém, quando não as entregava como doação a um asilo ou orfanato. Foi exatamente essa atração irresistível por jóias e brilhantes que a fez passar por uma situação desesperadora. Por pouco não perdeu sua vida no episódio que será relatado a seguir.

 

 

 

m uma quarta-feira chuvosa de inverno, Maria Firmina precisou ir à cidade ao escritório do seu advogado. Aquilo contrariava seus hábitos, pois nas quartas-feiras ela não saía de casa para se preparar para a reunião de estudos bíblicos que aconteceria à noite. Mas a questão era urgente e ela não teve alternativa. Duplamente contrariada, pois seu motorista particular adoecera repentinamente, teve que ir de táxi. A tarde estava muito fria e úmida, e para piorar as coisas Maria Firmina estava tremendamente alergizada e espirrando muito.

 

epois de resolver as pendências que a obrigaram a sair de casa contra sua vontade, Maria Firmina voltou para sua residência. Acomodou-se no banco de trás de um táxi de uma cooperativa e relaxou por alguns instantes, na esperança de que sua alergia melhorasse. Quase chegando à casa, percebeu que no chão do automóvel havia uma pequena caixa preta. Abaixou-se para pegá-la e imediatamente a abriu para ver o que continha. Qual não foi a sua surpresa ao constatar que em seu interior havia um espetacular bracelete. Como o táxi se aproximava de sua casa, colocou o bracelete de novo na caixinha e o guardou em sua bolsa. Decidiu que não o entregaria ao motorista, pois admitiu para si que ele ficaria com ele ao invés de tentar procurar o dono para devolvê-lo. Não gostou desse seu pensamento a respeito do motorista, porém não mudou de idéia. Resolveu que depois tomaria todas as providências necessárias para encontrar o dono da jóia para poder entregá-la de volta.

 

á em casa, a primeira coisa que fez foi examinar o bracelete novamente. Sentou-se em uma poltrona de sua muito bem decorada sala, e logo constatou que se tratava de uma peça finamente trabalhada em prata. Achou meio esquisito um bracelete feito de prata, mas, mesmo assim, ele era muito bonito. Não havia brilhantes ou outras pedras incrustadas, mas, curiosamente, o bracelete, além de muito bem produzido, apresentava diversos símbolos desconhecidos para Maria Firmina. Presa por uma pequena argola também de prata, apenas uma caveira, que aparentemente parecia ser de marfim, pendia do bracelete. Ela examinou a jóia por algum tempo tentando decifrar aqueles símbolos, mas em vão. Nunca os tinha visto em lugar algum. Agora, aquela caveira pendurada era mesmo uma coisa muito esquisita. Resolveu abrir o fecho para experimentar o bracelete. Afinal, ela era louca por jóias. Apesar de estar decidida a devolver o bracelete ao seu legítimo dono, achou que não estava cometendo nenhuma indiscrição apenas por experimentá-lo.

 

 

 

 

o exato momento em que o fecho se abriu, a porta da cozinha se fechou ruidosamente e ela julgou ter ouvido um gongo seguido de um som agudo e prolongado, uma espécie de choro ou gemido angustiante em meio a algo que se abria ou fechava. Maria Firmina se assustou um pouco, mas como era profundamente religiosa não deu maior importância ao fato. De vez em quando ela tinha aquelas sensações sem que nada de mal jamais tivesse acontecido.

 

ão logo o fecho foi aberto, ela o colocou no punho para ver como o bracelete de prata ficaria em seu braço. Aí a coisa aconteceu. Imediatamente um calafrio percorreu todo o seu corpo, e a sala começou a se tornar muito fria. Uma névoa densa e acinzentada foi se formando na sua frente e gemidos pavorosos logo ecoaram por todo o ambiente. As luzes piscaram e se apagaram, diversos objetos de adorno começaram a se espatifar no chão e um fedor insuportável se espalhou pela sala. Maria Firmina ficou apavorada e petrificada com o que estava acontecendo. A névoa foi se tornando mais densa e mais escura e vultos medonhos começaram a se formar em seu interior. Os gemidos deram lugar a um alarido medonhamente infernal. Parecia que a porta do inferno fora aberta e todos os demônios do mundo estavam concentrados naquela sala. Os vultos, intimidadores e horripilantes, agora mais nítidos e cada vez mais numerosos, avançaram ameaçadoramente em sua direção. Maria Firmina tentou chamar por sua governanta, mas a voz ficou presa em sua garganta. Ela estava paralisada de horror. A algazarra era cada vez mais alta e mais aterradora. A bela senhora estava a ponto de sucumbir frente aos espectros, quando uma voz em seu interior lhe deu um comando: — Tire esse bracelete. Agora.

 

 

 

 

azendo um esforço sobre-humano, Maria Firmina conseguiu tirar o bracelete de prata deixando-o cair ao lado da poltrona em que estava sentada. Estava extenuada e respirava com extrema dificuldade. Ficou um pouco preocupada, pois há dois anos tivera um infarto e estava sentindo dores no peito. Porém, logo que ela conseguiu se livrar do bracelete, a dor passou e toda aquela cena infernal se desfez como que por encanto. A névoa e o fedor desapareceram e as luzes da sala se acenderam sozinhas. Ela olhou em volta e, perplexa, percebeu que todos os objetos da sala estavam nos seus devidos lugares. Nada havia se quebrado. Um último gemido pavoroso ressoou ao longe e tudo voltou à normalidade. Maria Firmina resolveu olhar para o bracelete que ela colocara no chão. Ele havia simplesmente sumido. A caixinha preta também desaparecera. Parecia que nada houvera acontecido. Estranhamente sua alergia também melhorara consideravelmente, e ela, agora, se sentia fisicamente muito bem, apesar de interiormente ainda um pouco aflita com o que acabara de suceder. Maria Firmina é mesmo uma mulher de muita sorte.

 

 

 

esse momento, sua governanta entrou na sala e perguntou:

A senhora quer um chá?

Quero sim, obrigada — respondeu Maria Firmina. — Você viu ou ouviu alguma coisa? Onde você estava, as luzes se apagaram?

Não senhora. Não vi nem ouvi nada. Faltou luz?

— Não sei. Apenas perguntei. Pode me trazer o chá agora. Obrigada.

 

 

 

 

 

 

 

Não se usa nada que se acha pela rua.
Na verdade, nem se deve tocar.

Não se usa nada de ninguém.

Nada é nada. Sem exceção.