Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Bodhisattva Shantideva

 

 

 

 

 

 

 

Introdução

 

 

 

Escrito no século VIII, o Bodhicharyavatara (Caminho para a Iluminação) ou Bodhisattvacharyavatara (Guia para o Modo de Vida do Bodhisattva), de Shantideva (Divina Paz), logo se tornou um clássico do Buddhismo Mahayana. As duas preocupações fundamentais da obra de Shantideva são: o cultivo de uma mente altruísta e a geração de uma profunda percepção sobre a natureza da realidade. Entre todos os textos religiosos da tradição Buddhista Mahayana, pode-se dizer que o Bodhicharyavatara de Shantideva (obra em dez capítulos) e o Ratnavali de Nagarjuna continuam a ser as obras básicas, descrevendo a carreira nobre e altruísta do Bodhisattva. O impacto do Bodhicharyavatara no Tibet talvez tenha sido insuperável. Desde a sua tradução para o tibetano, no século XI, a obra vem exercendo uma profunda influência sobre a vida religiosa do povo. Sua extensa influência pode ser encontrada nos ensinamentos de todas as quatro escolas principais do Buddhismo Tibetano: Nyingma, Kagyü, Sakya e Gelug. Sua Santidade, o Dalai Lama, chegou a afirmar:

 

O Bodhicharyavatara foi composto pelo erudito indiano Shantideva, reputado no Tibete como um dos mais fiáveis mestres. Uma vez que esta obra se concentra sobre o cultivo e o desenvolvimento do Bodhichitta, ela pertence ao Mahayana. Simultaneamente, a estância filosófica de Shantideva sobre a Sabedoria, tal como está exposta especialmente no nono capítulo, segue o ponto de vista Prasangika Madhyamika de Chandrakirti.

O principal foco dos ensinamentos do Mahayana é o cultivar a mente que deseja o benefício dos outros seres sensíveis. Com o aumentar da nossa própria paz e felicidade, nós vamos ser naturalmente mais capazes de contribuir para a paz e felicidade dos outros. Transformar a mente e cultivar uma atitude positiva, altruísta e responsável é benéfica agora mesmo. Quaisquer que sejam os problemas e dificuldades que possamos ter, poderemos, assim, enfrentá-los com coragem, calma e positividade. Assim, também será raiz da felicidade para muitas vidas vindouras.

Baseado na minha pouca experiência, eu posso dizer confiantemente, que os ensinamentos e instruções do Buddhadharma, em particular os ensinamentos do Mahayana, continuam a ser relevantes e úteis hoje. Se nós, sinceramente, colocarmos o cerne destes ensinamentos em prática, não precisaremos ter nenhuma hesitação sobre a sua eficiência.

Os benefícios de desenvolver qualidades como o amor, a compaixão, a generosidade e a paciência não estão apenas confinados a um nível pessoal; eles estendem-se a todos os seres sensíveis e até à manutenção da harmonia com o meio ambiente. Não é que estes ensinamentos tenham sido úteis em algum tempo no passado e que já não sejam pertinentes nos tempos modernos. Eles continuam pertinentes hoje. É por isto que eu encorajo as pessoas a tomar atenção a tais práticas; não é apenas para que a tradição não se perca.

O Bodhicharyavatara foi amplamente aclamado e respeitado por mais de mil anos. É estudado e elogiado por todas as quatro escolas do Buddhismo Tibetano. Eu próprio recebi transmissões e explicações sobre este texto do falecido Kunu Lama, Tenzin Gyaltsen, que, por sua vez, recebeu-as de um discípulo do grande mestre Dzogchen Dza Patrul Rinpoche. E demonstraram ser muito úteis e benéficas para a minha mente.

 

Shantideva nasceu no século VII (687 – 763 d. C.), na antiga província de Saurastra, na Índia. Desde sua mais tenra idade, o príncipe manifestou profundo respeito pelos Mestres Espirituais e uma grande bondade pelos habitantes do reino, sobretudo pelos pobres e pelos doentes. Um dia, encontrou um asceta que lhe ensinou a arte de meditar sobre Manjushri, o Buddha da Sabedoria, e pouco tempo depois Manjushri apareceu-lhe em uma visão e abençoou-o. Quando o rei morreu, a corte preparou, em grande pompa, a sagração do príncipe, erigindo um majestoso trono. Mas, na noite anterior à cerimônia, Manjushri apareceu ao príncipe em sonhos, sentado nesse trono, e lhe disse: — Meu filho, este trono me pertence. Sou o teu mestre espiritual; não é conveniente que partilhemos o mesmo assento. O príncipe acordou e compreendeu que não deveria reinar. Renunciando aos faustos da corte, fugiu e entrou na ilustre universidade buddhista de Shri Nalanda para ser ordenado na ordem Mahasanghika. Foi ordenado monge por Jayadeva, o principal dos quinhentos panditas, e recebeu o nome Shantideva – Divindade da Paz. A existência extraordinária de Shantideva progrediu sempre. Percorreu a Índia realizando milagres, salvando milhares de pessoas da fome multiplicando o alimento, curando doentes e feridos, dando fé aos incrédulos e vivendo como um perfeito Bodhisattva.

 

Já na última fase de sua existência terrena, certa vez, tendo que se explicar com o rei por ter sido injustamente acusado de caçar e matar gazelas e de comer sua carne assada no espeto, disse: — Eu não mato. Eu curo. E acrescentou: — Todos os elementos da experiência são apenas sonhos e ilusões. Compreenda que todas as coisas são apenas produtos insubstanciais da imaginação projeções da mente. Entra no caminho da liberação. E então recitou esse verso:

As gazelas de que me alimentei
nunca existiram nessa Terra;
ainda assim, nunca deixaram de existir.
Se não há o que definimos como substância,
então não pode haver caçador, nem caçado.

 

 

 

Objetivo do Estudo

 

 

 

Parafraseando o que está escrito no Elogio à Bodhichitta1, de Shantideva, este estudo foi primariamente encetado no sentido de aumentar a minha própria compreensão, para favorecer, em mim, o que é bom e belo, e, como conseqüência, distribuir o que deva e possa ser distribuído. De passagem: o que não pode e não deve ser distribuído? Seja como for, quem refletir sobre os excertos escolhidos, creio que obterá também bom proveito. Assim, este estudo, que nada tem de original, está composto de fragmentos selecionados da obra Bodhicharyavatara.

 

Recentemente publiquei um trabalho-estudo sobre os ensinamentos de Allan Kardec, tendo feito o seguinte esclarecimento: Eu, que não sou espírita, que não conhecia intestinamente o pensamento de Kardec e que convicta e declaradamente sou um Ateu-Místico, colhi no que estudei diversos esclarecimentos iluminadores e maravilhas espirituais que jamais esquecerei. Agora, direi: eu que não sou buddhista obtive resultado semelhante com este estudo. Espero, sinceramente, que o que se seguirá possa também ser útil aos que lerem e refletirem sobre os excertos do Bodhicharyavatara.

 

Enfim, como sempre faço, informo que alguns fragmentos foram editados para adequá-los a este tipo de trabalho. Mas nenhuma adulteração foi feita; isto seria contra-senso ou sectarismo, coisas que evito tanto quanto evito as cobras venenosas. Também, em alguns, fiz ligeiros comentários, que podem ser desqualificados, pois o que importa é o pensamento do Bodhisattva Shantideva.

 

Todos os Websites consultados estão listados ao final.

 

 

 

 

Fragmentos Místicos
do Bodhicharyavatara

 

 

 

A mente da iluminação ou Bodhichitta é o voto de atingir a iluminação com o fim único de libertar todos os seres do sofrimento e de conduzi-los ao estado de Buddha. [Penso que este voto seja realmente solidário; nada há que possa desmerecê-lo ou desacreditá-lo. Todavia, o estado de Buddha só poderá ser alcançado por esforço pessoal, tanto quanto o sofrimento não poderá ser extirpado por ninguém. Só a compreensão aplacará o sofrimento, pois todos os sofrimentos são filhos da incapacidade (temporal) para compreender.]

 

As dez condições favoráveis são: [1] ter uma existência humana; [2] ter nascido em um lugar onde o Dharma exista; [3] possuir todas as faculdades físicas e mentais; [4] não agir em contradição com o Dharma; [5] ter fé nos que são dignos dela; [6] é também necessário que um Buda tenha aparecido durante a nossa era; [7] que ele tenha exposto o Dharma; [8] que os seus ensinamentos subsistam; [9] que eles sejam postos em prática; [10] e, enfim, que um mestre espiritual esteja presente para nos guiar.

 

As oito liberdades são: [1] não ter nascido nos infernos; [2] não ter nascido no mundo dos fantasmas famintos; [3] não ter nascido no reino animal; [4] não ter nascido entre os semideuses; [5] não ter nascido entre os deuses de longa vida; [6] não ter nascido entre os homens com visões errôneas; [7] não ter nascido em uma época obscura durante a qual nenhum Buddha tenha aparecido; [8] e não ter nascido com uma deficiência mental que impeça a compreensão do sentido do Dharma.

 

Quem queira passar além das imensas dificuldades desta vida, afastar todas as dores das criaturas e desfrutar centenas e centenas de alegrias, que jamais abandone a Bodhichitta.

 

Logo que a mente tenha abraçado com tenacidade o pensamento de libertar a vastidão ilimitada dos seres, mesmo que às vezes se distraia ou dissipe, o fluxo dos seus méritos continua sempre a aumentar, assim como a infinita vastidão do céu. [Isto está de acordo com o Princípio de que Somos Todos Um. E nada é apagado dos Registros Akáshicos.]

 

Um simples voto para o bem do mundo vale mais do que a veneração do Buddha... [Neste ponto, confesso: fiquei emocionado e chorei um pouquinho. E, mais uma vez fiz este voto: Que a Divina Essência do Kósmos se infunda em todos os seres do Universo, purificando-os e livrando-os de maus pensamentos, de más intenções, de más palavras e de más ações. Está selado. ]

 

 

 

 

Todas as flores e todos os frutos, as ervas medicinais e os tesouros do Universo, as águas puras e deliciosas, as montanhas feitas de preciosas gemas, as encantadoras solidões dos bosques, as lianas lindíssimas ornadas de flores, as árvores com os ramos vergando sob o peso dos frutos, os perfumes dos mundos divinos e humanos, a árvore dos desejos e as árvores de pedrarias resplandecentes, os lagos espargidos de flores de lótus e suspensos no canto dos cisnes, as plantas silvestres e as de cultivo, e tudo o que é nobre ornamento disseminado na imensidão do espaço, tudo isto, que não pertence a ninguém, considero-o na minha mente e ofereço aos Buddhas, sublimes entre os seres e aos seus filhos. Possam aceitá-los, tão dignos são das mais belas oferendas! Possam os grandes compassivos ter compaixão de mim!

 

Eu me ofereço, para toda a eternidade, aos Jinas2 e aos seus filhos. Admitam-me ao vosso serviço. Oh!, seres sublimes! É com devoção que me faço vosso servidor.

 

Todo o mal que fiz ou causei, embrutecido e estúpido na eternidade das encarnações ou na presente vida, todo o mal que na minha cegueira aprovei, para minha perdição, confesso-o, consumido de remorsos. Todas as ofensas que cometi, subjugado pelas emoções, em ultraje às Três Jóias [o Buddha, o Dharma (seus ensinamentos) e a Sangha (a comunidade)] ou contra meu pai e minha mãe, contra os Mestres e todos os demais, por atos, palavras ou pensamentos, todo esse pernicioso agir que cometi, afligido pelos múltiplos vícios, tudo isto eu confesso. Oh!, Condutores do Mundo!

 

A morte não se perde em considerações pelo que está ou não está por fazer. Que ninguém se fie nela, de boa saúde ou doente, a vida pode partir de improviso. "A morte não há de chegar hoje!" Que falsa certeza! A hora de deixar tudo se aproxima, inexorável!

 

Durante minha permanência neste mundo, muitos se foram, uns amigos, outros inimigos, mas o mal que cometi por causa deles continua sempre presente, como uma ameaça que não me larga. [Por isto, no Evangelho de São Mateus, XXVI, 41, há a advertência: Vigiai e orai, para que não entreis em tentação.]

 

Estou de passagem nesta Terra, foi isto que não compreendi. Quanto mal eu cometi por ignorância, por apego e por ódio... [Por mais absurdo que possa parecer, um mal cometido poderá, às vezes, ser um bem. Mas o bem derivado de um mal não desobriga o cometedor do mal de ter de compensar o mal perpetrado. Enfim, deixo duas perguntas para reflexão: 1ª) O que é o mal? 2ª) O que é o bem?]

 

Se quando receamos uma simples doença passageira, seguimos sem violar a prescrição do médico, quanto mais quando estamos corroídos pela cobiça e pelas quatrocentas e quatro doenças [descritas nos textos médicos tibetanos].

 

Felicito-me pelo bem feito por todos os seres, graças ao qual eles se livram dos sofrimentos dos lugares de tormento; que eles sejam felizes! Regozijo-me pelos seres que acumulam méritos, pois são a causa da iluminação para eles. Que todos obtenham a libertação definitiva do doloroso ciclo das existências. Regozijo-me com os pensamentos virtuosos, vastos e profundos como o mar, desaguando na felicidade dos seres, e com os atos que concretizam o bem dos seres.

 

Com as mãos juntas, imploro aos Buddhas desejosos de se extinguir: ficai ainda entre nós, por ciclos sem fim, para que o mundo não fique mergulhado na cegueira. [Eu tenho uma dúvida sobre esta matéria, que vou expô-la sob a forma de duas perguntas: Quando um ente alcança o estado búddhico, fica neste estado para sempre? Sendo o Universo, basicamente, mudança e movimento, o próprio estado búddhico não será uma instância que deverá ser superada?]

 

Possa eu ser, para todos, aquele que apazigua a dor. Possa eu ser, para os doentes, o remédio, o médico e o enfermeiro, até à extinção da doença. Possa eu, em revoadas de alimentos e bebidas, atenuar o suplício da fome e da sede e, nos períodos de grande penúria dos antara-kalpas,3 ser eu próprio a comida 'saciante' e a bebida 'desalterante' (sic). Possa eu ser, para os pobres, um tesouro inesgotável, resposta sempre pronta para tudo o que lhes falte! Todos os meus corpos e bens, todo o meu mérito do passado, do presente e do futuro, tudo abandono sem hesitar para que o benefício de todos os seres seja atingido.

 

Possa eu ser o protetor dos abandonados, o guia dos que caminham e, para os que aspiram à outra margem, ser a caravela, a barca ou a ponte. A ilha dos que buscam uma ilha, a lâmpada dos que precisam de lâmpada, o leito de quem queira um leito, o escravo de quem queira um escravo. Possa eu ser a pedra do milagre, a jarra do tesouro inesgotável, a fórmula mágica, a planta que cura, a árvore dos desejos, a vaca da abundância! Como a Terra e os outros elementos servem os múltiplos propósitos dos seres em número vasto como o céu, na vastidão do espaço sem fim, possa eu também ser, de todas as maneiras, útil aos seres que povoam o espaço, por todo o sempre, até que todos sejam libertos!

 

Quem queira respeitar a regra tem de vigiar a mente com atenção; a regra é impossível de observar para quem não domina a instabilidade da mente. [Há quem consiga a proeza de ir do paraíso ao inferno em uma fração de segundo; mas para sair do inferno é capaz de levar 'quizilênios'.]

 

 

 

 

O pensamento de sacrificar tudo o que se tem a todos os seres, bem como o fruto desse sacrifício, é o que se chama perfeição da generosidade; ela é, portanto, mente e nada mais.

 

Orações, asceses prolongadas, tudo é vão quando a mente está distraída e confusa, disse o Onisciente... Sem a prática de controlar a mente, as outras nada valem... Se a mente vagueia na distração, tudo o que o estudo, a reflexão e a meditação puderem produzir, esvai-se da memória como a água de um vaso rachado.

 

O que me importa perder toda a minha fortuna, todas as honrarias, a própria vida e mesmo qualquer outro bem espiritual? Mas, perder a minha mente, isso nunca! [Perder a mente, aqui, simbolicamente, significa entregá-la em uma bandeja de ouro ao demônio interior, que muitos, abestalhadamente, adoram construir e alimentar a pão-de-ló e outras guloseimas.]

 

A inconsciência é um ladrão sempre à espera de um eclipse da atenção; assim, despojados do mérito acumulado, caímos nos destinos fatais. As emoções negativas são um bando de piratas à procura de uma passagem; se a encontram, pilham-nos toda a virtude e arrasam a fortuna, que é um renascimento nos Mundos Superiores.

 

Se decidimos começar uma atividade, não devemos pensar em outra antes de a acabar, agindo de mente inteira. Deste modo, o que fizermos será bem feito; senão, ambas as ações serão defeituosas, e a confusão que nasce da falta de vigilância não parará de crescer. [A regra é: Uma coisa de cada vez, cada vez na sua vez.]

 

Quando a mente se mostra excitada, trocista e orgulhosa, ou vaidosa, inquiridora e rancorosa, insidiosa, ávida de elogios, desdenhosa, grosseira e brigona, devemos ficar quietos como uma tora. [Entoar um som vocálico (mantra) ajuda muito.]

 

Devemos ver no corpo uma barca que vai e que vem. Que o corpo vá e que venha segundo a tua vontade de conduzir os seres à sua finalidade.

 

As perfeições, a começar pela generosidade e indo por aí acima, vão tendo uma excelência cada vez maior. Não se deve sacrificar uma grande causa a uma causa menor, e, acima de tudo, que seja considerado o proveito dos outros.

 

Não existem pensamentos que os Bodhisattvas4 não devam aprender, e para quem se instrui assim, tudo é acumulação de méritos. [Nada deve ser considerado como inútil, desimportante ou menor; aprende-se tanto com um catedrático quanto com quem tem apenas instrução primária ou com quem sequer instrução tem.]

 

Um só instante de raiva destrói a generosidade, a veneração pelos Buddhas e o bem que fizemos ao longo de milhares de Kalpas! Não há vício pior do que a raiva nem ascese comparável à paciência. Por isso, devemos cultivar ativamente a paciência pelos mais diversos meios. A mente nunca goza a paz, a alegria e o bem-estar, nem vive equilibrada ou dorme tranqüila, enquanto tiver a fechadura da raiva cravada na mente. [O maior conselho que um velho Alquimista deixou aos interessados na arte-ciência da Alquimia foi: paciência, esperança, trabalho. Outro grande adepto do século XV, em carta a seu filho, recomendou: a paciência é a escada dos filósofos, e a humildade a porta do seu jardim.]

 

Nada existe que através do exercício não possa ser realizado. Se formos nos habituando a sofrimentos ligeiros, acabaremos por ser capazes de suportar sofrimentos maiores.

 

A dor não perturba a serenidade do sábio. Não é verdade que o sábio se bate contra as paixões? Ora, não há guerras sem dores.

 

Tudo depende de uma causa e a própria causa é também dependente.

 

 

A mente imaterial, de modo algum, pode ser atingida; se ela é tocada pela dor física é por causa do seu apego ao corpo.

 

Mais vale morrer hoje do que me arrastar incorretamente pela vida afora. De qualquer modo, mesmo que viva muito tempo, a dor da morte será idêntica. [Há uma diferença incontornável entre morrer e Morrer: morrer realmente dói; Morrer Illumina.]

 

Depois de grandes lucros e de deliciosos deleites, partirei nu, com as mãos vazias, como um homem despojado pelos ladrões. [Se daqui nada poderá ser levado, por que cobiça, avareza e egoísmo? Como explica o Mestre Kut Hu Mi, o 'Devachan' é um estado, digamos, de intenso egoísmo, durante o qual o Ego (combinação do Sexto e Sétimo Princípios) colhe a recompensa do seu altruísmo na Terra. Está completamente mergulhado na felicidade de todos os seus afetos pessoais, preferências e pensamentos terrenos, e recolhe o fruto de suas ações meritórias. Nenhuma dor, nenhuma pena, nem mesmo a sombra de uma aflição obscurecem o brilhante horizonte de sua incontaminada felicidade, porque é um estado de perpétuo 'mâya' [ilusão, fantasia ou, filosoficamente, 'como se fosse']. Vai ao 'Devachan' o ego pessoal, mas beatificado, purificado, santificado. Todo Ego que, depois do período de gestação inconsciente, renasce no 'Devachan' é necessariamente tão puro e inocente como uma criança recém-nascida. O fato de haver renascido comprova, já por aí, a preponderância do bem sobre o mal em sua velha personalidade. E, enquanto o 'karma' (do mal) fica temporariamente suspenso, para segui-lo mais tarde em sua futura encarnação terrena, ele só leva ao 'Devachan' o 'karma' de suas boas obras, palavras e pensamentos.]

 

Somos todos escravos dos nossos atos, não há razão para querer mal aos outros. [Somos, também, escravos dos nossos pensamentos e das nossas palavras.]

 

Os elogios, as honrarias e a glória nada adiantam ao teu mérito e tampouco à duração da vida, à força, à saúde e ao bem-estar físico... Os elogios arruínam, ao mesmo tempo, a paz de mente e a renúncia ao mundo, provocam a inveja pelos homens de mérito e devastam as qualidades que se tem.

 

É através dos seres, assim como dos Buddhas, que obtemos as virtudes de um Buddha; no entanto, a veneração que devotamos aos Buddhas nós a recusamos aos seres. Por que esta distinção? [Por isto, perguntarei: quem é mais importante, uma Entamoeba hystolytica ou um Hippopotamus amphibius?]

 

Os Buddhas se satisfazem com a felicidade dos seres; quando os seres sofrem, os Buddhas se entristecem. Quando satisfazemos os seres, satisfazemos os Buddhas; quando os ofendemos, ofendemos os Buddhas.

 

Assim como sem vento não há movimento, sem perseverança o mérito espiritual é certamente impossível. O que é a perseverança? A perseverança é o entusiasmo pelo bem. Quem são os seus adversários? A indolência, o apego ao mal, o desencorajamento e o desprezo de si... Como um floco de algodão obedece ao vaivém do vento, deixemo-nos conduzir pela perseverança; é assim que se atinge a finalidade! [Ora, lege et labora.]

 

 

 

 

Como podes permanecer tão tranqüilo quando tens perante ti os infernos que constróis com as tuas próprias ações? [Grifo meu].

 

Não nos devemos desencorajar pensando: "Como hei de conseguir a iluminação?" O Tathagata5 disse, em boa verdade, que outrora foram moscas, moscardos, mosquitos ou vermes os que, pelo seu esforço, obtiveram a iluminação, tão difícil de alcançar. Ora, eu que nasci como humano, capaz de discernir o bem do mal, porque não haveria eu também, seguindo as regras dos Oniscientes, de obter a iluminação? [Por isto, insisto e perguntarei novamente: quem é mais importante, uma Entamoeba hystolytica ou um Hippopotamus amphibius?]

 

 

 

Para quem fica inativo por desencorajamento, não tem fim a sua fraqueza. Quem for enérgico e confiante será capaz de enfrentar as maiores dificuldades.

 

Seja qual for a circunstância, apenas realizarei o bem!

 

O homem cuja mente se dissipa é presa das garras da cobiça. O isolamento físico e mental elimina qualquer possibilidade de distração. Por isso, renunciemos ao mundo e abandonemos as preocupações. [Melhor: renunciemos ao mundo, às ilusões do mundo, sem do mundo nos afastarmos. Pois, se nos afastamos do mundo – stricto sensu – como poderemos fazer o bem? Como poderemos aprender e ensinar? Como poderemos receber e partilhar? Como poderemos todo o resto? Tenho certeza de que o Bodhisattva Shantideva pensava assim.]

 

Todo projeto no qual a mente procura o prazer, enganada por uma falsa felicidade, transforma-se em um sofrimento mil vezes maior. Se és sábio, não procures o prazer; tal busca engendra o perigo. Os objetos de prazer têm por natureza não durar; compreende-o e permanece firme.

 

O homem nasce só e morre só; ninguém pode partilhar parte da sua pena. Então, o que são para ele os amigos? Meros escravos. [Misticamente, todos nós somos escravos de todos. É esta escravidão místico-espiritual que suporta e justifica o axioma: Somos todos Um.]

 

A cobiça é uma fonte de infelicidade neste mundo e no outro. Nesta vida, a prisão, a morte, as mutilações... Na outra, o inferno... Os escravos da cobiça sofrem muito mais do que os Bodhisattvas e não atingem a iluminação. [Sim. O inferno que criarmos em vida será o mesmo inferno que vivenciaremos depois de morrer. Nem mais um tiquinho, nem menos um tiquinho.]

 

Devo combater a dor dos outros porque é dor, como a minha. Devo fazer bem aos outros porque são seres vivos, como eu... Todas as dores, sem distinção, são impessoais; devemos combatê-las enquanto dor. Por que fazer restrições? [Enquanto um único ser estiver padecendo, todos nós seremos padecedores. A sede, a fome e a miséria de um são a sede, a fome e a miséria de todos.]

 

Nada de desejo de retribuição! Um só desejo – o bem dos outros! Por isso, da mesma maneira que me protejo de todo o mal, terei pelos outros pensamentos de proteção e de bondade... Assim como tens vontade de te defender contra a mais pequena ofensa, é indispensável que o pensamento de proteção e de bondade para com os seres se torne em ti um hábito.

 

Quem quiser se salvar rapidamente a si e aos outros, deverá praticar o Grande Segredo: a troca de si pelos outros. [Esta é uma das aplicações práticas da Lei da Assunção.]

 

Aquele que impõe a um outro a tarefa de trabalhar para si terá por retribuição a escravatura. O que se impõe a tarefa de trabalhar para os outros terá por recompensa o poder. Todos os que são infelizes, são-no por terem procurado a sua própria felicidade. Todos os que são felizes, são-no por terem procurado a felicidade dos outros. [Aqui vale a pena lembrar que a prática das boas obras só tem valor se estribada em imperativos categóricos. Como deixou escrito Immanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 – Königsberg, 12 de fevereiro de 1804) nos seus Fundamentos da Metafísica dos Costumes, existe... só um imperativo categórico, que é este: Age somente, segundo uma máxima tal, que possas querer, ao mesmo tempo, que se torne lei universal. E o Mahabharata adverte: Este é o resumo de todos os deveres: não façais nada aos outros que, se fosse feito a vós, vos causasse mágoa.]

 

Todas as catástrofes, todas as dores e todos os perigos do mundo provêm do apego ao ego. Por que hei de me agarrar a este demônio?

 

Passaste séculos inumeráveis em busca dos teus interesses e o preço que recebeste desse imenso esforço foi dor e mais dor... Se procuras a alegria, não cuides de ti. Se te queres proteger, protege sempre os outros.

 

No interesse do mundo, renuncio, sem reserva, ao meu corpo. Se o conservo, apesar dos seus defeitos, é como um instrumento de ação.

 

Se desejarmos a cessação da dor, devemos fazer nascer em nós a Sabedoria.

 

 

 

 

Uma ilusão dura tanto quanto a combinação das causas que a produziram... Enquanto as causas da ilusão não forem arrancadas, a ilusão tampouco o é; mas desde que as causas sejam arrancadas, a ilusão cessa de se produzir, mesmo segundo a verdade relativa.

 

O Dharma6 tem por raiz uma vida monástica autêntica; ora, é difícil ser um monge autêntico: uma mente apegada a conceitos só dificilmente pode atingir o Nirvana.7

 

Liberto do apego e do medo, o Bodhisattva permanece no Samsara para o bem dos seres que sofrem por ignorância. Tal é o fruto da realização da vacuidade. [Por este motivo, mais acima afirmei: renunciemos ao mundo, às ilusões do mundo, sem do mundo nos afastarmos. Pois, se nos afastamos do mundo – stricto sensu – como poderemos fazer o bem?]

 

Ishvara, o Todo-poderoso, é a causa do mundo, dizem. Mas, primeiro, o que é o Todo-poderoso? Se são os elementos, seja! É inútil nos atormentarmos por um simples nome. [In Corde loquitur nostro Vox Dei. Em nosso Coração fala a Voz de Deus.]

 

O Samsara está repleto de abismos. Nele, o sentido último quase não tem lugar, tudo é contradição, a realização está ausente... O Samsara encerra oceanos de dor sem igual, terríveis e infinitos. É o domínio da fraqueza e das existências breves. É aí que gastamos rapidamente dias inúteis cuidando da nossa vida, da saúde... com fome, cansaço, sono, acidentes... em relações estéreis com pessoas tolas. Como é difícil atingir o discernimento! Onde encontrar no meio de tudo isto o meio de refrear o hábito da distração? [Se eu tivesse que responder a esta pergunta, eu diria: no Santo Silêncio do nosso Coração.]

 

 

 

 

Que os animais parem de se devorar entre si! Que os cegos vejam... Que os surdos ouçam... Que as mulheres dêem à luz sem dor... Que os maltrapilhos recebam roupas... Que os esfomeados encontrem comida... Que os sequiosos tenham água e bebidas deliciosas... Que os corações despedaçados retomem a esperança, a força e o êxito... Que os doentes recuperem rápido a saúde e que a doença seja desconhecida no mundo... Que todas as regiões sejam propícias aos viajantes e que os ajudem no sucesso das suas viagens... Que os navegadores realizem os seus desejos, e que regressem tranqüilamente aos portos e se regozijem com as suas famílias... Que os viajantes perdidos e dolentes encontrem companheiros e se façam ao caminho sem fadiga, ao abrigo do perigo dos ladrões e dos tigres... Que os deuses protejam as crianças, os velhos e os abandonados, adormecidos em regiões inóspitas e desertas, vencidos pelo cansaço... Que os seres estejam sempre ao abrigo das condições difíceis, cheios de fé e de sabedoria, de compaixão e de meios de subsistência puros, com boa conduta, relembrando-se das vidas anteriores... Que [todos os seres] vivam em harmonia, em paz e em independência... Que os seres sem esplendor se tornem resplandecentes! Se são marcados fisicamente pela provação, que ganhem corpos lindos e perfeitos... Que os humildes se tornem grandes e os orgulhosos sem orgulho... Que todos os seres gozem de uma vida ilimitada! Que vivam eternamente felizes! Que o nome mesmo da morte desapareça! Que nenhum ser seja infeliz, maldoso, doente, temeroso, desprezado ou angustiado... E que todo o espaço fique repleto de Buddhas e de Bodhisattvas, embelezado de parques com árvores maravilhosas e encantadas pelo som do Dharma!

 

Enquanto dure o espaço e o mundo, possa eu trabalhar para destruir as dores do mundo!

 

 

 


 

 

 

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Notas:

1. Bodhichitta: mente da iluminação, pensamento da iluminação; o voto de atingir a iluminação com o único fim de libertar todos os seres do sofrimento e de conduzi-los ao estado búddhico. Trata-se também do conjunto de práticas que permitem a realização deste voto.

2. Jina: vitorioso, vencedor, conquistador; é um epíteto dos Buddhas.

3. Segundo a cosmologia buddhista, os mundos (chakravala) estão submetidos a um processo alternativo de formação e de dissolução. O período que decorre entre o início de um mundo e a formação do mundo seguinte é chamado de mahakalpa (grande ciclo); este é formado por quatro períodos incomensuráveis (asankhyeya-kalpa) que correspondem às fases de formação, duração e dissolução do mundo, mais o período intermediário de caos que precede a formação de um novo mundo. Cada asankhyeya-kalpa contém vinte antara-kalpas. Um antara-kalpa é o período durante o qual a duração da vida humana, que é de dez anos à partida, cresce até atingir a duração de um asankyeya-kalpa e, de novo, decresce até dez anos. O fim de cada antara-kalpa é marcado por sete dias de guerra, sete meses de epidemias e sete anos de fome.

4. Bodhisattva: ser da iluminação. Aquele que se liberta do Samsara* realizando todas as qualidades da iluminação, mas que, ao mesmo tempo, manifesta-se por compaixão para ajudar os seres. Progride até o estado búddhico, aprofundando a sua realização da vacuidade unida à compaixão. Nunca age por interesse pessoal: todas as suas ações, palavras e pensamentos são consagrados ao bem dos outros.

* Samsara: o ciclo das existências onde reinam o sofrimento e a frustração engendrados pela ignorância e pelas emoções conflituosas que dela resultam.

5. Tathagata: aquele que chegou ao tal qual; um sinônimo de Buddha.

6. Dharma: conjunto dos ensinamentos expressos pelos Buddhas e pelos Mestres Realizados que mostram o caminho para a iluminação. Há dois tipos: o Dharma das escrituras, que é o suporte dos ensinamentos, e o Dharma da realização, que é o resultado da prática espiritual.

7. Nirvana: o estado para além do sofrimento; o fato de se libertar do sofrimento e do Samsara. Não é a realização última do estado búddhico.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://www.institutouniao.com.br/
meditacao/

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Imperativo_categ%C3%B3rico

http://www.tsongkhapa.org.br/
html/default.asp

http://www.casadaculturadotibete.org/
pensamento.html

http://www.sintoniasaintgermain.com.br/
shantideva04.html

http://www.dharmanet.com.br/
shantideva/shantideva2.htm

http://www.geocities.com/
SAKYABR/shantideva.html

http://www.padmanet.com/padmanet/
home/homecentro.htm

http://www.padmanet.com/padmanet/
buddha_gallery/Shantideva.html

http://www.dharmanet.com.br/home/

http://shantideva.dharmanet.com.br/

http://unsmomentoschamadosunicos.blogspot.com/
2007/10/uma-mosca-no-caf.html

 

Mantra:

OM MANI PADME HUM HRI

Fonte:

http://www.sintoniasaintgermain.com.br/
mantras_budistas.html