Shantideva
nasceu no século VII (687 – 763 d. C.), na antiga província
de Saurastra, na Índia. Desde sua mais tenra idade, o príncipe
manifestou profundo respeito pelos Mestres Espirituais e uma grande bondade
pelos habitantes do reino, sobretudo pelos pobres e pelos doentes. Um dia,
encontrou um asceta que lhe ensinou a arte de meditar sobre Manjushri,
o Buddha da Sabedoria, e pouco tempo depois Manjushri
apareceu-lhe em uma visão e abençoou-o. Quando o rei morreu,
a corte preparou, em grande pompa, a sagração do príncipe,
erigindo um majestoso trono. Mas, na noite anterior à cerimônia,
Manjushri apareceu ao príncipe em sonhos, sentado nesse
trono, e lhe disse: — Meu filho, este trono me pertence. Sou o
teu mestre espiritual; não é conveniente que partilhemos o
mesmo assento. O príncipe acordou e compreendeu que não
deveria reinar. Renunciando aos faustos da corte, fugiu e entrou na ilustre
universidade buddhista de Shri Nalanda para ser ordenado na ordem
Mahasanghika. Foi ordenado monge por Jayadeva, o principal dos quinhentos
panditas, e recebeu o nome Shantideva – Divindade da Paz. A existência
extraordinária de Shantideva progrediu sempre. Percorreu a Índia
realizando milagres, salvando milhares de pessoas da fome multiplicando
o alimento, curando doentes e feridos, dando fé aos incrédulos
e vivendo como um perfeito Bodhisattva.
Já
na última fase de sua existência terrena, certa vez, tendo
que se explicar com o rei por ter sido injustamente acusado de caçar
e matar gazelas e de comer sua carne assada no espeto, disse: — Eu
não mato. Eu curo. E acrescentou: — Todos
os elementos da experiência são apenas sonhos e ilusões.
Compreenda que todas as coisas são apenas produtos insubstanciais
da imaginação – projeções da
mente. Entra no caminho da liberação. E então
recitou esse verso:
As
gazelas de que me alimentei
nunca existiram nessa Terra;
ainda assim, nunca deixaram de existir.
Se não há o que definimos como substância,
então não pode haver caçador, nem caçado.
Objetivo do Estudo
Parafraseando
o que está escrito no Elogio à Bodhichitta1,
de Shantideva, este estudo foi primariamente encetado no sentido de aumentar
a minha própria compreensão, para favorecer, em mim, o que
é bom e belo, e, como conseqüência, distribuir o que deva
e possa ser distribuído. De passagem: o que não pode e não
deve ser distribuído? Seja como for, quem refletir sobre os excertos
escolhidos, creio que obterá também bom proveito. Assim, este
estudo, que nada tem de original, está composto de fragmentos selecionados
da obra Bodhicharyavatara.
Recentemente
publiquei um trabalho-estudo sobre os ensinamentos de Allan Kardec, tendo
feito o seguinte esclarecimento: Eu, que não sou espírita,
que não conhecia intestinamente o pensamento de Kardec e que convicta
e declaradamente sou um Ateu-Místico, colhi no que estudei diversos
esclarecimentos iluminadores e maravilhas espirituais que jamais esquecerei.
Agora, direi: eu que não sou buddhista obtive resultado
semelhante com este estudo. Espero, sinceramente, que o que se seguirá
possa também ser útil aos que lerem e refletirem sobre os
excertos do Bodhicharyavatara.
Enfim,
como sempre faço, informo que alguns fragmentos foram editados para
adequá-los a este tipo de trabalho. Mas nenhuma adulteração
foi feita; isto seria contra-senso ou sectarismo, coisas que evito tanto
quanto evito as cobras venenosas. Também, em alguns, fiz ligeiros
comentários, que podem ser desqualificados, pois o que importa é
o pensamento do Bodhisattva Shantideva.
Todos
os Websites consultados estão listados ao final.
Fragmentos
Místicos
do Bodhicharyavatara
A
mente da iluminação ou Bodhichitta é o voto de atingir
a iluminação com o fim único de libertar todos os seres
do sofrimento e de conduzi-los ao estado de Buddha. [Penso que este
voto seja realmente solidário; nada há que possa desmerecê-lo
ou desacreditá-lo. Todavia, o estado de Buddha só
poderá ser alcançado por esforço pessoal, tanto quanto
o sofrimento não poderá ser extirpado por ninguém.
Só a compreensão aplacará o sofrimento, pois todos
os sofrimentos são filhos da incapacidade (temporal) para compreender.]
As
dez condições favoráveis são: [1] ter
uma existência humana; [2] ter nascido em um lugar onde o
Dharma exista; [3] possuir todas as faculdades físicas e
mentais; [4] não agir em contradição com o
Dharma; [5] ter fé nos que são dignos dela; [6]
é também necessário que um Buda tenha aparecido durante
a nossa era; [7] que ele tenha exposto o Dharma; [8] que
os seus ensinamentos subsistam; [9] que eles sejam postos em prática;
[10] e, enfim, que um mestre espiritual esteja presente para nos
guiar.
As oito liberdades são: [1]
não ter nascido nos infernos; [2] não ter nascido
no mundo dos fantasmas famintos; [3] não ter nascido no
reino animal; [4] não ter nascido entre os semideuses; [5]
não ter nascido entre os deuses de longa vida; [6] não
ter nascido entre os homens com visões errôneas; [7]
não ter nascido em uma época obscura durante a qual nenhum
Buddha tenha aparecido; [8] e não ter nascido com uma deficiência
mental que impeça a compreensão do sentido do Dharma.
Quem
queira passar além das imensas dificuldades desta vida, afastar todas
as dores das criaturas e desfrutar centenas e centenas de alegrias, que
jamais abandone a Bodhichitta.
Logo
que a mente tenha abraçado com tenacidade o pensamento de libertar
a vastidão ilimitada dos seres, mesmo que às vezes se distraia
ou dissipe, o fluxo dos seus méritos continua sempre a aumentar,
assim como a infinita vastidão do céu. [Isto está
de acordo com o Princípio de que Somos Todos Um. E nada é
apagado dos Registros Akáshicos.]
Um
simples voto para o bem do mundo vale mais do que a veneração
do Buddha... [Neste ponto, confesso: fiquei emocionado e chorei um
pouquinho. E, mais uma vez fiz este voto: Que a Divina Essência do
Kósmos se infunda em todos os seres do Universo, purificando-os
e livrando-os de maus pensamentos, de más intenções,
de más palavras e de más ações. Está
selado.
]
Todas
as flores e todos os frutos, as ervas medicinais e os tesouros do Universo,
as águas puras e deliciosas, as montanhas feitas de preciosas gemas,
as encantadoras solidões dos bosques, as lianas lindíssimas
ornadas de flores, as árvores com os ramos vergando sob o peso dos
frutos, os perfumes dos mundos divinos e humanos, a árvore dos desejos
e as árvores de pedrarias resplandecentes, os lagos espargidos de
flores de lótus e suspensos no canto dos cisnes, as plantas silvestres
e as de cultivo, e tudo o que é nobre ornamento disseminado na imensidão
do espaço, tudo isto, que não pertence a ninguém, considero-o
na minha mente e ofereço aos Buddhas, sublimes entre os seres e aos
seus filhos. Possam aceitá-los, tão dignos são das
mais belas oferendas! Possam os grandes compassivos ter compaixão
de mim!
Eu
me ofereço, para toda a eternidade, aos Jinas2
e aos seus filhos. Admitam-me ao vosso serviço. Oh!, seres sublimes!
É com devoção que me faço vosso servidor.
Todo o mal que fiz ou causei, embrutecido
e estúpido na eternidade das encarnações ou na presente
vida, todo o mal que na minha cegueira aprovei, para minha perdição,
confesso-o, consumido de remorsos. Todas as ofensas que cometi, subjugado
pelas emoções, em ultraje às Três Jóias
[o Buddha, o Dharma (seus ensinamentos) e a Sangha
(a comunidade)] ou contra meu pai e minha mãe, contra os Mestres
e todos os demais, por atos, palavras ou pensamentos, todo esse pernicioso
agir que cometi, afligido pelos múltiplos vícios, tudo isto
eu confesso. Oh!, Condutores do Mundo!
A
morte não se perde em considerações pelo que está
ou não está por fazer. Que ninguém se fie nela, de
boa saúde ou doente, a vida pode partir de improviso. "A morte
não há de chegar hoje!" Que falsa certeza! A hora de
deixar tudo se aproxima, inexorável!
Durante
minha permanência neste mundo, muitos se foram, uns amigos, outros
inimigos, mas o mal que cometi por causa deles continua sempre presente,
como uma ameaça que não me larga. [Por isto, no Evangelho
de São Mateus, XXVI, 41, há a advertência: Vigiai
e orai, para que não entreis em tentação.]
Estou
de passagem nesta Terra, foi isto que não compreendi. Quanto mal
eu cometi por ignorância, por apego e por ódio... [Por
mais absurdo que possa parecer, um mal cometido poderá, às
vezes, ser um bem. Mas o bem derivado de um mal não desobriga o cometedor
do mal de ter de compensar o mal perpetrado. Enfim, deixo duas perguntas
para reflexão: 1ª) O que é o mal? 2ª) O que é
o bem?]
Se
quando receamos uma simples doença passageira, seguimos sem violar
a prescrição do médico, quanto mais quando estamos
corroídos pela cobiça e pelas quatrocentas e quatro doenças
[descritas nos textos médicos tibetanos].
Felicito-me pelo bem feito por todos
os seres, graças ao qual eles se livram dos sofrimentos dos lugares
de tormento; que eles sejam felizes! Regozijo-me pelos seres que acumulam
méritos, pois são a causa da iluminação para
eles. Que todos obtenham a libertação definitiva do doloroso
ciclo das existências. Regozijo-me com os pensamentos virtuosos, vastos
e profundos como o mar, desaguando na felicidade dos seres, e com os atos
que concretizam o bem dos seres.
Com
as mãos juntas, imploro aos Buddhas desejosos de se extinguir: ficai
ainda entre nós, por ciclos sem fim, para que o mundo não
fique mergulhado na cegueira. [Eu tenho uma dúvida sobre esta
matéria, que vou expô-la sob a forma de duas perguntas: Quando
um ente alcança o estado búddhico, fica neste estado
para sempre? Sendo o Universo, basicamente, mudança e movimento,
o próprio estado búddhico não será
uma instância que deverá ser superada?]
Possa
eu ser, para todos, aquele que apazigua a dor. Possa eu ser, para os doentes,
o remédio, o médico e o enfermeiro, até à extinção
da doença. Possa eu, em revoadas de alimentos e bebidas, atenuar
o suplício da fome e da sede e, nos períodos de grande penúria
dos antara-kalpas,3 ser eu próprio a comida 'saciante'
e a bebida 'desalterante' (sic). Possa eu ser, para os pobres,
um tesouro inesgotável, resposta sempre pronta para tudo o que lhes
falte! Todos os meus corpos e bens, todo o meu mérito do passado,
do presente e do futuro, tudo abandono sem hesitar para que o benefício
de todos os seres seja atingido.
Possa
eu ser o protetor dos abandonados, o guia dos que caminham e, para os que
aspiram à outra margem, ser a caravela, a barca ou a ponte. A ilha
dos que buscam uma ilha, a lâmpada dos que precisam de lâmpada,
o leito de quem queira um leito, o escravo de quem queira um escravo. Possa
eu ser a pedra do milagre, a jarra do tesouro inesgotável, a fórmula
mágica, a planta que cura, a árvore dos desejos, a vaca da
abundância! Como a Terra e os outros elementos servem os múltiplos
propósitos dos seres em número vasto como o céu, na
vastidão do espaço sem fim, possa eu também ser, de
todas as maneiras, útil aos seres que povoam o espaço, por
todo o sempre, até que todos sejam libertos!
Quem
queira respeitar a regra tem de vigiar a mente com atenção;
a regra é impossível de observar para quem não domina
a instabilidade da mente. [Há quem consiga a proeza de ir do
paraíso ao inferno em uma fração de segundo; mas para
sair do inferno é capaz de levar 'quizilênios'.]
O
pensamento de sacrificar tudo o que se tem a todos os seres,
bem como o fruto desse sacrifício, é o que se chama perfeição
da generosidade; ela é, portanto, mente e nada mais.
Orações,
asceses prolongadas, tudo é vão quando a mente está
distraída e confusa, disse o Onisciente... Sem a prática de
controlar a mente, as outras nada valem... Se a mente vagueia na distração,
tudo o que o estudo, a reflexão e a meditação puderem
produzir, esvai-se da memória como a água de um vaso rachado.
O
que me importa perder toda a minha fortuna, todas as honrarias, a própria
vida e mesmo qualquer outro bem espiritual? Mas, perder a minha mente, isso
nunca! [Perder a mente, aqui, simbolicamente, significa entregá-la
em uma bandeja de ouro ao demônio interior, que muitos, abestalhadamente,
adoram construir e alimentar a pão-de-ló e outras guloseimas.]
A
inconsciência é um ladrão sempre à espera de
um eclipse da atenção; assim, despojados do mérito
acumulado, caímos nos destinos fatais. As emoções negativas
são um bando de piratas à procura de uma passagem; se a encontram,
pilham-nos toda a virtude e arrasam a fortuna, que é um renascimento
nos Mundos Superiores.
Se
decidimos começar uma atividade, não devemos pensar em outra
antes de a acabar, agindo de mente inteira. Deste modo, o que fizermos será
bem feito; senão, ambas as ações serão defeituosas,
e a confusão que nasce da falta de vigilância não parará
de crescer. [A regra é: Uma coisa de cada vez, cada vez na sua
vez.]
Quando
a mente se mostra excitada, trocista e orgulhosa, ou vaidosa, inquiridora
e rancorosa, insidiosa, ávida de elogios, desdenhosa, grosseira e
brigona, devemos ficar quietos como uma tora. [Entoar um som vocálico
(mantra) ajuda muito.]
Devemos
ver no corpo uma barca que vai e que vem. Que o corpo vá e que venha
segundo a tua vontade de conduzir os seres à sua finalidade.
As
perfeições, a começar pela generosidade e indo por
aí acima, vão tendo uma excelência cada vez maior. Não
se deve sacrificar uma grande causa a uma causa menor, e, acima de tudo,
que seja considerado o proveito dos outros.
Não
existem pensamentos que os Bodhisattvas4 não
devam aprender, e para quem se instrui assim, tudo é acumulação
de méritos. [Nada deve ser considerado como inútil, desimportante
ou menor; aprende-se tanto com um catedrático quanto com quem tem
apenas instrução primária ou com quem sequer instrução
tem.]
Um
só instante de raiva destrói a generosidade, a veneração
pelos Buddhas e o bem que fizemos ao longo de milhares de Kalpas! Não
há vício pior do que a raiva nem ascese comparável
à paciência. Por isso, devemos cultivar ativamente a paciência
pelos mais diversos meios. A mente nunca goza a paz, a alegria e o bem-estar,
nem vive equilibrada ou dorme tranqüila, enquanto tiver a fechadura
da raiva cravada na mente. [O maior conselho que um velho Alquimista
deixou aos interessados na arte-ciência da Alquimia foi: paciência,
esperança, trabalho. Outro grande adepto do século XV,
em carta a seu filho, recomendou: a paciência é a escada
dos filósofos, e a humildade a porta do seu jardim.]
Nada
existe que através do exercício não possa ser realizado.
Se formos nos habituando a sofrimentos ligeiros, acabaremos por ser capazes
de suportar sofrimentos maiores.
A
dor não perturba a serenidade do sábio. Não é
verdade que o sábio se bate contra as paixões? Ora, não
há guerras sem dores.
Tudo depende de uma causa e a própria
causa é também dependente.
A
mente imaterial, de modo algum, pode ser atingida; se ela é tocada
pela dor física é por causa do seu apego ao corpo.
Mais
vale morrer hoje do que me arrastar incorretamente pela vida afora. De qualquer
modo, mesmo que viva muito tempo, a dor da morte será idêntica.
[Há uma diferença incontornável entre morrer e
Morrer: morrer realmente dói; Morrer Illumina.]
Depois
de grandes lucros e de deliciosos deleites, partirei nu, com as mãos
vazias, como um homem despojado pelos ladrões. [Se daqui nada
poderá ser levado, por que cobiça, avareza e egoísmo?
Como explica o Mestre Kut Hu Mi, o 'Devachan' é um estado, digamos,
de intenso egoísmo, durante o qual o Ego (combinação
do Sexto e Sétimo Princípios) colhe a recompensa do seu altruísmo
na Terra. Está completamente mergulhado na felicidade de todos os
seus afetos pessoais, preferências e pensamentos terrenos, e recolhe
o fruto de suas ações meritórias. Nenhuma dor, nenhuma
pena, nem mesmo a sombra de uma aflição obscurecem o brilhante
horizonte de sua incontaminada felicidade, porque é um estado de
perpétuo 'mâya' [ilusão, fantasia ou, filosoficamente,
'como se fosse']. Vai ao 'Devachan' o ego pessoal, mas beatificado,
purificado, santificado. Todo Ego que, depois do período de gestação
inconsciente, renasce no 'Devachan' é necessariamente tão
puro e inocente como uma criança recém-nascida. O fato de
haver renascido comprova, já por aí, a preponderância
do bem sobre o mal em sua velha personalidade. E, enquanto o 'karma' (do
mal) fica temporariamente suspenso, para segui-lo mais tarde em sua futura
encarnação terrena, ele só leva ao 'Devachan' o 'karma'
de suas boas obras, palavras e pensamentos.]
Somos
todos escravos dos nossos atos, não há razão para querer
mal aos outros. [Somos,
também, escravos dos nossos pensamentos e das nossas palavras.]
Os
elogios, as honrarias e a glória nada adiantam ao teu mérito
e tampouco à duração da vida, à força,
à saúde e ao bem-estar físico... Os elogios arruínam,
ao mesmo tempo, a paz de mente e a renúncia ao mundo, provocam a
inveja pelos homens de mérito e devastam as qualidades que se tem.
É
através dos seres, assim como dos Buddhas, que obtemos as virtudes
de um Buddha; no entanto, a veneração que devotamos aos Buddhas
nós a recusamos aos seres. Por que esta distinção?
[Por isto, perguntarei: quem é mais importante, uma Entamoeba
hystolytica ou um Hippopotamus amphibius?]
Os
Buddhas se satisfazem com a felicidade dos seres; quando os seres sofrem,
os Buddhas se entristecem. Quando satisfazemos os seres, satisfazemos os
Buddhas; quando os ofendemos, ofendemos os Buddhas.
Assim
como sem vento não há movimento, sem perseverança o
mérito espiritual é certamente impossível. O que é
a perseverança? A perseverança é o entusiasmo pelo
bem. Quem são os seus adversários? A indolência, o apego
ao mal, o desencorajamento e o desprezo de si... Como um floco de algodão
obedece ao vaivém do vento, deixemo-nos conduzir pela perseverança;
é assim que se atinge a finalidade! [Ora, lege et labora.]
Como
podes permanecer tão tranqüilo quando tens perante ti os infernos
que constróis com as tuas próprias ações?
[Grifo meu].
Não
nos devemos desencorajar pensando: "Como hei de conseguir a iluminação?"
O Tathagata5 disse, em boa verdade, que outrora foram
moscas, moscardos, mosquitos ou vermes os que, pelo seu esforço,
obtiveram a iluminação, tão difícil de alcançar.
Ora, eu que nasci como humano, capaz de discernir o bem do mal, porque não
haveria eu também, seguindo as regras dos Oniscientes, de obter a
iluminação? [Por isto, insisto e perguntarei novamente:
quem é mais importante, uma Entamoeba hystolytica ou um
Hippopotamus amphibius?]
Para
quem fica inativo por desencorajamento, não tem fim a sua fraqueza.
Quem for enérgico e confiante será capaz de enfrentar as maiores
dificuldades.
Seja
qual for a circunstância, apenas realizarei o bem!
O
homem cuja mente se dissipa é presa das garras da cobiça.
O isolamento físico e mental elimina qualquer possibilidade de distração.
Por isso, renunciemos ao mundo e abandonemos as preocupações.
[Melhor: renunciemos ao mundo, às ilusões do
mundo, sem do mundo nos afastarmos. Pois, se nos afastamos do mundo –
stricto sensu – como poderemos fazer o bem? Como poderemos
aprender e ensinar? Como poderemos receber e partilhar? Como poderemos todo
o resto? Tenho certeza de que o Bodhisattva Shantideva pensava
assim.]
Todo
projeto no qual a mente procura o prazer, enganada por uma falsa felicidade,
transforma-se em um sofrimento mil vezes maior. Se és sábio,
não procures o prazer; tal busca engendra o perigo. Os objetos de
prazer têm por natureza não durar; compreende-o e permanece
firme.
O
homem nasce só e morre só; ninguém
pode partilhar parte da sua pena. Então, o que são para ele
os amigos? Meros escravos. [Misticamente, todos nós somos escravos
de todos. É esta escravidão místico-espiritual que
suporta e justifica o axioma: Somos todos Um.]
A
cobiça é uma fonte de infelicidade neste mundo e no outro.
Nesta vida, a prisão, a morte, as mutilações... Na
outra, o inferno... Os escravos da cobiça sofrem muito mais do que
os Bodhisattvas e não atingem a iluminação. [Sim.
O inferno que criarmos em vida será o mesmo inferno que vivenciaremos
depois de morrer. Nem mais um tiquinho, nem menos um tiquinho.]
Devo
combater a dor dos outros porque é dor, como a minha. Devo fazer
bem aos outros porque são seres vivos, como eu... Todas as dores,
sem distinção, são impessoais; devemos combatê-las
enquanto dor. Por que fazer restrições? [Enquanto um
único ser estiver padecendo, todos nós seremos padecedores.
A sede, a fome e a miséria de um são a sede, a fome e a miséria
de todos.]
Nada
de desejo de retribuição! Um só desejo – o bem
dos outros! Por isso, da mesma maneira que me protejo de todo o mal, terei
pelos outros pensamentos de proteção e de bondade... Assim
como tens vontade de te defender contra a mais pequena ofensa, é
indispensável que o pensamento de proteção e de bondade
para com os seres se torne em ti um hábito.
Quem
quiser se salvar rapidamente a si e aos outros, deverá praticar o
Grande Segredo: a troca de si pelos outros. [Esta é uma das
aplicações práticas da Lei da Assunção.]
Aquele
que impõe a um outro a tarefa de trabalhar para si terá por
retribuição a escravatura. O que se impõe a tarefa
de trabalhar para os outros terá por recompensa o poder. Todos os
que são infelizes, são-no por terem procurado a sua própria
felicidade. Todos os que são felizes, são-no por terem procurado
a felicidade dos outros. [Aqui vale a pena lembrar que a prática
das boas obras só tem valor se estribada em imperativos categóricos.
Como deixou escrito Immanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724
– Königsberg, 12 de fevereiro de 1804) nos seus Fundamentos
da Metafísica dos Costumes, existe... só um imperativo categórico,
que é este: Age somente, segundo uma máxima tal, que possas
querer, ao mesmo tempo, que se torne lei universal. E o Mahabharata
adverte: Este é o resumo de todos os deveres: não
façais nada aos outros que, se fosse feito a vós, vos causasse
mágoa.]
Todas
as catástrofes, todas as dores e todos os perigos do mundo provêm
do apego ao ego. Por que hei de me agarrar a este demônio?
Passaste
séculos inumeráveis em busca dos teus interesses e o preço
que recebeste desse imenso esforço foi dor e mais dor... Se procuras
a alegria, não cuides de ti. Se te queres proteger, protege sempre
os outros.
No
interesse do mundo, renuncio, sem reserva, ao meu corpo. Se o conservo,
apesar dos seus defeitos, é como um instrumento de ação.
Se
desejarmos a cessação da dor, devemos fazer nascer em nós
a Sabedoria.
Uma
ilusão dura tanto quanto a combinação das causas que
a produziram... Enquanto as causas da ilusão não forem arrancadas,
a ilusão tampouco o é; mas desde que as causas sejam arrancadas,
a ilusão cessa de se produzir, mesmo segundo a verdade relativa.
O
Dharma6 tem por raiz uma vida monástica
autêntica; ora, é difícil ser um monge autêntico:
uma mente apegada a conceitos só dificilmente pode atingir o Nirvana.7
Liberto
do apego e do medo, o Bodhisattva permanece no Samsara para o bem dos seres
que sofrem por ignorância. Tal é o fruto da realização
da vacuidade. [Por este motivo, mais acima afirmei: renunciemos
ao mundo, às ilusões do mundo, sem do mundo nos afastarmos.
Pois, se nos afastamos do mundo – stricto sensu – como
poderemos fazer o bem?]
Ishvara,
o Todo-poderoso, é a causa do mundo, dizem. Mas, primeiro, o que
é o Todo-poderoso? Se são os elementos, seja! É inútil
nos atormentarmos por um simples nome. [In Corde loquitur nostro
Vox Dei. Em nosso Coração fala a Voz de Deus.]
O
Samsara está repleto de abismos. Nele, o sentido
último quase não tem lugar, tudo é contradição,
a realização está ausente... O Samsara encerra oceanos
de dor sem igual, terríveis e infinitos. É o domínio
da fraqueza e das existências breves. É aí que gastamos
rapidamente dias inúteis cuidando da nossa vida, da saúde...
com fome, cansaço, sono, acidentes... em relações estéreis
com pessoas tolas. Como é difícil atingir o discernimento!
Onde encontrar no meio de tudo isto o meio de refrear o hábito da
distração? [Se eu tivesse que responder a esta pergunta,
eu diria: no Santo Silêncio do nosso Coração.]
Que
os animais parem de se devorar entre si! Que os cegos vejam... Que os surdos
ouçam... Que as mulheres dêem à luz sem dor... Que os
maltrapilhos recebam roupas... Que os esfomeados encontrem comida... Que
os sequiosos tenham água e bebidas deliciosas... Que os corações
despedaçados retomem a esperança, a força e o êxito...
Que os doentes recuperem rápido a saúde e que a doença
seja desconhecida no mundo... Que todas as regiões sejam propícias
aos viajantes e que os ajudem no sucesso das suas viagens... Que os navegadores
realizem os seus desejos, e que regressem tranqüilamente aos portos
e se regozijem com as suas famílias... Que os viajantes perdidos
e dolentes encontrem companheiros e se façam ao caminho sem fadiga,
ao abrigo do perigo dos ladrões e dos tigres... Que os deuses protejam
as crianças, os velhos e os abandonados, adormecidos em regiões
inóspitas e desertas, vencidos pelo cansaço... Que os seres
estejam sempre ao abrigo das condições difíceis, cheios
de fé e de sabedoria, de compaixão e de meios de subsistência
puros, com boa conduta, relembrando-se das vidas anteriores... Que [todos
os seres] vivam em harmonia, em paz e em independência... Que
os seres sem esplendor se tornem resplandecentes! Se são marcados
fisicamente pela provação, que ganhem corpos lindos e perfeitos...
Que os humildes se tornem grandes e os orgulhosos sem orgulho... Que todos
os seres gozem de uma vida ilimitada! Que vivam eternamente felizes! Que
o nome mesmo da morte desapareça! Que nenhum ser seja infeliz, maldoso,
doente, temeroso, desprezado ou angustiado... E que todo o espaço
fique repleto de Buddhas e de Bodhisattvas, embelezado de parques com árvores
maravilhosas e encantadas pelo som do Dharma!
Enquanto
dure o espaço e o mundo, possa eu trabalhar para destruir as dores
do mundo!
______
Notas:
1.
Bodhichitta: mente da iluminação, pensamento da iluminação;
o voto de atingir a iluminação com o único fim de libertar
todos os seres do sofrimento e de conduzi-los ao estado búddhico.
Trata-se também do conjunto de práticas que permitem a realização
deste voto.
2.
Jina: vitorioso, vencedor, conquistador; é um epíteto
dos Buddhas.
3.
Segundo a cosmologia buddhista, os mundos (chakravala)
estão submetidos a um processo alternativo de formação
e de dissolução. O período que decorre entre o início
de um mundo e a formação do mundo seguinte é chamado
de mahakalpa (grande ciclo); este é formado por quatro períodos
incomensuráveis (asankhyeya-kalpa) que correspondem às
fases de formação, duração e dissolução
do mundo, mais o período intermediário de caos que precede
a formação de um novo mundo. Cada asankhyeya-kalpa contém
vinte antara-kalpas. Um antara-kalpa é o período
durante o qual a duração da vida humana, que é de dez
anos à partida, cresce até atingir a duração
de um asankyeya-kalpa e, de novo, decresce até dez anos.
O fim de cada antara-kalpa é marcado por sete dias de guerra,
sete meses de epidemias e sete anos de fome.
4. Bodhisattva:
ser da iluminação. Aquele que se liberta do Samsara*
realizando todas as qualidades da iluminação, mas que, ao
mesmo tempo, manifesta-se por compaixão para ajudar os seres. Progride
até o estado búddhico, aprofundando a sua realização
da vacuidade unida à compaixão. Nunca age por interesse pessoal:
todas as suas ações, palavras e pensamentos são consagrados
ao bem dos outros.
*
Samsara: o ciclo das existências onde reinam o sofrimento
e a frustração engendrados pela ignorância e pelas emoções
conflituosas que dela resultam.
5. Tathagata:
aquele que chegou ao tal qual; um sinônimo de Buddha.
6. Dharma:
conjunto dos ensinamentos expressos pelos Buddhas e pelos Mestres
Realizados que mostram o caminho para a iluminação. Há
dois tipos: o Dharma das escrituras, que é o suporte dos
ensinamentos, e o Dharma da realização, que é
o resultado da prática espiritual.
7. Nirvana:
o estado para além do sofrimento; o fato de se libertar do sofrimento
e do Samsara. Não é a realização última
do estado búddhico.
Páginas
da Internet consultadas:
http://www.institutouniao.com.br/
meditacao/
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http://unsmomentoschamadosunicos.blogspot.com/
2007/10/uma-mosca-no-caf.html
Mantra:
OM
MANI PADME HUM HRI
Fonte:
http://www.sintoniasaintgermain.com.br/
mantras_budistas.html