Apolônio
de Tiana
Por
mim discerni uma certa sublimidade na disciplina de Pitágoras,
e como uma certa sabedoria secreta capacitou-o a saber, não
apenas quem ele era a si mesmo, mas também o que ele tinha
sido; e eu vi que ele se aproximou dos altares em estado de pureza,
e não permitia que a sua barriga fosse profanada pelo partilhar
da carne de animais; e que ele manteve o seu corpo puro de todas
as peças de roupa tecidas de refugo de animais mortos; e
que ele foi o primeiro da humanidade a conter a sua própria
língua, inventando uma disciplina de silêncio descrito
na frase proverbial, 'Um boi senta-se sobre ela.' Eu também
vi que o seu sistema filosófico era em outros aspectos oracular
e verdadeiro. Então corri a abraçar os seus sábios
ensinamentos...
Pitágoras
disse que a arte mais divina era a arte da cura. E se a arte da
cura é a mais divina, deve ocupar-se tanto da alma como do
corpo; pois nenhuma criatura pode estar bem enquanto a parte superior
em si está doente.
Heráclito
jamais aconselhou as pessoas de Éfeso a limparem a sujeira
com sujeira.
Se
Palámedes (famoso
por sua sabedoria e inventor do farol, da balança, do alfabeto
e do disco) inventou a escrita, não foi somente
para que se pudesse escrever, mas a fim de que se saiba quando não
é preciso escrever.
Durante
toda sua vida Apolônio insistiu que em uma encarnação
anterior havia sido Palámedes. A Palámedes ofereceu
a seguinte invocação: — Oh!, Palámedes!
Esquece a ira, pois te enfureceste contra os aqueus. Concede que
os homens possam se multiplicar em número e em sabedoria.
Sim – Oh!, Palámedes! – autor de toda eloqüência,
autor das Musas, autor de mim mesmo.
Todos,
enquanto somos, estamos na prisão durante a duração
do que se chama a vida. Nossa alma, ligada a esse corpo perecível,
sofre males numerosos, e é escrava de todas as necessidades
de sua condição de homem.
Os
homens mais sábios são os mais breves em seu discurso.
Se os tagarelas sofressem o que fazem os outros sofrerem, não
falariam tanto.
Se
oferecem dinheiro a Apolônio, que se lhe pareça estimável,
não terá dificuldades em aceitá-lo, por pouco
que dele tenha necessidade. Mas um salário para que ele ensine,
jamais, mesmo na necessidade, ele não o aceitará.
Conservastes
todos os ritos dos sacrifícios, todo o fausto da realeza.
Como banqueteadores e alegres convivas, sois irrepreensíveis;
mas quantas censuras não se têm a vos fazer, como vizinhos
da deusa noite e dia! Não é de vosso meio que saem
os gatunos, os bandidos, os mercadores de escravos, todos os homens
injustos e ímpios? O templo é um covil de ladrões.
Por
toda a parte sou olhado como um homem divino; em alguns lugares
mesmo tomam-me por um deus. Na minha pátria, ao contrário,
sou até aqui desconhecido. É preciso com isso se espantar?
Vós mesmos, meus irmãos, eu o vejo, não estais
convencidos ainda de que sou superior a muitos homens pela palavra
e pelos costumes. E como meus concidadãos e meus parentes
se enganaram a meu respeito? Ai!, este erro me é muito doloroso!
Eu sei que é belo considerar toda a Terra como sua pátria
e todos os homens como seus irmãos e seus amigos, uma vez
que todos descendem de Deus e são de uma mesma natureza,
uma vez que todos têm igualmente as mesmas paixões,
uma vez que todos são homens igualmente, quer tenham nascido
Gregos ou bárbaros.
A
alma é imortal. Quando o corpo está esgotado, semelhante
a um corcel veloz que vence a carreira, a alma se lança e
se precipita no meio dos espaços etéreos, cheia de
desprezo pela triste e rude escravidão que sofreu. Mas que
vos importam essas coisas! Vós as conhecereis quando não
fordes mais. Enquanto estais entre os vivos, por que procurar penetrar
esses mistérios?
Se
alguém disser que é meu discípulo, então
que acrescente que se mantém à parte das termas, que
não mata nada vivo, que não come carne, que é
livre de inveja, da malícia, do ódio, da calúnia
e de sentimentos hostis, mas que tem seu nome inscrito entre a raça
dos que alcançaram a liberdade.
Não
existe a morte de ninguém, exceto na aparência; e não
existe qualquer nascimento, a não ser aparente. A mudança
do ser para o tornar-se parece ser o nascimento, e a mudança
do tornar-se para o ser parece ser a morte, mas na verdade ninguém
jamais nasce, e jamais alguém perece. Simplesmente um ser
é visível, e então, invisível; o primeiro
pela densidade da matéria, o último pela sutileza
do ser – um ser que é o mesmo sempre, sua única
modificação sendo o movimento e o repouso. Pois o
ser tem esta peculiaridade necessária: sua mudança
não é produzida por nada externo a si; mas o todo
se torna partes e as partes se tornam o todo na unidade de tudo.
E se for perguntado: o que é isto que às vezes é
visto e às vezes é invisível, ora no mesmo,
ora no diferente? Poderia ser respondido: é o modo de todas
as coisas aqui no mundo inferior, que quando estão cheias
de matéria são visíveis devido à resistência
de sua densidade; mas são invisíveis devido à
sua sutileza quando se livram da matéria, mesmo que a matéria
ainda as circunde e flua através delas naquela imensidão
de espaço que existe nelas, mas que não conhece nascimento
ou morte.
Já
que os Deuses conhecem todas as coisas, imagino que alguém
que entre no templo com uma consciência correta em si rezaria
assim: ‘Dai-me – Oh!, Deuses! – o que me cabe!'
Oh!,
Deuses! Concedei-me o que eu mereço.
Devo
ir aonde a Sabedoria e os Deuses me conduzirem.
Deus
do Sol! Envia-me sobre a Terra até onde for bom para Ti e
para mim; e que eu possa conhecer o bem, e jamais conhecer o mal
ou ser conhecido por ele.
Se
realmente tivésseis algum conhecimento da natureza do culto
do Fogo, veríeis que muitas coisas são reveladas no
Disco do Sol no momento de seu nascimento.
Eu
não me importo com as constituições; minha
vida é governada pelos Deuses.
Concedei
– Oh!, Deuses! – que eu tenha pouco e que não
precise de nada.
Eu
oro para que a retidão possa imperar, para que as leis permaneçam
intactas, para que o sábio seja pobre e os outros, ricos,
mas honestamente.
Olhai
a marujada! Vede como alguns aprontaram os botes, alguns subiram
as âncoras e as prenderam, alguns dispuseram as velas para
aproveitar o vento, como outros ainda verificaram a proa e a popa.
Mas, se um único homem falhar em desempenhar uma só
de suas tarefas ou negligenciar suas atribuições,
a navegação será ruim e terão a tempestade
no meio deles. Todavia, se emularem entre si, tentando equiparar-se
cada um a seus companheiros, tal barco terá céus favoráveis
e um bom tempo e uma boa viagem sucederão.
Maior
do que o famoso Colosso... é o homem que anda
nos honestos sendeiros da Sabedoria que nos dá a saúde.
Damis:
— É um erro falar de filosofia com homens
tão quebrantados em espírito como estes.
Apolônio:
— Não, são
eles exatamente as pessoas que mais desejam que alguém lhes
fale e os conforte.
Uma
vida 'ex tempore'1
é a que eu sempre levei.
Tigelino:
— O que pensais
de Nero?
Apolônio:
— Penso melhor dele do que vós. Vós
acreditais que ele deveria cantar; eu penso que ele deveria se manter
em silêncio.
Vespasiano:
— Ensina-me o que
deveria fazer um bom rei.
Apolônio:
— Vós me pedis o que não pode ser
ensinado, pois a realeza é a maior coisa ao alcance do mortal,
e não é ensinada. Mas, vos direi o que, se fizésseis,
faríeis bem. Não considereis a riqueza que é
acumulada. Em que ela é superior à areia reunida casualmente?
Nem aquela que provém de pesadas taxações que
oprimem os homens, pois o ouro que vem das lágrimas é
vil e negro. Empregareis melhor do que qualquer rei a riqueza, se
atenderdes às necessidades dos desfavorecidos e garantirdes
a riqueza dos que possuem muito. Temei o poder de fazer o que vos
aprouver, assim o usareis com maior prudência. Não
apareis as espigas que sobressaem dentre as outras, [...]
mas, antes, separai sua animosidade como o joio dentre o grão,
e intimidai os agitadores em disputa não dizendo 'eu vos
puno’, mas ‘irei fazê-lo’. Submetei-vos
à lei – Oh!, Príncipe! – pois fareis leis
mais sábias se vós mesmos não desprezardes
a lei. Sê mais reverente do que nunca aos Deuses; grandes
são as dádivas que recebestes Deles, e orai por grandes
coisas. No que tange ao Estado, agi como rei; no que tange a vós
mesmos, agi como um homem comum.
Quando
perguntado por que nunca levantava questões, respondeu:
Porque eu fazia perguntas quando era jovem, e não é
minha tarefa levantar questões agora, mas ensinar às
pessoas o que eu descobri.
Damis:
— Partamos, Apolônio,
tu seguindo Deus e eu a ti.
Apolônio:
— Eu, meu bom amigo, entendo todas as linguagens,
embora jamais tenha aprendido nenhuma. Não precisas te admirar
de meu conhecimento de todas as linguagens, pois, para te dizer
a verdade, eu também conheço todos os segredos do
silêncio humano.
Oh!
tu, Sol! Manda-me sobre a Terra até aonde for agradável
a mim e a ti, e possa eu associar-me aos homens bons, mas jamais
ouça nada dos maus, nem eles de mim.
Respeite
muitos; confie em poucos.
Vive
sem ser observado, e se isso for impossível, sai da vida
sem que te observem.
Carta
a Iarcas: Eu vim a vós a pé, mas vós
me presenteastes com o mar; mas compartilhando comigo vossa sabedoria,
vós me fizestes até mesmo voar pelos céus.
Se
entronizardes um falcão ou uma coruja ou um cão em
vossos templos, para representar Apolo ou Atena ou Hermes, podeis
dignificar os animais, mas fareis os Deuses perder dignidade.
O
perigo é que as pessoas comuns adorem os símbolos
e concebam idéias deformadas sobre os Deuses. O melhor seria
não haver representação alguma. Pois a mente
do adorador pode formar e adequar para si uma imagem do objeto de
sua adoração melhor do que qualquer arte.
Sócrates
não era tolo. Jurava pelos cães e pelos gansos como
se fossem Deuses para evitar jurar pelos Deuses.
A
lei nos obriga a morrer pela liberdade; a Natureza ordena que morramos
por nossos pais, nossos amigos ou nossos filhos. Todos os homens
estão ligados por estes deveres. Mas um dever superior é
imposto sobre o sábio: ele deve morrer por seus princípios
e pela verdade que defende – mais cara que a vida. Não
é a lei que lhe impõe a escolha, não é
a Natureza; é a força e a coragem de sua própria
alma. Mesmo que o fogo e a espada lhe aflijam, não sobrepujarão
sua resolução ou o obrigarão à menor
falsidade; mas ele guardará os segredos das vidas alheias
e tudo o que lhe for confiado à honra tão religiosamente
como os segredos da Iniciação. E eu sei mais do que
os outros homens, pois sei que de tudo o que sei, algumas coisas
são para o bom, outras para o sábio, outras para mim
mesmo, outras para os Deuses, mas nada para os tiranos. Além
disso, penso que um homem sábio não faz nada sozinho
ou por si mesmo, e nenhum pensamento seu é secreto, pois
ele mesmo é sua testemunha. E se o ditado famoso ‘conhece-te
a ti mesmo’ é de Apolo ou de algum sábio que
aprendeu a conhecer-se e proclamou-o como um bem para todos, penso
que o homem sábio que conhece a si mesmo e traz seu espírito
em constante camaradagem, para lutar à sua destra, não
temerá o que o vulgo teme nem condescenderá em fazer
o que a maioria dos homens faz sem a menor vergonha.
É
possível para os homens não cometer erros, mas requer-se
homens nobres para reconhecer que os cometeram.
A
fama de Apolônio ainda era evidente no século III,
quando o Imperador Romano Lúcio Domício Aureliano
(270 – 275) sitiou Tiana, que tinha se rebelado contra as
leis romanas. Em um sonho ou em uma visão, Aureliano afirmava
ter visto Apolônio falar com ele, suplicando-lhe poupar a
cidade de seu nascimento. À parte, Aureliano contou que Apolônio
lhe disse: Aureliano,
se você deseja governar, abstenha-se do sangue dos inocentes!
Aureliano, se você conquistar, seja misericordioso!
Antigo
hino cantado por Apolônio durante toda sua vida: Tudo
se desgasta e murcha com o tempo, enquanto que o próprio
tempo jamais envelhece, mas permanece imortal por causa da memória.
Os
homens bons têm, em sua constituição, algo de
Deus. Devemos entender as coisas no céu e todas as coisas
no mar e na Terra, que são abertas à fruição
de todos os homens igualmente, embora seus destinos não sejam
iguais. Mas, existe também um universo dependente do homem
bom que não transcende os limites da sabedoria, que permanece
na necessidade de um homem moldado à semelhança de
Deus... Um homem para administrar e velar pelo universo das almas,
um deus enviado pela sabedoria capaz de afastá-los dos desejos
e das paixões.
Apolônio
de Tiana (2 a.C. – 98)