Antero Tarquínio de Quental
(Fragmentos escolhidos)

 

 

 

Antero de Quental

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga


 

 

 

Objetivo do Estudo

 

 

 

Revisitar Antero é perscrutar o meio-dia vero; é ouvir e refletir sobre o amor e tentar compreender a dor; é buscar-sem-buscar um certo patriotismo universal ao invés de, sentado ou deitado, esperar-esperando um milagre – milagrento-choroso, pigmento-abundoso, reatamento-esperançoso – que triunfe sobre o mal-que-não-é-mal. Antero – Oh!, Antero! Por quê? – no auge da exasperação, acabou por dar um tiro na noite da (des)razão, (des)razão, na altura, de uma alma [in]submissa. Não o julgo, como não julgo ninguém; de todos, estou mesmo aquém. Mas mesmo que, por um hipotético devaneio, de permeio, eu estivesse além, quem sou eu, que estou aquém, para julgar os catodos e os anodos, que, irmãos, todos, estiveram, estão ou estarão acima, embaixo ou no meio? Peregrino, neste mundo, que é e não é o meu mundo, hoje Rosa+Cruz – infelizmente, ainda mais para Cruz do que para Rosa – não mais um vira-mundo deste mundo, vou lutando, vou me libertando, vou rimando, mas, acima de tudo, vou tentando transmutar a minha-nossa Cruz. Por isto, hoje, resolvi reestudar Antero, e, sinceramente espero, que nele, como disse no começo deste mal rimado parágrafo-bolero, você possa, como eu, encontrar um pouquinho, neste pouquinho que selecionei, o que, para ele, se eu não me enganei, foi o seu meridiano-vero, austero e sincero.

 

É preciso, contudo, observar que, na maioria dos fragmentos, dos rompentes, dos fendentes, das boas-novas e dos lamentos, foi mantida a ortografia original, tal qual ortografada por Antero do Quental. Mais bolero lero, lero, lero!

 

 

 

 

Breve Biografia

 

 

 

Antero Tarquínio de Quental

Antero Tarquínio de Quental

 

 

Antero Tarquínio de Quental – jurista, escritor (poeta, ensaísta e filósofo), doutrinador e propagandista republicano e socialista – nasceu em 18 de abril de 1842 em Ponta Delgada, no Açores. Com dez anos foi para Lisboa completar seus estudos. Aos 16 anos, ingressou na Faculdade de Direito de Coimbra, onde tomou contato com as principais idéias vigentes em toda a Europa e acabou se afastando dos valores conservadores e católicos herdados na infância. Em 1863 (ou 1864), Antero foi Iniciado Maçom, em Coimbra, ainda que, em relação ao Grande Arquiteto do Universo, para ele silêncio sempre silente, tenha escrito: Só me falta saber se Deus existe. Nada a estranhar, pois grande parte da elite de Portugal estava filiada à Maçonaria, como, por exemplo, Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage, Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo, Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco e José Maria de Eça de Queirós.

 

Em 1864, publicou Odes Modernas, obra que, junto com Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras de Teófilo Braga, é responsável por provocar a polêmica Questão Coimbrã.1

 

Em 1865, foi para Paris com intenção de pôr em prática a sua teoria socialista.

 

Em 1871, após ver frustrada essa tentativa, retorna a Portugal e passa a ser um dos líderes das Conferências Democráticas, que determinam o fim da Questão Coimbrã, com a vitória dos jovens Realistas sobre os velhos Românticos.

 

A partir daí, Antero se dedica quase que exclusivamente à defesa dos ideais socialistas. Isto só muda 1873 quando seu pai falece e ele se vê forçado a retornar a Ponta Delgada para assumir os negócios da família. Para aumentar ainda mais seus sofrimentos, vê a violenta repressão às lutas operárias deitado de costas em uma cama, pois é atacado por uma estranha doença que o faz passar a maior parte nessa posição. Tudo isto vai, pouco a pouco, deixando-o muito deprimido, e, em 11 de setembro de 1891, por volta das 17 horas, atormentado por uma fome insaciável de justiça e de verdade, uma agonia filosófica sem-termo, Antero compra um revólver Lefaucheux. Pelas 20 horas, no Campo de São Francisco, lado norte, junto ao muro que fecha a cerca do Convento da Esperança, Antero suicida-se com dois tiros. Transportado para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia, não resiste e morre cerca das 21 horas, deixando capenga aquilo que se poderia denominar de reformas econômicas e sociais na Terra de minha mãe. Em 12 de setembro, às 17 horas, foi sepultado no cemitério de São Joaquim, em Ponta Delgada.

 

A produção poética de Antero de Quental está intimamente ligada à sua vida. Isto pode ser percebido claramente no livro Sonetos, organizado em oito partes pelo crítico literário Antônio Sérgio. Na primeira delas, Da Expressão Lírica do Amor-paixão, vemos um poeta lírico que segue as regras da Escola Romântica; na segunda parte, Do Apostolado Social, vemos uma poesia revolucionária voltada para o momento histórico da época e com uma nítida preocupação social; as outras seis partes (Do Pensamento Pessimista, Do Desejo de Evasão, Da Morte, Do Pensamento em Deus, Da Metafísica e Da Voz Interior e do Amor Puro Sempiterno) referem-se ao período em que ele retorna para Ponta Delgada é atacado pela estranha doença. Nas quatro últimas partes há ainda o predomínio dos temas metafísicos.

 

Devido à perfeição técnica dos seus sonetos, Antero de Quental é considerado um dos melhores sonetistas portugueses, dividindo este título apenas com Bocage e Camões.

 

 

 

 

Sobre Antero

 

 

 

Antero Tarquínio de Quental

Antero Tarquínio de Quental

 

 

Eça de Queirós: Um gênio que era um santo.

 

Bulhão Pato: Um sorriso que, no fundo, ainda quando vibrava alguma ironia, era sempre bom mas sempre triste.

 

Guerra Junqueiro: A juba de oiro leonina, a testa curta de Hércules Farnésio, o olhar azul cheio de intrepidez e de candura.

 

Oliveira Martins: Era um rapaz sedutor como nunca encontrei outro.

 

Alberto Sampaio: Não era só a inteligência que lhe dava um lugar proeminente, mas, sobretudo, o seu caráter e a sua grandeza de alma.

 

Artelivre.net: Com apenas 23 anos de idade, Antero de Quental ateava fogo no conformismo e na monotonia do ultra-romantismo em Portugal, indignava-se, conclamava à verdade e à justiça e dizia que o que ofendia a estas duas damas eram as idéias mesquinhas que estavam por trás dos homens, o mal profundo que as coisas apenas miseráveis representam.

 

Artelivre.net: Deus estava perdido como verdade emocional que se consuma pela fé. Restava, pelo intelecto, tentar alcançá-lo na curva do caminho, mas o poeta sabia que isso era impossível e que já não havia como retroceder, voltar às certezas. O suicídio surgiu talvez como alento, como forma de pôr fim ao impasse. Ficou a sua poesia, entranha, filosófica, dramática, única, a emoção cedendo lugar ao pensamento. Mas a razão não foi suficiente para apaziguar o santo Antero.

 

Celso L. Pagnan: Um homem guiado pela 'razão, irmã do Amor e da Justiça', propenso a fazer de Portugal o primeiro país comunista do mundo e a acabar com o romantismo de Antonio Feliciano de Castilho e seus seguidores.

 

Onésimo Teotónio Almeida: Antero foi comunista na América e capitalista em Portugal, americano em Lisboa e português em Nova Iorque.

 

Tatiana Alves Soares Caldas: Antero de Quental, um dos principais integrantes da chamada Geração de 70, grupo literário que deu início ao realismo português, apresentou uma produção literária que incluía obras de intenção social, filosófica e política. Sendo dotado de uma vasta cultura e de um olhar crítico acerca das questões de seu tempo, foi ainda um dos principais divulgadores do pensamento socialista em Portugal, marcando a influência do cientificismo na mentalidade oitocentista.

 

Ferreira de Brito: Na 'geração de setenta', ou com mais rigor, na 'geração de setenta e um', houve, na realidade, uma consciência muito aguda de geração nova. Como houve também um projecto progressivamente amadurecido na questão coimbrã, no cenáculo, e formulado por Antero, com carácter sistemático, na introdução às famosas CONFERêNCIAS DEMOCRáTICAS DO CASINO. Todos os jovens deste grupo acariciavam a ideia de uma renovação moral, política, religiosa e estética do país, manifestando muito embora na política, na religião e na literatura, um leque de posições bem pessoais e divergentes que, muito frequentemente, os faziam entrar em choque. Unia-os, porém, o traço comum da ideia nova, a expressão original no contexto europeu, mas de sabor hugoano, que haveria de nortear toda a sua actividade literária, entendida no sentido intervencionista de Herculano e de Garrett, marcando assim um novo estádio de (r)evolução na história da mentalidade lusa.

 

Ramalho Ortigão: Na intimidade, era impossível conhecê-lo sem o amar.

 

José Beluci Caporalini: Antero de Quental, o poeta luso, e Miguel de Unamuno, o poeta espanhol, são almas ibéricas irmãs na dor, na busca e no sofrimento agônico desesperado e que repousam na mão de Deus, na sua mão direita, cujas obras, em muitos pontos, têm muitas afinidades.

 

 

 

 

Lucubrações
Fragmentárias
Anterianas

 

 

 

 

 

 

 

A liberdade é um direito santo.

 

... Da decadência moral é esta a causa culminante! O Catolicismo do Concílio de Trento não inaugurou certamente no mundo o despotismo religioso: mas organizou-o de uma forma completa, poderosa, formidável, e até então desconhecida. Neste sentido, pode dizer-se que o Catolicismo, na sua forma definitiva, imobilizado e intolerante, data do século XVI.

 

As nações mais inteligentes, mais moralizadas, mais pacíficas e mais industriosas são exactamente aquelas que seguiram a revolução religiosa do século XVI: Alemanha, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos e Suíça. As mais decadentes são exactamente as mais católicas! Com a Reforma estaríamos hoje talvez à altura dessas nações; estaríamos livres, prósperos, inteligentes, morais… mas Roma teria caído!

 

Para sujeitar, na Terra, o homem, era necessário fazê-lo condenar primeiro no céu: por isso o Concílio de Trento começa por estabelecer dogmáticamente, na sessão 5, o pecado original, com todas as suas consequências, a condenação hereditária da humanidade, e a incapacidade de o homem se salvar por seus merecimentos, mas só por obra e graça de Jesus Cristo.

 

Na sessão 13 confirma-se e precisa-se o dogma da Eucaristia, já definido, ainda que vagamente, no 4º Concílio de Latrão, e vibra-se o anátema sobre quem não crer na presença real de Cristo no pão e no vinho depois da Consagração. É mais um passo (e este decisivo) para fazer entrar o Cristianismo no caminho da idolatria, para colocar o divino no absurdo. Poucos dogmas contribuíram tanto como este materialismo da presença real para embrutecer o nosso povo, para fazer reviver nele os instintos pagãos, para lhe sofismar a razão natural! Parece que era isto o que o Concílio de Trento desejava!

 

Na sessão 14 trata-se detidamente da Confissão. A Confissão existia há muito na Igreja, mas comparativamente livre e facultiva. No 4º Concílio de Latrão restringira-se já bastante essa liberdade. Na sessão 14 de Trento é a consciência cristã definitivamente encarcerada. Sem Confissão não há remissão de pecados! A alma é incapaz de se comunicar com Deus, senão por intermédio do padre! Estabelece-se a obrigação de os fiéis se confessarem em épocas certas, e exortam-se a que se confessem o mais que possam. Funda-se aqui o poder, tão temível quanto misterioso, do confessionário. Aparece um tipo singular: o director espiritual. Daí por diante há sempre na familia, imóvel à cabeceira, invisível mas sempre presente, um vulto negro que separa o marido da mulher, uma vontade oculta que governa a casa, um intruso que manda mais do que o dono. Quem há aqui, espanhol ou português, que não conheça este estado deplorável da familia, com um chefe secreto, em regra, hostil ao chefe visível? Quem não conhece as desordens, os escândalos e as misérias introduzidas no lar doméstico pela porta do confessionário? O Concílio de Trento não queria isto, decerto: mas fez tudo quanto era necessário para que isto acontecesse.

 

A redacção de um catecismo vem coroar esta obra de alta política. Com esse catecismo, imposto por toda a parte e por todos os modos aos espíritos moços e simples, tratou-se de matar a liberdade no seu germén, de absorver as gerações nascentes, de as deformar e torturar, comprimindo-as nos moldes estreitos duma doutrina seca, formal, escolástica e subtilmente ininteligível. Se se conseguiu ou não esse resultado funesto, respondam umas poucas de nações moribundas, enfermas da pior das enfermidades – a atrofia moral.

 

Sim, meus senhores! Essa máquina temerosa de compressão, que foi o Catolicismo depois do Concílio de Trento, que podia ela oferecer aos povos? A intolerância, o embrutecimento e depois a morte! ...O Catolicismo dos últimos três séculos, pelo seu princípio, pela sua disciplina, pela sua política, tem sido no mundo o maior inimigo das nações, e verdadeiramente o túmulo das nacionalidades. 'O antro da Esfinge' – disse dele um poeta filósofo – 'reconhece-se logo à entrada pelos ossos dos povos devorados'.

 

Com o jesuitismo desaparece o sentimento cristão, para dar lugar aos sofismas mais deploráveis a que jamais desceu a consciência religiosa: métodos de ensino, ao mesmo tempo brutais e requintados, esterilizam as inteligências, dirigindo-se à memória, com o fim de matarem o pensamento inventivo, e alcançam alhear o espírito peninsular do grande movimento da ciência moderna, essencialmente livre e criadora. A educação jesuítica faz das classes elevadas máquinas ininteligentes e passivas; do povo, fanáticos corruptos e cruéis. A funesta moral jesuítica, explicada (e praticada) pelos seus casuístas, com as suas restrições mentais, as suas subtilezas, os seus equívocos, as suas condescendências, infiltra-se por toda a parte, como um veneno lento, desorganiza moralmente a sociedade, desfaz o espírito de família, corrompe as consciências com a oscilação contínua da noção do dever, e aniquila os caracteres, sofismando-os, amolecendo-os.

 

Há em todos nós, por mais modernos que queiramos ser, há lá oculto, dissimulado, mas não inteiramente morto, um beato, um fanático ou um jesuíta! Esse moribundo que se ergue dentro de nós é o inimigo, é o passado. É preciso enterrá-lo por uma vez, e com ele o espírito sinistro do Catolicismo de Trento.

 

A natureza, em mim, é conservadora; só o espírito é revolucionário.

 

O Hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulações filosóficas, e posso dizer que foi dentro dele que se deu a minha evolução intelectual.

 

A grande revolução... só pode ser uma revolução moral, e essa não se faz de um dia para o outro nem se decreta nas espeluncas famosas das conspirações, e, sobretudo, não se prepara com publicações rancorosas de espírito estreitíssimo e ermas da menor idéia prática.

 

... Mais preciso pôr-me em comunhão com a alma coletiva.

 

... Fui sempre amigo de me achar em minoria.

 

... É preciso também chorar e amar aquilo mesmo que nos faz chorar.

 

Vou percebendo que o pessimismo de [Karl Edward von, 1842 – 1906] Hartmann se parece singularmente como o meu otimismo... Talvez eu tenha inventado a Filosofia do Inconsciente sem o saber!

 

... Choro – mas não me envergonho de chorar.

 

Eu cá vou indo. Cada vez mais místico e penso que daria um sofrível monge, se não fossem estes nervos miseráveis, inimigos da paz de espírito. Querem alguns dizer que muitos santos foram histéricos e nevróticos. Não posso crê-lo. Este estado de nevrose é o menos favorável à serenidade interior e, por conseguinte, à santidade.

 

Mas quem de amor nos lábios traz doçura
Esse é que leva a flor de uma alma pura!

 

Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e affirma o Bem!

 

E os que folgam na orgia impia e devassa
Ai! quantas vezes ao erguer a taça,
Param, e estremecendo, empalidecem!

 

Ausentes filhas do prazer: dizei-me!
Vossos sonhos quaes são, depois da orgia?
Acaso nunca a imagem fugidia
Do que fostes, em vós se agita e freme?

 

Um seculo irritado e truculento
Chama á epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz...

 

Mas cruzar, com desdem, inertes braços,
Mas passar, entre turbas, solitario,
Isto é ser só, é ser abandonado!

 

Assim a vida passa vagarosa:
O presente, a aspirar sempre ao futuro:
O futuro, uma sombra mentirosa.

 

Na minha opinião, é chegada a hora, para a Filosofia moderna, de examinar as verdades adquiridas, criticar e coordenar os diferentes pontos de vista, conciliar os sistemas. Observamos inúmeros índices a este respeito, e um dos mais surpreendentes é sem dúvida o enfraquecimento gradual do espírito de sistema, do fanatismo dogmático.

 

E dizem os captivos: Na amplidão
Jamais se extingue a eterna claridade...
A ave tem o vôo e a liberdade...
O homem tem os muros da prisão!

 

Amei a Deus e em Deus puz alma e tudo.
Fiz do seu nome fortaleza e escudo
No combate do mundo traiçoeiro.

 

Porque a noite é a imagem do Não-Ser,
Imagem do repouso inalteravel
E do esquecimento inviolavel,
Que anceia o mundo, farto de soffrer...

 

Porque a noite é a imagem da Verdade,
Que está além das cousas transitorias.
Das paixões e das formas ilusorias,
Onde sómente ha dor e falsidade...

 

Quantos tambem, de pé, mas esquecidos,
Ha-de a noite encontrar, sós e encostados
A algum marco, chorando aniquilados
As lagrimas caladas dos vencidos!

 

O mundo pareceu-me uma visão,
Um grande mar de nevoa, de ilusão...

 

E quanto adora quem adora o mundo,
Brilho e ventura, esperar, sorrir,
Eu vi tudo oscilar, pender, cair,
Inerte e já da cor d'um moribundo.

 

Ah! se Deus acendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria... ou porque a leva?

 

Nenhum de vós ao certo me conhece,
Astros do espaço, ramos do arvoredo,
Nenhum adivinhou o meu segredo,
Nenhum interpretou a minha prece...
.......................................................

Mixto infeliz de trevas e de brilho,
Sou talvez Satanaz; – talvez um filho
Bastardo de Jehovah;
talvez ninguem!

 

... Sendo a Morte, sou a Liberdade.

 

Pedindo à fórma, em vão, a idea pura,
Tropéço, em sombras, na materia dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.

 

Minh'alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

 

Afinal, é tudo quanto de mim sobrenadará se bem julgo, e se bem julgo. Será a autobiografia poética dum sonhador, dum crente – crente em quê no invisível, no insondável, no que não pode ser o que parece, porque então o Universo seria absurdo. Esta grande máquina não pode deixar de ter um fim. Eu chamo Liberdade a esse fim. Mas a Liberdade não consiste precisamente no desprezo do que é limitado, incompleto, transitório? Por conseguinte, no desprezo da Realidade?

 

A poesia moderna é a voz da revolução, é o nome que o sacerdote da história, o tempo, deixou cair sobre a fronte fatídica do nosso século.

 

Aspiração... desejo aberto todo
Numa ânsia insofrida e misteriosa...
A isto chamo eu vida: e, deste modo,

Que mais importa a forma? silenciosa
Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço
Cm homem igualmente e astro e rosa!

...........................................................

Através de mil formas, mil visões,
O universal espírito palpita
Subindo na espiral das criações!

...........................................................

Ide! crescei sem medo! não é avara
A alma eterna que em vós anda e palpita
Onda, que vai e vem e nunca pára!

...........................................................

Surgir! ser astro e flor! onda e granito!
Luz e sombra! atracção e pensamento!
Um mesmo nome em tudo está escrito...

...........................................................

Eis quanto me ensinou a voz do vento.

 

Nasce do orgulho aquele esteril goso
E a glória d'ele é cousa fraudulenta...

 

Pode ser que a reta seja o caminho da verdade ideal; mas a verdade humana, essa, como as voltas d'um doce ribeiro, ora costeando montes, ora ao longo dos vales, incerto na largura e na rapidez, essa segue todas as curvas caprichosas, mas necessárias, do sentimento.

 

 

 

 

Buscou quem o não quiz; e a mim, que o chamo,
Ha-de fugir-me, como a ingrato filho?
Ó Deus, meu pae e abrigo! espero!... eu creio!

 

A admiração torna a alma leve e feliz, e, por isso, devemos ser gratos às coisas belas que nos causam prazer. Admirando-as, melhorando-as.

 

O escritor quer o espírito livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, incorruptível e intemerato. Só assim serão grandes e fecundas as suas obras... nas quais se procura alcançar o bem, o belo, o verdadeiro...

 

A Idéia, o Sumo Bem, o Verbo e a Essência
Só se revelam aos homens e às nações
No céu incorruptível da Consciência!

 

Acorda! É tempo!

 

 

 

 

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

 

Não vos queixeis, ó filhos da anciedade,
Que eu mesmo, desde toda a eternidade,
Tambem me busco a mim... sem me encontrar!

 

Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre só a ti submissa.

 

Estou mais do que farto de representar este ridículo papel de mito, e 'il faut que ça finisse'. [e ele tem que terminar].

 

Camões – verdadeiro monumento – é um dos raros monumentos do gênio português, que não teve quem o apreciasse dignamente. Cada nação tem os seus representantes... nós temos Camões, mas creio que o ignoramos.

 

Há mais alta missão, mais alta glória:
O combater, à grande luz da história,
Os combates eternos da Justiça!

 

Com a Inquisição, um terror invisível paira sobre a sociedade. A hipocrisia torna-se um vício nacional e necessário; a delação é uma virtude religiosa. A expulsão dos judeus e dos mouros empobrece as duas nações (Espanha e Portugal), paralisa o comércio e a indústria e dá um golpe mortal na agricultura em todo o Sul da Espanha; a perseguição aos cristãos-novos2 faz desaparecer os capitais; a Inquisição atravessa os mares e, tornando-nos hostis aos índios, impedindo a fusão dos conquistadores e dos conquistados, torna impossível o estabelecimento duma colonização sólida e duradoura. Na América, despovoa as Antilhas, apavora as populações indígenas e faz do nome cristão um símbolo da morte. O terror religioso, finalmente, corrompe o caráter nacional e faz de duas nações generosas, hordas de fanáticos endurecidos, o horror da civilização.

 

Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: — «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triumfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
N'um turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: — «Homens! Por que é que nos criastes?»

 

Não busco n'esta vida glória ou fama:
Das turbas que me importa o vão ruído?
Hoje, deus... e amanhã, já esquecido
Como esquece o clarão de extincta chama!

 

Na essencia do amor puro, sempiterno...
Quero só n'esse fogo consumir-me!

 

Como Lisboa seria linda se fosse uma simples cidade de província! Mas estes ares de corte, estes políticos, estes burocratas estragam e maculam os mais belos dons da Natureza.

 

É incrível a desarmonia que há entre a minha razão e o meu sentimento, e este, por mais que faça, nunca chega a afinar pelo tom grave e profundo daquela.

 

A desarmonia pode existir nos fatos do mundo, nas formas aparentes, jamais nas leis eternas. E os atos do espírito, se parecem contradizer-se, ... no fundo o movimento é o mesmo, e a contradição visível esconde uma concordância íntima profundíssima, por que o espírito é uno e simples... O que deseja o Coração, o que quer a Inteligência, é uma coisa só: Luz e Amor.

 

Tenho envelhecido voluntariamente, o que é uma grande coisa... As desilusões são a sabedoria que vem ter conosco disfarçada de carrasco. Mais tarde é que se conhece isso.

 

Não é lisonjeando o mau gosto e as péssimas idéias das maiorias, indo atrás delas, tomando por guia a ignorância e a vulgaridade, que se hão de produzir as idéias, as ciências, as crenças, os sentimentos de que a Humanidade contemporânea precisa.

 

Conquista pois sozinho o teu futuro...
...........................................................

Ergue-te, então na majestade estóica
Duma vontade solitária e altiva,
Num esforço supremo de alma heróica!

 

Se as ciências nada têm que ‘ver’ com a interrogação, a Filosofia é que tem muito e tudo.

 

A idéia de evolução implica necessariamente a de finalidade; esta contém a explicação racional daquela, que, só por si, é ininteligível e até contraditória. Se o movimento, ato essencial da matéria, é autônomo – e é esta a tese monista fundamental – tal movimento não pode ser concebido senão como um impulso espontâneo, por conseguinte, como uma verdadeira determinação voluntária. Ora, onde há determinação voluntária sem móbil, sem fim? Por isso, a ideia de finalidade é a pedra angular de toda a construção filosófica no terreno da Natureza.

 

Quem diz evolução diz progresso. Ora, o progresso que não tende para coisa alguma, que não tem um tipo e um fim não se compreende. Se não há tipo, não há medida ou termo de comparação na série, não há, por conseguinte, hierarquia: há variedade de formas paralelas e equivalentes, mas não desenvolvimento.

 

Na capela, perdida entre a folhagem,
O Cristo lá no fundo agonizava.
Oh! Como inteiramente se casava
Com minha dor a dor daquela imagem.

 

Sonhei – nem sempre o sonho é coisa vã –
Que um vento me levava arrebatado,
Através desse espaço constelado
Onde uma aurora eterna ri louçã...

 

Cada pedra que cai dos muros lassos
Do trémulo castelo do passado,
Deixa um peito partido, arruinado,
E um coração aberto em dois pedaços!

 

Almas que vão, por entre luz e horrores,
Passando a barca d'esse aereo Acheronte...
3

 

Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há [aí] senão ser triste?

 

 

 

 

Morrerei, depois de uma vida moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez de pensamentos tão irmãos das mais íntimas aspirações da alma humana e, como diziam os antigos, na paz do Senhor. Assim o espero.

 

Cheia de Graça, Mãe de Misericordia
...............................................................

É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...

 

No céo, ó virgem! findarão meus males:
Hei-de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter só nascido para dôres.

 

 

 

Observação: a pintura de fundo – Jesus, o Gentio Ariano –
é de autoria de Harvey Spencer Lewis. (Fonte: AMORC).

 

 

 

Dentro do homem está Deus – 'um Deus desconhecido', já o dizia Sócrates. Não sei qual é, mas existe.

 

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.

 

 

 

 

Soneteando Para Epilogar

 

 

 

Soneteando para epilogar,

não irei aqui me desculpar

por este soneto mal feito

versejado cá do meu jeito.

 

 

Mas, o que é importante

e o que é desimportante?

Com amor, sempre doar

ou só rimar para sonetear?

 

 

Então, danem-se os puristas

– da língua meio que fascistas4

que gostam de preconceituar.

 

 

Pessoa5, Leonardo6 e Antero,

estes sim, viveram um triplo vero:

conseqüentizar, ensinar e doar.

 

 

 

 

 



______

Notas:

1. A Questão Coimbrã foi o primeiro sinal de renovação ideológica do século XIX entre os defensores do statu quo, desatualizados em relação à cultura européia, e um grupo de jovens escritores estudantes em Coimbra, que tinham assimilado as idéias novas.

2. Cristão-novo ou converso era a designação dada em Portugal, Espanha e Brasil aos judeus e muçulmanos convertidos ao Cristianismo, em contraposição aos cristãos-velhos. Já cristão-velho ou cristão-puro (cristão que não foi judeu nem tem antepassados judeus) é um conceito ideológico que pretendia designar o segmento majoritário da população durante todo o Antigo Regime (Baixa Idade Média e Idade Moderna), em contraposição ao de cristão-novo. Embora não conferisse nenhum tipo de privilégio estamental, mas era uma condição social prestigiosa, e um orgulho que estava até fora do alcance de muitos ricos e que a maior parte dos pobres teria por nascimento. Na obra de Max Weber (1864 – 1920), o conceito de estamento é ampliado, passando a significar não propriamente um corpo homogêneo estratificado, mas, sim, uma certa teia de relacionamentos que constitui um determinado poder e influi em determinado campo de atividade.

3. O rio mitológico Aqueronte localiza-se no Épiro, região do noroeste da Grécia, no sudoeste da península balcânica. O nome rio pode ser traduzido como rio do infortúnio, e acreditava-se que fosse um afluente do rio Styx, este localizado no mundo dos mortos. Nele se encontra Caronte (figura mitológica do mundo inferior grego – o Hades – que transportava os recém-mortos na sua barca através do Aqueronte), o barqueiro que leva as almas recém-chegadas ao outro lado do rio, às portas do Hades (o mundo dos mortos), onde o Cérbero (cão monstruoso de múltiplas cabeças e cobras ao redor do pescoço que guardava a entrada do Hades) os aguarda.

4. São fascistóides, sim, porque querem fazer prevalecer conceitos ataviados com os seus desconceitos, mais para preconceitos, ensopados em desrespeitos, puxados meio que como para uma espécie de teocracia literária. Arre! Ufa! O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, por exemplo – que ninguém concorda, nem aqui nem em Portugal – que entre 2010 e 2012 passará a ser obrigatório nos livros didáticos para todas as séries, transformou, por exemplo, heróico em heroico, ensangüentado em ensanguentado, delinqüente em delinquente e tranqüilo em tranquilo, e o alfabeto passa a ter 26 letras, com a inclusão de "k", "y" e "w". Como a unificação na ortografia não será total, porque privilegiou mais critérios fonéticos (pronúncia) em lugar de etimológicos (origem) e para algumas palavras será permitida a dupla grafia, eu vou continuar a escrever como sempre escrevi, e que se danem os puristas fascistóides. Em matéria de ortografia, não quero aprender nada e não vou mudar nada, ainda que deus, dependendo do contexto, eu vá continuar a escrever com d ou com D, mas a idéia de Deus eu vou escrever sempre com é. E Coração, se referido ao Deus de nossos Corações, será grafado com C. Bolas! Como eu poderei ficar tranquilo sabendo que um delinquente morreu ensanguentado porque resolveu praticar um ato heroico? Arre! Liberdade para a Língua de Camões! Liberdade para a Língua de Antero! Liberdade para a Língua de Pessoa! Agora, dê uma paquerada nesta beleza do trovador João de Lobeira (1270? – 1330?), um exemplo da poesia medieval portuguesa:

 

Das que vejo
non desejo
outra senhor se vós non,
e desejo
tan sobejo,
mataria um leom,
senhor do meu coraçom:
Leonoreta, fin roseta,
bella sobre toda fror,
fin roseta, no
n me metta
en tal coita voss'amor!

 

5. Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de junho de 1888 – Lisboa, 30 de novembro de 1935).

6. José Leonardo Coimbra (Borba de Godim, Lixa, 30 de dezembro de 1883 – Porto, 2 de janeiro de 1936).

 

Bibliografia:

MARTINS, Ana Maria Almeida. Antero de Quental (Fotobiografia). Vila da Maia: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986, 330 p. il.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://www.scribd.com/doc/

http://www.glob.org.br/macons_categoria.htm

http://www.gremiolusitano.eu/?page_id=37

http://www.laicidade.org/documentacao/
textos-historicos/causas-da-decadencia

http://www.visionvox.com.br/

http://www.filologia.org.br/
viiicnlf/anais/caderno12-08.html

http://etablissements.ac-amiens.fr/
0601178e/quadriphonie/spip.php?article644

http://www.passeiweb.com/

http://www.redacional.com.br/quental.htm

http://br.geocities.com/poesiaeterna/
poetas/portugal/anterodequental.htm

http://espectivas.wordpress.com/
2009/08/01/antero-de-quental/

http://www.artelivre.net/html/literatura
/al_literatura_antero_de_quental.htm

http://pt.wikisource.org/wiki/
Na_m%C3%A3o_de_Deus

http://pt.wikisource.org/wiki/Voz_interior

http://pt.wikisource.org/wiki/Divina_
com%C3%A9dia_(Antero_de_Quental)

http://pt.wikisource.org/wiki/Ignotus

http://pt.wikisource.org/wiki/Quia_aeternus

http://pt.wikisource.org/wiki/%
C3%81_Virgem_Santissima

http://pt.wikisource.org/wiki/Mors_liberatrix

http://pt.wikisource.org/wiki/Homo

http://pt.wikisource.org/wiki/
Hino_%C3%A0_Raz%C3%A3o

http://pt.wikisource.org/wiki/Justitia_Mater

http://pt.wikisource.org/wiki/
Tese_e_Ant%C3%ADtese

http://pt.wikisource.org/wiki/
Metempsicose_(Antero_de_Quental)

http://pt.wikisource.org/wiki/Mea_culpa

http://cleidescully.wordpress.com/2009/05/

http://pt.wikisource.org/wiki/Velut_Umbra

http://pt.wikisource.org/

http://kellynhaprado.zip.net/

http://pt.wikisource.org/

http://pt.wikisource.org/

http://pt.wikipedia.org/wiki/L%
C3%ADngua_portuguesa

http://pt.wikisource.org/wiki/
Sempre_o_futuro,_sempre!_e_o_presente

http://pt.wikisource.org/wiki/S%C3%B3!
_-_Ao_ermita_sozinho_na_montanha

http://pt.wikisource.org/wiki/Se_%C3%A9
_lei,_que_rege_o_escuro_pensamento

http://pt.wikisource.org/

http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v001.txt

http://www.caestamosnos.org/Pesquisas_
Carlos_Leite_Ribeiro/Antero_Quental.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/Estamento

http://scm2000.sites.uol.com.br/
frases_relig.html

http://pt.wikisource.org/wiki/Psalmo

http://pt.wikisource.org/wiki/Se_
comparo_poder_ou_ouro_ou_fama

http://pt.wikisource.org/wiki/Aspira%C3
%A7%C3%A3o_(Antero_de_Quental)

http://pt.wikisource.org/wiki/Tormanto_do_Ideal

http://pt.wikisource.org/wiki/A_Santos_Valente

http://pt.wikisource.org/wiki/A_fada_negra

http://pt.wikisource.org/
wiki/Hino_da_manh%C3%A3

http://pt.wikisource.org/wiki/Os_vencidos

http://pt.wikisource.org/wiki/Os_captivos

http://pt.wikiquote.org/
wiki/Antero_de_Quental

http://pt.wikisource.org/wiki/Os_sonetos_
completos_de_Antero_de_Quental

 

Fundo musical:

Bolero
Compositor: Maurice Ravel

Fonte:

http://www.fitcor.com.br
/informatica/download/midi.htm