Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

 

O AMOR É LINDO...

MAS NEM TANTO...

E NEM SEMPRE!

 

 

 

 

Dona Althamiranda da Conceição Thavarez, uma velhinha de 88 anos, já meio que variando da bola, foi presa em flagrante delito: estava sorrateiramente bifando no supermercado. Quando foi levada à presença do Juiz, o magistrado perguntou à ela:

O que a senhora furtou?

E ela respondeu: — Uma aparentemente inofensiva lata pequena de pêssegos.

O Juiz perguntou o motivo de ela ter roubado a aparentemente inofensiva pequena lata de pêssegos, e a macróbia (que não era apoloniata) não se deu por achada: respondeu que estava com muita fome e que tinha uma preferência especial por compota de pêssegos. O Juiz, então, perguntou a velha senhora quantos pêssegos havia dentro da lata. Prontamente ela disse:

Só seis, meritíssimo. Eu comi todos eles e depois tive uma baita diarréia que durou seis dias.

O Juiz proferiu a sentença: — Sendo assim, eu vou prender a senhora só por seis dias. Um por cada pêssego.

Mas, antes de o Juiz bater o martelo e de dar por encerrada a sessão, um velhinho de noventa anos, marido da velhinha (que quando jovem era uma uma pêssega pra ninguém botar defeito), que estava sentadinho, quietinho, assisitindo a todo aquele vexame judicial, perguntou se poderia se manifestar sobre o acontecido. O Juiz deu permissão para que ele falasse, e perguntou o que ele gostaria de dizer.

O marido se levantou, desobstruiu um embaraço na garganta com um pigarro, apontou o dedo para a esposa velhinha, e disse solenemente:

Meritíssimo e Digníssimo Senhor Doutor Juiz de Direito, com todo respeito e com perdão da má palavra: essa descuidista de uma figa, que é minha esposa há sessenta e nove anos, também afanou três latas de ervilhas...

 

 

 

 

 

 

 

MENTIRAS ESCUSATÓRIAS
(Como tudo, mentir é relativo)

 

 

Curupira
O Kuru'pira

 

 

Para impedir que seja morta uma vida,

eu contarei uma mentira.

E outra para não ter que comer pï'kïra1

e a tal da olha-podrida.2

 

Para frear uma qualquer sem-razão,

contarei mais uma mentira.

E para incentivar o protetor kuru'pira,3

direi: — mete bronca, irmão.

 

Entretanto, para causar aflição ou prejuízo

eu jamais, jamais petarei.

E, mesmo tentando atenuar, a lei não ferirei

se tiver que depor em juízo.4

 

 

 

 

 

______

Notas:

1. Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, a piquira é um peixe caraciforme da família dos caracídeos (Holoshestes heterodon), encontrado em alguns rios do Sudeste do Brasil, de até 4,5 cm de comprimento, corpo com uma faixa prateada longitudinal e uma mancha na base da nadadeira caudal. Serve como alimento e seu nome deriva de pï'kïra, do tupi.

Uma das coisas mais incomodativas e antipáticas é o vegetariano que, antipatiquíssimamente, se recusa a comer carne sob a antipática alegação de que é vegetariano (ou vegano), aproveitando a ocasião para fazer um discurso contra a ingestão de carne animal. Ora pipocas! Isto é mesmo insuportável! Neste caso, para não ofender o(s) outro(s) ou para não criar um clima de mal-estar, o melhor é contar uma mentira escusatória qualquer. Mais antipático ainda é pregação vegetariana (ou vegana) extemporânea. Falo isto por experiência pessoal. Sou vegetariano, e ninguém se sente constrangido ao meu lado em um restaurante – qualquer que seja o restaurante – até porque não censuro ninguém e não me meto na vida dos outros. Se a figura quiser comer um boi inteiro o problema é dela.

2. Olha-podrida, segundo o Novo Dicionário (Eletrônico) Aurélio, é uma iguaria espanhola; uma mistura de carne, toucinho e legumes, a que se acrescentam presunto, carne de ave, enchidos e vários temperos.

3. Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, o curupira é um ente fantástico das matas, descrito predominantemente como um anão de cabelos vermelhos e pés ao inverso, para deixar pegadas enganosas e confundir os caçadores, protegendo, assim, as árvores e os bichos; currupira v s.f. angios 2 design. comum às plantas do gên. Curupira, da fam. das oleáceas, com uma única sp. (Curupira tefeensis) nativa do Brasil ¤ etim tupi kuru'pira 'diabo, entre os indígenas, na crendice pop., ente fantástico que vive nas matas, tem os pés voltados para trás'; acp. angios prende-se ao lat.cien. gên. Curupira; f.hist. 1560 corupîra, 1567 curypyrans, c1584 curupira. Por esse motivo, modifiquei o desenho do curupira disponibilizado na página da Internet abaixo referida:

http://www.cyberhead2010.net/
palchetti/dicembre1_03.asp

4. Por exemplo, no caso da octogenária Althamiranda – que furtou a lata de pêssegos e foi dedurada pelo marido esclerosado de ter furtado, na mesma ocasião, mais três latas de ervilhas – se o espetáculo realmente tivesse ocorrido e eu tivesse que testemunhar, diria que, de fato, a 'octomacróbia' trabuzana, por acaso, descuidara, sim, também as latas de ervilhas; mas, não me furtaria em afirmar que tanto a lata de pêssegos quanto as três latas de ervilhas deveriam estar com o prazo de validade vencido. Daí, provavelmente, o fluxo aquoso-ventral infernal da já não tão pêssega senhora, que, ao invés de ser enjaulada, deveria, isto sim, ser indenizada. E mais: se a velha Althamiranda tivesse apresentado paralisia muscular, poderia ser botulismo (intoxicação alimentar rara mas potencialmente fatal, causada por uma toxina produzida pela bactéria Clostridium botulinum). Ora! Pêssegos? Ervilhas? Quem leu Les Misérables (Os Miseráveis), uma das principais obras escritas pelo escritor francês Victor Hugo (1802 – 1885), publicada em 3 de abril de 1862, não pode ter se esquecido daquela maluquice. A estória começa no Tribunal de Faverolles, França, no qual Jean Valjean é condenado a passar cinco anos na prisão por roubar um pão. A pena vai se esticando devido às suas repetidas tentativas de fuga, de forma que Jean Valjean acaba passando dezenove anos na prisão. Pêssegos? Ervilhas? Um pão? Imaginem se a piada que abre estas reflexões fosse verdade! Não me pejaria nem um tico a consciência de colorir os fatos em favor de uma pobre velha octo-e-lá-vai-fumaça, já meio que variegando do bestunto, que tivesse furtado uma lata de pêssegos. E, obviamente, com a mais absoluta certeza, se eu fosse o Juiz em um caso como este, jamais poria na cadeia, por essa ninharia, uma velha de 88 anos. Nem por seis minutos nem por seis dias. Seis segundos já seriam uma eternidade! Não como punição, claro, mas seis dias de aquosa e desidratante cagarréia foram muito mais do que suficientes. Não sei como a fonte de alimentação dessa velha não queimou. E acabou-se o que era doce!

Mas, já que falei em mentira escusatória na nota um, voltarei a Les Misérables de Victor Hugo. Valjean, depois de posto em liberdade condicional, é ajudado pelo Bispo Bienvenu, mas, em vez de se mostrar grato, furta toda a prataria do Bispo. Logo é preso, pois as peças de prata estavam gravadas com o brasão do Bispo. Quando Valjean é levado pelos soldados à presença do Bispo Bienvenu, este diz que deu a prataria para Valjean, e ainda declara que ele esqueceu de levar os castiçais. Esta digna mentira-escusatória-demonstração-de-bondade faz Valjean voltar a crer nas pessoas. Após alguns anos, Valjean torna-se um próspero empresário, o prefeito da cidade e um homem respeitado pela sua bondade, o que não impediu de ser perseguido sem tréguas por toda a vida pelo chefe de polícia do local, o Inspetor Javert, pois Valjean nunca se apresentou para cumprir os termos da condicional.

Se você não leu esta obra de Victor Hugo – um grande clássico de amor, redenção e honra, e um dos maiores best-sellers de todos os tempos – recomendo que veja o filme, em qualquer das versões disponíveis, que é muito bom.

Seja como for, mentir jamais poderá se constituir em um hábito, em uma torpe irresponsabilidade; um mentirinha, uma mariquinha, só deverá ser contada em condições excepcionalíssimas, e, óbvio, sempre para produzir um relativo bem. Para salvar uma vida, por exemplo. Alberto Milkewitz, no texto Respeitar a Diversidade Nada Mais É que Reconhecer a Realidade, afirma: A vida é como um grande laboratório, no qual acontecem inúmeros ensaios simultâneos. Em cada canto da Natureza, percebe-se a variedade. Em todo lugar, distingue-se a multiplicidade das espécies vivas, dos animais, vegetais, minerais, dos planetas, das pessoas. Compartilham-se características análogas com os outros animais e seres vivos, e especialmente com nossos semelhantes. Somos todos muito parecidos. [Somos todos UM]. Mas ninguém é, nunca, jamais, igual à outra pessoa. Nem os gêmeos univitelinos são idênticos. Não há dois seres humanos equivalentes, nem duas culturas análogas, nem duas fés intercambiáveis. Por isto, o Judaísmo ensina que 'quem salva uma vida, salva a Humanidade'. Cada um é insubstituível. E respeitar a diversidade nada mais é que reconhecer a realidade.

Conclusão: Mentir para salvar um (ou para salvar vários) é dizer a verdade. Mentir para um diabòlus é ser um soldado do Bem e da Beleza universais. Quantas benditas mentiras foram ditas e continuam a ser ditas para salvar as vidas (que foram possíveis de ser salvas) de desafetos do Cesarismo, do Santo Ofício inquisitorial católico, do Stalinismo, do Maoísmo, do Nazismo, do Fascismo, do Franquismo, do Salazarismo, do Pinochetismo, do Papadoquismo, do Norieguismo, do Idiamindadaísmo, do Videlismo, do Stroessnerismo, do Sukarnismo, do Suhartismo, do Ferdinandmarquismo, do Juanvicentegomezismo, do Rezapahlevismo, do apartheid sul-africano, do Slobodanmilosevicismo, do preconceito racial americano, do getulismo (Olga Gutmann Benário, 1908 - 1942, não escapou; foi entregue a Hitler por Vargas), dos torturadores da Revolução Brasileira de 64, das atuais ditaduras norte-coreana e mianmarense (birmanesa) et cetera, et cetera, et cetera? Benditas mentiras que foram ditas, benditas mentiras que são ditas, benditas mentiras que salvaram vidas, benditas mentiras que combateram os tiranos genocidas e os ditadores diabólicos de todos os tempos. Não há razão de Estado (motivo de ordem superior invocado por um Estado para colocar o interesse estatal acima dos interesses particulares) nem a maldita falta de escrúpulos que caracteriza o pragmatismo econômico globalizante atual – em nome do lucro a qualquer custo, em nome do lucro a qualquer preço e acima de qualquer ente – que justifiquem a apócope ou a amputação de qualquer vida e a destruição criminosa do Planeta. Para combater esses absurdos, quando necessário, mentir é preciso. Ainda que em nenhum dos textos publicados no Website Pax Profundis haja qualquer mentira, eu mentirei, se for preciso, sempre que for preciso.

 

 

 

 

Páginas da Internet consultadas:

http://nemolodigas.blogs.sapo.pt/
arquivo/1051089.html

http://www.setor3.com.br/

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Les_Mis%C3%A9rables

http://www.oldwomaninpurple.com/

http://cdcc.sc.usp.br/
ciencia/artigos/art_24/demochaui.html

 

Fundo musical:

Bacharach Melody (Bacharach/Liberace)
Pianista: Liberace

Fonte:

http://www.musicforpianos.com/
piano%20roll%20midis.htm