Objetivo
do Estudo
Este
estudo objetivou garimpar e recortar alguns fragmentos (em ordem inversa
de publicação) de duas encíclicas do Papa Bom:
Pacem in Terris e Mater et Magistra. Eu, que não sou
católico, não posso deixar de reconhecer nestas duas encíclicas
duas verdadeiras obras-primas de compreensão e de espiritualidade.
Você, leitor, observará a atualidade do pensamento espiritual
de João XXIII, que em ambas as Encíclicas (mais na primeira)
pouco se ateve a questões religiosas, e mais se preocupou em examinar
as questões sociais. Mas, como sempre digo, o melhor mesmo é
ler as encíclicas integralmente.
A Espiritualidade de João XXIII
(Fragmentos
da Encíclica Pacem in Terris)
O
progresso da ciência e as invenções da técnica
evidenciam que reina uma ordem maravilhosa nos seres vivos e nas forças
da Natureza. Testemunham, outrossim, a dignidade do homem, capaz de desvendar
essa ordem e de produzir os meios adequados para dominar essas forças,
canalizando-as em seu proveito.
Uma
concepção tão freqüente quanto errônea leva
muitos a julgar que as relações de convivência entre
os indivíduos e sua respectiva comunidade política possam
reger-se pelas mesmas leis que as forças e os elementos irracionais
do Universo.
Em
uma convivência humana bem constituída e efetiva, é
fundamental ser observado o princípio de que cada ser humano é
pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e de vontade
livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que
emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se,
por conseguinte, de direitos e de deveres universais, invioláveis,
e inalienáveis.
E,
ao nos dispormos a tratar dos direitos do homem, advertimos, de início,
que o ser humano tem direito à existência, à integridade
física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de
vida: tais são especialmente o alimento, o vestuário, a moradia,
o repouso, a assistência sanitária e os serviços sociais
indispensáveis. Segue-se daí, que a pessoa tem também
o direito de ser amparada em caso de doença, de invalidez, de viuvez,
de velhice, de desemprego forçado, e em qualquer outro caso de privação
dos meios de sustento por circunstâncias independentes de sua vontade.
Todo
o ser humano tem direito natural ao respeito de sua dignidade e à
boa fama; direito à liberdade na pesquisa da verdade e, dentro dos
limites da ordem moral e do bem comum, à liberdade na manifestação
e na difusão do pensamento, bem como no cultivo da arte. Tem direito
também à informação verídica sobre os
acontecimentos públicos.
Deriva
também da natureza humana o direito de participar dos bens da cultura
e, portanto, o direito a uma instrução de base e a uma formação
técnica e profissional, conforme ao grau de desenvolvimento cultural
da respectiva coletividade. É preciso esforçar-se por garantir
àqueles, cuja capacidade o permita, o acesso aos estudos superiores,
de sorte que, na medida do possível, subam na vida social a responsabilidades
e a cargos adequados ao próprio talento e à perícia
adquirida.
É
direito da pessoa escolher o estado de vida, de acordo com as suas preferências,
e, portanto, de constituir família na base da paridade de direitos
e deveres entre homem e mulher, ou então, de seguir a vocação
ao sacerdócio ou à vida religiosa.
A
família, baseada no matrimônio livremente contraído,
unitário e indissolúvel, há de ser considerada como
o núcleo fundamental e natural da sociedade humana. Merece, pois,
especiais medidas, tanto de natureza econômica e social, como cultural
e moral, que contribuam para consolidá-la e ampará-la no desempenho
de sua função.
No
que diz respeito às atividades econômicas, é claro que,
por exigência natural, cabe à pessoa não só a
liberdade de iniciativa, senão também o direito ao trabalho.
No
que diz respeito às atividades econômicas, é claro que,
por exigência natural, cabe à pessoa não só a
liberdade de iniciativa, senão também o direito ao trabalho.
Semelhantes direitos comportam certamente a exigência de poder a pessoa
trabalhar em condições tais, que não se lhe minem as
forças físicas nem se lese a sua integridade moral, como tampouco
se comprometa o são desenvolvimento do ser humano ainda em formação.
Quanto às mulheres, seja-lhes facultado trabalhar em condições
adequadas às suas necessidades e deveres de esposas e mães.
Da
dignidade da pessoa humana deriva também o direito de exercer atividade
econômica com senso de responsabilidade. Ademais, não podemos
passar em silêncio o direito a remuneração do trabalho
conforme aos preceitos da justiça; remuneração que,
em proporção dos recursos disponíveis, permita ao trabalhador
e à sua família um teor de vida condizente com a dignidade
humana.
Da
natureza humana origina-se ainda o direito à propriedade privada,
mesmo sobre os bens de produção. Como afirmamos em outra ocasião,
esse direito 'constitui um meio apropriado para a afirmação
da dignidade da pessoa humana e para o exercício da responsabilidade
em todos os campos; e é fator de serena estabilidade para a família,
como de paz e prosperidade social'. Cumpre, aliás, recordar que ao
direito de propriedade privada é inerente uma função
social.
Da
sociabilidade natural da pessoa humana provém o direito de reunião
e de associação; bem como o de conferir às associações
a forma que aos seus membros parecer mais idônea à finalidade
em vista, e de agir dentro delas por conta própria e risco, conduzindo-as
aos almejados fins.
Deve-se
também deixar a cada um o pleno direito de estabelecer ou mudar domicílio
dentro da comunidade política de que é cidadão, e mesmo,
quando legítimos interesses o aconselhem, deve ser-lhe permitido
transferir-se a outras comunidades políticas e nelas se domiciliar.
Por ser alguém cidadão de um determinado país, não
se lhe tolhe o direito de ser membro da família humana ou cidadão
da comunidade mundial, que consiste na união de todos os seres humanos
entre si.
Coere2
ainda com a dignidade da pessoa o direito de participar ativamente
da vida pública e de trazer, assim, sua contribuição
pessoal ao bem comum dos concidadãos.
Aos
direitos naturais... vinculam-se, no mesmo sujeito jurídico que é
a pessoa humana, os respectivos deveres. Direitos e deveres encontram na
lei natural que os outorga ou impõe, o seu manancial, a sua consistência
e a sua força inquebrantável.
Assim,
por exemplo, o direito à existência liga-se ao dever de conservar-se
em vida, o direito a um condigno teor de vida, à obrigação
de viver dignamente, o direito de investigar livremente a verdade, ao dever
de buscar um conhecimento da verdade cada vez mais vasto e profundo.
...
no relacionamento humano, a determinado direito natural
de uma pessoa corresponde o dever de reconhecimento e respeito desse direito
por parte dos demais. É que todo direito fundamental do homem encontra
sua força e autoridade na lei natural, a qual, ao mesmo tempo em
que o confere, impõe também algum dever correspondente. Por
conseguinte, os que reivindicam os próprios direitos, mas se esquecem
por completo de seus deveres ou lhes dão menor atenção,
assemelham-se a quem constrói um edifício com uma das mãos
e, com a outra, o destrói.
Sendo
os homens sociais por natureza, é mister que convivam uns com os
outros e promovam o bem mútuo. Por esta razão, é exigência
de uma sociedade humana bem constituída que mutuamente sejam reconhecidos
e cumpridos os respectivos direitos e deveres. Segue-se, igualmente, que
todos devem trazer a sua própria contribuição generosa
à construção de uma sociedade na qual direitos e deveres
se exerçam com solércia3
e efetividade cada vez maiores.
Não
bastará, por exemplo, reconhecer o direito da pessoa aos bens indispensáveis
à sua subsistência, se não envidarmos todos os esforços
para que cada um disponha desses meios em quantidade suficiente.
Exige,
ademais, a dignidade da pessoa humana um agir responsável e livre.
Importa, pois, para o relacionamento social que o exercício dos próprios
direitos, o cumprimento dos próprios deveres e a realização
dessa múltipla colaboração derivem, sobretudo, de decisões
pessoais, fruto da própria convicção, da própria
iniciativa, do próprio senso de responsabilidade, mais que por coação,
pressão, ou qualquer forma de imposição externa. Uma
convivência baseada unicamente em relações de força
nada tem de humano: nela as pessoas vêem coarctada4
a própria liberdade, quando, pelo contrário, deveriam ser
postas em condição tal que se sentissem estimuladas a demandar
o próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento.
A
convivência entre os seres humanos só poderá,
pois, ser considerada bem constituída, fecunda e conforme à
dignidade humana, quando fundada sobre o verdade, como adverte o apóstolo
Paulo: 'Abandonai a mentira e falai a verdade cada um ao seu próximo,
porque somos membros uns dos outros' (Ef. 4, 25). Isso se obterá
se cada um reconhecer devidamente tanto os próprios direitos, quanto
os próprios deveres para com os demais. A comunidade humana será
tal como acabamos de a delinear, se os cidadãos, guiados pela justiça,
se dedicarem ao respeito dos direitos alheios e ao cumprimento dos próprios
deveres; se se deixarem conduzir por um amor que sinta as necessidades alheias
como próprias, fazendo os outros participantes dos próprios
bens; e se tenderem todos a que haja no orbe terrestre uma perfeita comunhão
de valores culturais e espirituais. Nem basta isso. A sociedade humana realiza-se
na liberdade digna de cidadãos que, sendo por natureza dotados de
razão, assumem a responsabilidade das próprias ações.
É
que acima de tudo, veneráveis irmãos e diletos filhos, há
de considerar-se a convivência humana como realidade eminentemente
espiritual: como intercomunicação de conhecimentos à
luz da verdade, exercício de direitos e de cumprimento de deveres,
incentivo e apelo aos bens morais, gozo comum do belo em todas as suas legítimas
expressões, permanente disposição de fundir em tesouro
comum o que de melhor cada qual possua, anelo de assimilação
pessoal de valores espirituais. Valores esses, nos quais se vivifica e orienta
tudo o que diz respeito à cultura, ao desenvolvimento econômico,
às instituições sociais, aos movimentos e regimes políticos,
à ordem jurídica e aos demais elementos, através dos
quais se articula e se exprime a convivência humana em incessante
evolução.
A
ordem que há de vigorar na sociedade humana é de natureza
espiritual. Com efeito, é uma ordem que se funda na verdade, que
se realizará segundo a justiça, que se animará e se
consumará no amor, que se recomporá sempre na liberdade, mas
sempre também em novo equilíbrio cada vez mais humano.
A
sociedade humana não estará bem constituída nem será
fecunda, a não ser que lhe presida uma autoridade legítima
que salvaguarde as instituições e dedique o necessário
trabalho e esforço ao bem comum. Esta autoridade vem de Deus...5
A autoridade não é força incontrolável; é,
sim, faculdade de mandar segundo a sã razão. A sua capacidade
de obrigar deriva, portanto, da ordem moral, a qual tem a Deus como princípio
e fim.
A
autoridade que se baseasse exclusiva ou principalmente na
ameaça ou no temor de penas ou na promessa e na solicitação
de recompensa, não moveria efetivamente os seres humanos à
realização do bem comum. Se, por acaso, o conseguisse, isso
repugnaria à dignidade de seres dotados de razão e de liberdade.
A autoridade é, sobretudo, uma força moral. Deve, pois, apelar
à consciência do cidadão, isto é, ao dever de
prontificar-se em contribuir para o bem comum. Sendo, porém, todos
os homens iguais em dignidade natural, ninguém pode obrigar a outrem
interiormente, porque isso é prerrogativa exclusiva de Deus, que
perscruta e julga as atitudes íntimas.
Obediência
aos poderes públicos não é sujeição de
homem a homem, é sim, no seu verdadeiro significado, homenagem prestada
a Deus, sábio criador de todas as coisas, o qual dispôs que
as relações de convivência se adaptem à ordem
por ele estabelecida. Pelo fato de prestarmos a devida reverência
a Deus, não nos humilhamos, mas nos elevamos e nos enobrecemos, porque,
'servir a Deus é reinar'.
Todo
o cidadão e todos os grupos intermediários devem contribuir
para o bem comum. Disto se segue, antes de tudo, que devem ajustar os próprios
interesses às necessidades dos outros, empregando bens e serviços
na direção indicada pelos governantes, dentro das normas da
justiça e na devida forma e limites de competência. Quer isto
dizer que os respectivos atos da autoridade civil não só devem
ser formalmente corretos, mas também de conteúdo tal que de
fato representem o bem comum ou a ele possam encaminhar.
... visto
ter o bem comum relação essencial com a natureza humana, não
poderá ser concebido na sua integridade, a não ser que, além
de considerações sobre a sua natureza íntima e sua
realização histórica, sempre se tenha em conta a pessoa
humana.
Acresce
que, por sua mesma natureza, todos os membros da sociedade devem participar
deste bem comum, embora em grau diverso, segundo as funções
que cada cidadão desempenha, seus méritos e suas condições.
Devem, pois, os poderes públicos promover o bem comum com vantagem
para todos, sem preferência de pessoas ou grupos...
A
função primordial de qualquer poder público é
defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável
o cumprimento dos seus deveres'. Por isso mesmo, se a autoridade não
reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde
ela a sua razão de ser como também as suas injunções
perdem a força de obrigar em consciência.
É,
pois, função essencial dos poderes públicos harmonizar
e disciplinar devidamente os direitos com que os homens se relacionam entre
si, de maneira a evitar que os cidadãos, ao fazer valer os seus direitos,
não atropelem os de outrem; ou que alguém, para salvaguardar
os próprios direitos, impeça a outros de cumprir os seus deveres.
Zelarão, enfim, os poderes públicos para que os direitos de
todos se respeitem efetivamente na sua integridade e se reparem, se vierem
a ser lesados.
Por
outro lado, exige o bem comum que os poderes públicos operem positivamente
no intuito de criar condições sociais que possibilitem e favoreçam
o exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres por parte de
todos os cidadãos. Atesta a experiência que, faltando por parte
dos poderes públicos uma atuação apropriada com 'respeito
à economia, à administração pública,
a instrução', sobretudo nos tempos atuais, as desigualdades
entre os cidadãos tendem a exasperar-se cada vez mais, os direitos
da pessoa tendem a perder todo seu conteúdo e compromete-se, ainda
por cima, o cumprimento do dever.
O
bem comum exige, pois, que, com respeito aos direitos da pessoa, os poderes
públicos exerçam uma dupla ação: a primeira
tendente a harmonizar e a tutelar esses direitos; a outra a promovê-los.
Haja, porém, muito cuidado em equilibrar, da melhor forma possível,
essas duas modalidades de ação. Evite-se que, através
de preferências outorgadas a indivíduos ou a grupos, se criem
situações de privilégio. Nem se venha a instaurar o
absurdo de, ao intentar a autoridade tutelar os direitos da pessoa, chegue
a coarctá-los. 'Sempre fique de pé que a intervenção
das autoridades públicas em matéria econômica, embora
se estenda às estruturas mesmas da comunidade, não deve coarctar
a liberdade de ação dos particulares; antes deve aumentá-la,
contanto que se guardem intactos os direitos fundamentais de cada pessoa
humana'.
A
mesma lei natural que rege a vida individual deve também reger as
relações entre os Estados.
... a
autoridade na sociedade humana é exigência da própria
ordem moral. Não pode, portanto, ser usada contra esta ordem sem
que se destrua a si mesma...
As
relações mútuas entre os Estados devem basear-se na
verdade. Esta exige que se elimine delas todo e qualquer racismo. Tenha-se
como princípio inviolável a igualdade de todos os povos, pela
sua dignidade de natureza. Cada povo tem, pois, direito à existência,
ao desenvolvimento, à posse dos recursos necessários para
realizá-lo e a ser o principal responsável na atuação
do mesmo, tendo igualmente direito ao bom nome e à devida estima.
Atesta
a experiência que subsistem muitas vezes entre os homens consideráveis
diferenças de saber, de virtude, de capacidade inventiva e de recursos
materiais. Mas, estas diferenças jamais justificam o propósito
de impor a própria superioridade a outrem. Pelo contrário,
constituem fonte de maior responsabilidade que a todos incumbe de contribuir
à elevação comum. De modo análogo, podem as
nações diferenciar-se por cultura, civilização
e desenvolvimento econômico. Isto, porém, não poderá
jamais justificar a tendência a impor injustamente a própria
superioridade às demais. Antes, pode constituir motivo de sentirem-se
mais empenhadas na obra de comum ascensão dos povos.
Os
estados têm direito à existência, ao desenvolvimento,
a disporem dos recursos necessários para o mesmo, e a desempenharem
o papel preponderante na sua realização. Os Estados têm
igualmente direito ao bom nome e à devida estima. Simultaneamente,
pois, incumbe aos Estados o dever de respeitar efetivamente cada um destes
direitos, e de evitar todo e qualquer ato que os possa violar. Assim como
nas relações individuais não podem as pessoas ir ao
encontro dos próprios interesses com prejuízo dos outros,
do mesmo modo não pode uma nação, sem incorrer em grave
delito, procurar o próprio desenvolvimento tratando injustamente
ou oprimindo as outras. Cabe aqui a frase de santo Agostinho: 'Esquecida
a justiça, a que se reduzem os reinos senão a grandes latrocínios?'
Deve-se
declarar abertamente que é grave injustiça qualquer ação
tendente a reprimir a energia vital de alguma minoria, e muito mais se tais
maquinações intentam exterminá-la. Pelo contrário,
corresponde plenamente aos princípios da justiça que os governos
procurem promover o desenvolvimento humano das minorias raciais, com medidas
efetivas em favor da respectiva língua, cultura, tradições,
recursos e empreendimentos econômicos.
As
nações devem fomentar toda espécie de intercâmbio,
quer entre os cidadãos respectivos, quer entre os respectivos organismos
intermediários. Existe sobre a Terra um número considerável
de grupos étnicos, mais ou menos diferenciados. Não devem,
porém, as peculiaridades de um grupo étnico transformar-se
em compartimento estanque de seres humanos impossibilitados de relacionar-se
com pessoas pertencentes a outros grupos étnicos. Isto estaria, aliás,
em flagrante contraste com a tendência da época atual em que
praticamente se eliminaram as distâncias entre os povos. Tampouco
se deve esquecer de que, embora seres humanos de raça diferente apresentem
peculiaridades, possuem, no entanto, traços essenciais que lhes são
comuns. Isto os inclina a encontrar-se no mundo dos valores espirituais,
cuja progressiva assimilação abre-lhes ilimitadas perspectivas
de aperfeiçoamento. Deve-se-lhes, portanto, reconhecer o direito
e o dever de viver em comunhão uns com os outros.
Entre
os direitos inerentes à pessoa, figura o de inserir-se na comunidade
política, onde espera ser-lhe mais fácil reconstruir um futuro
para si e para a própria família. Por conseguinte, incumbe
aos respectivos poderes públicos o dever de acolher esses estranhos6
e, nos limites consentidos pelo bem da própria comunidade retamente
entendido, o de lhes favorecer a integração na nova sociedade
em que manifestem o propósito de inserir-se.
É-nos
igualmente doloroso constatar como em estados economicamente mais desenvolvidos
se fabricaram e ainda se fabricam gigantescos armamentos. Gastam-se nisso
somas enormes de recursos materiais e energias espirituais. Impõem-se
sacrifícios nada leves aos cidadãos dos respectivos países,
enquanto outras nações carecem da ajuda indispensável
ao próprio desenvolvimento econômico e social.
Já
que as armas existem e se parece difícil que haja pessoas capazes
de assumir a responsabilidade das mortes e incomensuráveis destruições
que a guerra provocaria, não é impossível que um fato
imprevisível e incontrolável possa inesperadamente atear esse
incêndio. Além disso, ainda que o imenso poder dos armamentos
militares afaste hoje os homens da guerra, entretanto, a não cessarem
as experiências levadas a cabo com fins militares, podem elas pôr
em grave perigo boa parte da vida sobre a Terra. Eis por que a justiça,
a reta razão e o sentido da dignidade humana terminantemente exigem
que se pare com essa corrida ao poderio militar, que o material de guerra,
instalado em várias nações, se vá reduzindo
de uma parte e de outra. Simultaneamente, que sejam banidas as armas atômicas;
e, finalmente, que se chegue a um acordo para a gradual diminuição
dos armamentos, na base de garantias mútuas e eficazes.
Todos
devem estar convencidos de que nem a renúncia à competição
militar, nem a redução dos armamentos, nem a sua completa
eliminação, que seria o principal, de modo nenhum se pode
levar a efeito tudo isto, se não se proceder a um desarmamento integral,
que atinja o próprio espírito, isto é, se não
trabalharem todos em concórdia e sinceridade, para afastar o medo
e a psicose de uma possível guerra. Mas isto requer que, em vez do
critério de equilíbrio em armamentos que hoje mantém
a paz, se abrace o princípio segundo o qual a verdadeira paz entre
os povos não se baseia em tal equilíbrio, mas sim e exclusivamente
na confiança mútua.
De
fato, como todos sabem, ou pelo menos deviam saber, as mútuas relações
internacionais, do mesmo modo que as relações entre os indivíduos,
devem-se disciplinar não pelo recurso à força das armas,
mas sim pela norma da reta razão, isto é, na base da verdade,
da justiça e de uma ativa solidariedade.
(Fragmentos
da Encíclica Mater et Magistra)
É
verdade que hoje os progressos dos conhecimentos científicos e das
técnicas de produção oferecem aos poderes públicos
maiores possibilidades concretas de reduzir os desequilíbrios entre
os diferentes fatores produtivos, entre as várias zonas no interior
dos países e entre as diversas nações no plano mundial.
Permitem, além disso, limitar as oscilações nas alternativas
das situações econômicas e enfrentar com esperança
de resultados positivos os fenômenos do desemprego das massas. Por
conseguinte, os poderes públicos, responsáveis pelo bem comum,
não podem deixar de sentir-se obrigados a exercer no campo econômico
uma ação multiforme, mais vasta e mais orgânica; como
também a adaptar-se, para este fim, às estruturas e competências,
nos meios e nos métodos.
... a
presença do Estado no campo econômico, por mais ampla
e penetrante que seja, não pode ter como meta reduzir cada vez mais
a esfera da liberdade na iniciativa pessoal dos cidadãos; mas, deve,
pelo contrário, garantir a essa esfera a maior amplidão possível,
protegendo efetivamente – em favor de todos e de cada um – os
direitos essenciais da pessoa humana. Entre estes há de enumerar-se
o direito, que todos têm, de serem e de permanecerem normalmente os
primeiros responsáveis pela manutenção própria
e da família; ora, isso implica que, nos sistemas econômicos,
se consinta e facilite o livre exercício das atividades produtivas.
... a
evolução histórica põe em evidência cada
vez maior o fato de se não poder conseguir uma convivência
ordenada e fecunda sem a colaboração, no campo econômico,
ao mesmo tempo dos cidadãos e dos poderes públicos; colaboração
simultânea realizada harmonicamente, em proporções correspondentes
às exigências do bem comum no meio das situações
variáveis e das vicissitudes humanas.
De
fato, a experiência ensina que, onde falta a iniciativa pessoal dos
indivíduos, domina a tirania política; e há ao mesmo
tempo estagnação nos setores econômicos, destinados
a produzir, sobretudo, a gama indefinida dos bens de consumo e de serviços
que se relacionam não só com as necessidades materiais mas
também com as exigências do espírito: bens e serviços
que exigem, de modo especial, o gênio criador dos indivíduos.
... a
socialização... tem numerosas vantagens: torna possível
satisfazer muitos direitos da pessoa humana, especialmente os chamados econômicos
e sociais. Por exemplo, o direito aos meios indispensáveis ao sustento,
ao tratamento médico, a uma educação de base mais elevada,
a uma formação profissional mais adequada, à habitação,
ao trabalho, a um repouso conveniente e à recreação.
Além disso, através da organização cada vez
mais perfeita dos meios modernos da comunicação – imprensa,
cinema, rádio e televisão – permite-se a todos de participar
nos acontecimentos de caráter mundial. Mas,
por outro lado a socialização multiplica os organismos e torna
sempre mais minuciosa a regulamentação jurídica das
relações entre os homens, em todos os domínios. Deste
modo, restringe o campo da liberdade de ação dos indivíduos.
Utiliza meios, segue métodos e cria círculos fechados, que
tornam difícil a cada um pensar independentemente dos influxos externos,
agir por iniciativa própria, exercer a própria responsabilidade,
afirmar e enriquecer a própria pessoa. Sendo assim, deverá
concluir-se que a socialização, crescendo em amplitude e profundidade,
chegará a reduzir necessariamente os homens a autômatos? A
esta pergunta temos de responder negativamente.
Não se deve considerar a socialização como resultado
de forças naturais impelidas pelo determinismo. Ao contrário,
é obra dos homens, seres conscientes e livres, levados por natureza
a agir como responsáveis, ainda que em suas ações sejam
obrigados a reconhecer e respeitar as leis do progresso econômico
e social, e não possam subtrair-se de todo à pressão
do ambiente. Por isso, concluímos
que a socialização pode e deve realizar-se de maneira que
se obtenham as vantagens que ela traz consigo e se evitem ou reprimam as
conseqüências negativas.
Para o conseguir, requer-se, porém, que as autoridades públicas
se tenham formado, e realizem praticamente, uma concepção
exata do bem comum; este compreende o conjunto das condições
sociais que permitem e favorecem nos homens o desenvolvimento integral da
personalidade. E cremos necessário, além disso, que os corpos
intermediários e as diversas iniciativas sociais, em que sobretudo
procura exprimir-se e realizar-se a socialização, gozem de
uma autonomia efetiva relativamente aos poderes públicos, e vão
no sentido dos seus interesses específicos, com espírito de
leal colaboração mútua e de subordinação
às exigências do bem comum. Nem é menos necessário
que os ditos corpos apresentem forma e substância de verdadeiras comunidades;
isto é, que os seus membros sejam considerados e tratados como pessoas,
e estimulados a participar ativamente na vida associativa.
As
organizações da sociedade contemporânea desenvolvem-se,
e a ordem dentro delas consegue-se, cada vez mais, graças a um equilíbrio
renovado: exigência, por um lado, de colaboração autônoma
prestada por todos, indivíduos e grupos; e, por outro lado, coordenação
no devido tempo e orientação promovidas pelas autoridades
públicas. Se a socialização
se praticasse em conformidade com as leis morais indicadas, não traria,
por sua natureza, perigos graves de vir a oprimir os indivíduos.
Pelo contrário, ajudaria a que nestes se desenvolvessem as qualidades
próprias da pessoa humana. Reorganizaria até a vida comum...
... a
retribuição do trabalho, assim como não
pode ser inteiramente abandonada às leis do mercado, também
não pode fixar-se arbitrariamente; há de estabelecer-se segundo
a justiça e a eqüidade. É necessário que aos trabalhadores
se dê um salário que lhes proporcione um nível de vida
verdadeiramente humano e lhes permita enfrentar com dignidade as responsabilidades
familiares. É preciso igualmente que, ao determinar-se a retribuição,
se tenham em conta o concurso efetivo dos trabalhadores para a produção,
as condições econômicas das empresas e as exigências
do bem comum nacional. Considerem-se de modo especial as repercussões
sobre o emprego global das forças de trabalho dentro do país
inteiro, e ainda as exigências do bem comum universal, isto é,
as que dizem respeito às comunidades internacionais, de natureza
e extensão diversas.
O
progresso social deve acompanhar e igualar o desenvolvimento econômico,
de modo que todas as categorias sociais tenham parte nos produtos obtidos
em maior quantidade. É preciso, pois, vigiar com atenção
e trabalhar eficazmente para que os desequilíbrios econômicos
e sociais não cresçam, antes, quanto possível, se vão
atenuando.
... a
riqueza econômica de um povo não depende só da abundância
global dos bens, mas também, e mais ainda, da real e eficaz distribuição
deles segundo a justiça, para tornar possível a melhoria do
estado pessoal dos membros da sociedade: é este o fim verdadeiro
da economia nacional.
... é
necessário procurar com todo o empenho que, para o futuro, os capitais
ganhos, não se acumulem nas mãos dos ricos, senão na
justa medida, e se distribuam com certa abundância entre os operários.
... o
equilíbrio entre a remuneração do trabalho e o rendimento
deve conseguir-se em harmonia com as exigências do bem comum, tanto
da comunidade nacional como de toda a família humana.
Devem
considerar-se exigências do bem comum no plano nacional: dar emprego
ao maior número possível de trabalhadores; evitar que se constituam
categorias privilegiadas, mesmo entre trabalhadores; manter uma justa proporção
entre salários e preços; tornar acessíveis bens e serviços
de interesse geral ao maior número de cidadãos; eliminar ou
reduzir os desequilíbrios entre os setores da agricultura, da indústria
e dos serviços; realizar o equilíbrio entre a expansão
econômica e o desenvolvimento dos serviços públicos
essenciais; adaptar, na medida do possível, as estruturas produtivas
aos progressos das ciências e das técnicas; moderar o teor
de vida já melhorado da geração presente, tendo a intenção
de preparar um porvir melhor as gerações futuras.
______