Affonso Romano de Sant'Anna
(Reflexões e Pensamentos)

 

 

 


Affonso (Amor) Romano de Sant'Anna

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Objetivo do Ensaio

 

 

 

Este ensaio oferece um pouquinho de Affonso Romano de Sant'Anna. Pouquinho a depender de como forem lidos os fragmentos! Bem, eu acho que os pouquinhos que garimpei dão para construir e reconstruir algumas vezes muitas coisas. Vai de cada um. Então, espero que você goste e aproveite, porque eu gostei muito do que li. E aproveitei! Construindo e reconstruindo aqui e ali.

 

 

 

Breve Biografia

 

 

 

Affonso (Amor) Romano de Sant'Anna

Affonso (Amor) Romano de Sant'Anna

 

 

 

Affonso Romano de Sant'Anna (Belo Horizonte, 27 de março de 1937) é um escritor brasileiro. Nas décadas de 1950 e 1960, participou de movimentos de vanguarda poética. Em 1962 diplomou-se em letras, e três anos depois publica seu primeiro livro de poesia: Canto e Palavra.

 

Em 1965, lecionou na Califórnia (Universidade de Los Angeles - UCLA), e em 1968 participou do Programa Internacional de Escritores da Universidade de Iowa, que agrupou 40 escritores de todo o mundo.

 

Em 1969, doutorou-se pela Universidade Federal de Minas Gerais e, um ano depois, montou um curso de pós-graduação em literatura brasileira na PUC do Rio de Janeiro. Foi Diretor do Departamento de Letras e Artes da PUC-RJ, de 1973 a 1976, realizando, então, a Expoesia, série de encontros nacionais de literatura.

 

Ministrou cursos na Alemanha (Universidade de Köln), Estados Unidos (Universidade do Texas, UCLA), Dinamarca (Universidade de Aarhus), Portugal (Universidade Nova) e França (Universidade de Aix-en-Provence).

 

Sua tese de doutorado abordou uma análise da poética de Carlos Drummond de Andrade, com o título Drummond, Um Gauche no Tempo, em que faz uma análise do conceito de gauche ao longo de sua obra literária.

 

Foi cronista no Jornal do Brasil (1984 - 1988) e do jornal O Globo até 2005. Atualmente escreve para os jornais Estado de Minas e Correio Brasiliense.

 

 

 

 

Reflexões e Pensamentos

 

 

 

 

 

Amor
(O Interminável Aprendizado)

 

 

Criança, pensava: amor, coisa que os adultos sabem.

Via-os aos pares namorando nos portões enluarados se estrebucando [sic] numa aflição feliz de mãos na folhagem das anáguas. Via-os noivos se comprometendo à luz da sala ante a família, ante as mobílias; via-os casados, um ancorado no corpo do outro, e pensava: amor, coisa-para-depois, um depois-adulto-aprendizado.

Se enganava.

Se enganava porque o aprendizado do amor não tem começo nem é privilégio aos adultos reservados. Sim, o amor é um interminável aprendizado.

Por isto se enganava enquanto olhava com os colegas, de dentro dos arbustos do jardim, os casais que nos portões se amava. E quando algum amante desaparecia ou se afastava, não era porque estava saciado. Isto aprenderia depois. É que fora buscar outro amor, a busca recomeçara, pois a fome de amor não sacia nunca, como ali já não se saciara.

De fato, reparando nos vizinhos, podia observar. Mesmo os casados, atrás da aparente tranqüilidade, continuavam inquietos. Alguns eram mais indiscretos. A vizinha casada deu para namorar. Aquele que era um crente fiel sempre na igreja, um dia jogou tudo para cima e amigou-se com uma jovem. E a mulher que morava em frente à farmácia, tão doméstica e feliz, de repente fugiu com um boêmio, largando marido e filhos.

Então, constatou, de novo se enganara. Os adultos, mesmo os casados, embora pareçam um porto onde as naus já atracaram, os adultos, mesmo os casados, que parecem arbustos cujas raízes já se entrançaram; eles também não sabem, estão no meio da viagem e só eles sabem quantas tempestades enfrentaram e quantas vezes naufragaram.

Depois de folhear um, dez, centenas de corpos avulsos tentando o amor verbalizar, entrou numa biblioteca. Ali estavam as grandes paixões. Os poetas e novelistas deveriam saber das coisas. Julietas se debruçavam apunhaladas sobre o corpo morto dos Romeus. Tristãos e Isoldas tomavam o filtro do amor e ficavam condenados à traição daqueles que mais amavam e sem poderem realizar o amor.

O amor se procurava. E se encontrando, desesperava, se afastava, desencontrava.

Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão.

O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina.

Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal.

O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é
arte-final.

Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não.

Amor às vezes coincide com desejo, às vezes não.

Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não.

E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não.

Absurdo.

Como pode o amor não coincidir consigo mesmo?

Adolescente que amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amar dos vinte, um amor dos cinqüenta e outro dos oitenta? Coisa de demente.

Não era só a estória e as estórias de seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente.

Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado.

Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado.

O amor se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca o aprendizado.

Optou por aceitar a sua ignorância.

Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado.

E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado.

 

 

 

 

Arte e vida se misturam. Fantasia e realidade se acrescentam.

 

O passado não passa,
o futuro não chega,
e o presente ameaça.

Ainda bem.
Se assim não fosse,
a vida não tinha graça.

 

A memória vai girando em torno de si mesma como esses fusos que tecem tapetes e tecidos com tramas e urdiduras. Ter memórias é um luxo.

 

O mar é o mestre da primeira vez e não pára de ondear suas lições. Nenhuma onda é a mesma onda. Nenhum peixe é o mesmo peixe. Nenhuma tarde é a mesma tarde. O mar é um morrer sucessivo e um viver permanente. Ele se desfolha em ondas e não pára de brotar. A contemplá-lo, ao mesmo tempo sou jovem e envelheço. O mar é recomeço.

 

 

Os Trilhos da Mudança

 

Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
– que me alimenta a tristeza.
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
– que perturba quem me ama.

Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
pensando que eu sou ele.

Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
e alguém calado que grita.

 

Precisamos de literatura para pensar sobre a condição humana por uma razão muito simples: a literatura é uma espécie de parábola da realidade e da condição humana, e através das parábolas você espelha muito mais a realidade do que através de análises objetivas e científicas. Mesmo porque um dos efeitos da parábola – ou seja, da ficção e da poesia – é solicitar da cabeça do leitor que ela se ponha também em movimento para articular o imaginário. Então, é uma obra a muitas mãos, uma leitura a muitas mãos.

 

A mídia, hoje, é o grande romance de folhetim. A novela é apenas uma parte de um grande romance de folhetim, que começa no jornal de manhã, continua nos programas infantis, nos desenhos animados, nos esporte e nas mesas redondas, no Jornal Nacional, no Fantástico. É um mundo como espetáculo, como representação. E isto provoca até situações muito intrigantes, porque o indivíduo que não está equipado para decompor esses elementos, que são atabalhoadamente jogados na telinha ou que se amontoam no jornal, tem uma visão das coisas muito surrealista. Eu tenho a impressão de que grande parte do povo brasileiro mistura o Fantástico com o Jornal Nacional, com a Bíblia, e faz um 'melê' que é difícil deslindar exatamente.

 

A escritura e a leitura são modos de extensão da vida, de complementação da vida. Eu não posso ir à Lua. Julio Verne também não podia. Mas ele descreveu a viagem à Lua. Julio Verne não podia fazer uma viagem submarina. Mas ele imaginou como seriam as 20 mil léguas submarinas. José de Alencar ou um dos autores românticos não viveram na Idade Média, mas viajaram lá através da imaginação. Mesmo o romancista que narra histórias fantásticas está dilatando o seu universo e dilatando o universo dos outros. As pessoas não cabem dentro do seu próprio corpo. Por isso, elas sonham de noite. Como elas não cabem dentro do próprio corpo elas têm que ler livros e ver novelas. E têm que amar os outros.

 

O amor é um ato de transferência de você para o outro. Você se muda para dentro do ser alheio. E no caso dos místicos, eles tentam imigrar de vez para a Humanidade inteira, se fundir com a figura de Deus.

 

O real é uma construção. Assim como em um teatro de arena, onde cada espectador está vendo a cena de um ângulo diferente, o real é algo sempre construído e desconstruído. O que a arte faz sistematicamente é destruir e reconstruir a realidade. Veja as peças de Shakespeare: de repente, como tem no Rio agora, e ocorre de vez em quando em várias partes do mundo, vem um diretor e apresenta um Hamlet, um McBeth totalmente diferente, e, às vezes, até oposto e contraditório ao que seria o Shakespeare original. Não existe um Shakespeare original, assim como a realidade em si é uma coisa que nós temos que aprender a construir e ler diariamente.

 

Metade do autor é o leitor. E, às vezes, há casos até curiosíssimos de autor que é um leitor voraz, um leitor insaciável, como é o caso do Borges, que vivia dizendo: 'Enquanto outros se orgulham dos livros que escreveram, eu me orgulho dos livros que eu li.' Porque, para ele, escrever é uma forma de ler e reler.

 

Tudo pode ser perigoso ou não. A palavra farmácia vem do grego 'farmakon', que significa ao mesmo tempo veneno e remédio. Então, quando você entra na farmácia, você acha veneno e remédio. Se tomar alguma coisa errada, você pode morrer; se tomar a coisa certa, você pode se curar. Nesse sentido, a literatura, como a música, não é em si nem boa nem má. Pode potencializar nas pessoas aquilo que elas têm numa ou noutra direção. Por exemplo: na música você pode pensar assim: Mozart é uma coisa sublime, rock é coisa pesada; uma é angelical, outra é diabólica. Isto é um estereótipo, porque se algumas pessoas já cometeram violência e crime 'por causa' do rock, nem todas as pessoas cometem crime e violência por causa do rock. E ao contrário, muitos dos carrascos nazistas gostavam de Bach, de Mozart. Então... é o 'farmakon'.

 

O problema da cópia é interessantíssimo porque a sociedade em que vivemos, que é chamada de pós-moderna, instituiu perversamente a idéia de que o autor não existe. Qualquer um pode se apoderar de qualquer coisa. O sujeito não existe. Isto, filosoficamente, redunda em uma tragédia epistemológica, porque se o sujeito não existe somos todos objetos. Eu não gosto de uma cultura onde todos são objetos. O esforço é para que as pessoas se transformem em sujeitos.

 

Em a Natureza nada se cria; tudo se transforma. É uma lei da Química. Por outro lado, dentro do folclore, da literatura, as histórias são recriadas. Você encontra pedaços da lenda do Rei Arthur em Mil e Uma Noites, em Decameron e em vários lugares. Agora, isso é uma coisa, é um fato real – o processo de metamorfose, de transformação que existe na Natureza, na cultura. Outra coisa é a cultura da leviandade que a pós-modernidade cultiva. Ou então certas coisas que são veiculadas através da chamada estética do falso, isto é, autores que fazem romance jogando com a idéia da falsidade, levantando uma questão que, em última instância, é a seguinte: alegam que numa sociedade se mente muito, numa sociedade tudo é falso, tudo é 'fake' [fraude]. Então, a pessoa produz uma obra falsa, uma obra 'fake'. Então, eu digo: é juntando mentira à mentira que vamos combater a mentira? É juntando falsidade à falsidade que nós vamos combater a falsidade? Em termos de arte e escatologia, é juntando merda à merda que nós vamos sair da merda? A estética do falso pretende que não há autoria. Há um deslizamento constante através do qual todos participam, que tem seu lado verdadeiro. Quando entra na moda usar um tipo de calça, de camisa, todo mundo se apropria daquilo. Mas, estou desenvolvendo, já há algum tempo, um raciocínio que, ao lado de reconhecer o que há de natural nisto, há um outro lado perverso: a questão da apropriação. Em arte, se usa muita técnica de apropriação, mas os bandidos também usam. Como um caso de um artista na França que resolveu fazer uma exposição chamada 'Tudo Aquilo que Roubei de Vocês'. Ele roubou vários objetos dos amigos e fez uma exposição. Os amigos não gostaram e chamaram a polícia.

 

A grande ansiedade do ser humano é entender as coisas.

 

 

 

 

O escritor é uma espécie de sonhador de utilidade pública. Ele fantasia coisas que não são apenas fantasias pessoais, mas fantasias comunitárias. Ele é apenas, como propunha Ezra Pound,1 'uma antena que está captando algumas coisas'. Daí, certos livros terríveis, O Médico e o Monstro, os livros policiais etc. Por que as pessoas lêem isso? Você pode pensar: o autor devia ser um neurótico. Mas por que milhões de pessoas lêem Agatha Christie? Porque através do crime e do mistério elas estão elaborando os seus fantasmas. Então, a literatura e a arte em geral é o lugar de elaboração de grandes fantasmas e de fantasias.

 

O Modernismo foi muito importante, mas cometeu vários equívocos, várias injustiças. Ensinou uma geração a ter preconceito contra o século XIX, contra certos poetas parnasianos, simbolistas, contra a literatura romântica, e isto por um vezo futurista de querer ser diferente do outro. Entende-se perfeitamente que isto tenha ocorrido num primeiro momento. Agora, além disso, eu tenho uma outra colocação sobre a Semana de Arte Moderna. É que, a rigor, ela não aconteceu em fevereiro de 1922. Ela não só começou a acontecer muito antes disso, com Brás Cubas, com Sertões de 1902, com Lima Barreto e por aí afora, como em 1922 aconteceu uma certa coisa da qual o País não tomou o menor conhecimento na ocasião. Mas aquela coisa tinha uma força original que foi captada por outras pessoas. Então, a Semana da Arte Moderna começou a acontecer, sistematicamente, depois. Ou seja, todo autor que estudou um autor modernista é um modernista, ajudou a fazer o Modernismo. Quando alguém analisa Oswald de Andrade, dá interpretação nova, analisa Drummond, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano, é como se estivesse batendo esse bolo que está fermentando, que está crescendo, como se estivesse sendo um acionista de uma grande empresa. E isso chegou a um ponto tal que virou essa novela da Globo. Essa novela foi a apoteose popular de uma semana que continua sendo inventada. O que aparece ali não tem nada a ver com o que foi em 1922. Ou seja, a idéia da Semana é uma idéia em construção. Ela não acontece em 22.

 

Eu comecei a colecionar notícias policiais envolvendo canibalismo. Que é impressionante. Não é apenas essa coisa imaginária que existe na literatura ou um ato episódico dos jogadores uruguaios que caíram na neve e começaram a comer os companheiros e tal. Isto existe como um impulso neurótico e Freud consegue explicar, de certa maneira, essa perversidade oral. E é muito comum. Ainda agora aquele programa Linha Direta vai mostrar um criminoso de São Paulo chamado Chico Picadinha, que pegava as mulheres, sobretudo prostitutas, retalhava, picava e comia; como aquele canibal alemão que pôs um anúncio na Internet porque queria comer uma pessoa e, entre vários candidatos, um se ofereceu realmente e foi devorado por ele. Existe uma coisa, um desvio, uma perversão, que no lado mais ameno e mais normal, se dá numa relação amorosa, que são grandes 'entredevorações'.

 

Há um canibalismo masculino, como existe um canibalismo feminino. Em alguns animais, alguns insetos, a fêmea é a devoradora; assim como existe um grande mito no imaginário masculino, sobre o qual eu falo no Canibalismo: o mito da Vagina Dentada, o grande medo da grande mãe castradora, como os folclores todos trabalham isso, e como é que até a ficção moderna trabalha isso. O José Rubem Fonseca, por exemplo.

 

As mulheres são seres superiores. São adoráveis, mais inteligentes. Em segundo lugar, existe uma resposta para essa pergunta do Freud.2 Eu até fiz uma crônica sobre isso, que é uma parábola sensacional, que remete à lenda do Rei Arthur. Ela começa quando o Rei Arthur, ainda jovem, invadiu o terreno de um rei, e como punição foi condenado à morte. E o rei falou que ele só poderia escapar da morte se conseguisse resolver a seguinte questão: o que querem as mulheres? Há todo um desenvolvimento disso e a solução que se encontra é uma coisa maravilhosa. O Arthur contou isso para um colega, um dos cavaleiros, que disse: — Eu vou resolver esse problema pra você. Eu soube que tem uma bruxa na montanha que tem a resposta. Esse cavaleiro era belíssimo, inteligente, e então foi lá no lugar do Arthur e falou com a bruxa. — Escuta aqui, tenho um problema e preciso saber: o que querem as mulheres? A bruxa falou assim: — Olha, eu posso te contar, mas tem o seguinte: você tem que casar comigo. Só se você casar comigo eu respondo. E para salvar o amigo, casou com a bruxa. — Vou te contar na noite de núpcias. No banquete, a bruxa estava comendo, toda desgrenhada, sem dente, vesga, jogando comida no chão e o pessoal se perguntando: — pô, ele vai casar com essa mulher? Aí, quando ele entrou no quarto nupcial, perguntou: — Bom, então me diz agora, finalmente! Estamos casados! A bruxa disse o seguinte: — Eu vou te fazer uma revelação. Eu sou bruxa de dia, mas de noite eu sou outra pessoa. E se transformou numa mulher deslumbrante, a mulher mais deslumbrante que qualquer homem pode imaginar; nem precisa descrever, cada um descreve a sua. E apareceu aquela mulher! Na alcova do cavaleiro! E aí a bruxa transformada na bela mulher disse: — Mas você vai ter que decidir com qual de nós duas você quer ficar: a bruxa ou essa deusa. Aí o cavaleiro, como era um cavaleiro mítico, um herói, de caráter sem jaça, um sábio, disse para ela: — Você decide. Você é que decide quem você quer ser. Então, o resultado dessa melódia é: o que querem as mulheres? As mulheres querem ser o que elas querem ser, e não o que os homens querem que elas sejam.

 

O imaginário humano é muito rico; ele desliza muito. Há um princípio básico da Psicanálise que continua válido até hoje porque, na verdade, corresponde até a uma lei da Física e da Química: assim como Lavoisier disse que tudo se transforma, em termos de Psicanálise e inconsciente, Freud mostrou, entre outras coisas, que nós não suportamos nenhuma frustração. Nós não abrimos mão das coisas; nós substituímos. Então, o nosso imaginário vive fazendo substituições. Se você não pode ter uma coisa, troca por outra, consciente ou inconscientemente, dentro de um jogo que a Psicologia chama de redução da dissonância cognitiva. Você quer casar com uma mulher, ela não gosta de você, mas você casa com outra, em outras circunstâncias. Mas você tem que 'justificar' aquele casamento. Então, você diz: — casei, mas ela é rica, né? Ela me dá tudo, e tal, eu não preciso trabalhar... Tem que ter alguma vantagem! Eu trabalho naquela empresa ali, eu não gosto muito não, mas me pagam muito bem. E assim por diante. Então, isto existe em relação a tudo. A parte erótica, a parte amorosa, social, econômica...

 

Nós temos várias pessoas dentro de nós. Fernando Pessoa3 não inventou nada de extraordinário. Ele apenas contextualizou uma esquizofrenia que todos nós temos. Balzac criou tantos personagens que diziam que ele estava fazendo concorrência com os cartórios, de tanta gente que ele tinha criado. Ele era todas aquelas pessoas e também não era. Então, o escritor é isso. Aliás, isso é até terapêutico. Inclusive no teatro eu acho que isso é mais terapêutico ainda. Quando você faz Psicanálise, às vezes você pode entrar para a terapia de grupo. Você vê nos seus colegas uma série de reflexos seus que te ajudam. Então, você pode se tratar através do psicodrama; cada um representa uma série de obsessões, de fobias, de fantasias e põe aquilo para fora em termos de catarses que exorcizam. Um ator, um dia, representa um amante; um dia, um assassino; um dia, um pai; um dia, um filho, empregado, patrão; ele está exercendo um universo dentro dele terapêutico incrível. E o leitor é isso também. O leitor vai encarnando. O espectador de celebridades é a mesma coisa. A pessoa que está vendo Darlene queria ser também célebre. Condena a Darlene por uma série de ações, mas também fica meio siderada com a fama. Há uma transferência.

 

De alguma maneira, sim; somos responsáveis por aqueles que nós cativamos. Mas a sua relação com alguém nessa troca de emoções, de afetos, de conhecimento, deve também fazer com que o outro cresça, que o outro não seja um dependente, de tal maneira que haja uma relação de maturidade, uma relação adulta. O outro não deve ser tratado nunca como uma criança; mas com respeito. E vice-versa.

 

Às vezes, você perde vários poemas, porque sente uma frase, sente algo murmurado no seu espírito, e não presta atenção porque está ocupado com os ruídos da vida. É necessário apurar o seu ouvido; ter a humildade de anotar a coisa, mesmo quando ela não é muito boa. Pode, de repente, um texto meio nebuloso, meio esquisito, meio simplório demais, dar raiz a um poema posteriormente interessante.

 

A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão. Nessa idade, suas unhas estão compridas e flexíveis. Não conseguem mais agarrar as presas das quais se alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil. Nesse momento crucial de sua vida a águia tem duas alternativas: não fazer nada e morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que se estenderá por 150 dias. A nossa águia decidiu enfrentar o desafio. Ela voa para o alto de uma montanha e recolhe-se em um ninho próximo a um paredão, onde não precisará voar. Aí, ela começa a bater com o bico na rocha até conseguir arrancá-lo. Depois, a águia espera nascer um novo bico, com o qual vai arrancar as velhas unhas. Quando as novas unhas começarem a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. Só após cinco meses ela pode sair para o vôo de renovação e viver mais 30 anos. [Texto mandado para Affonso Romano de Sant'Anna como um cartão de fim de ano por Rose Saldiva, da Saldiva Propaganda.]

 

Parece que estamos condenados à metamorfose. Morrer várias vezes e várias vezes renascer. Até que, enfim, cheguemos à metamorfose final, onde o que era sonho e carne se converte em pó.

 

Pedras passam também por silenciosas metamorfoses.

 

Silêncio Amoroso.
Preciso do teu silêncio,
cúmplice sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal pode me desamparar.
E se eu abrir a boca minha alma vai rachar.
O silêncio, aprendo, pode construir. É um modo
denso/tenso - de coexistir.
Calar, às vezes, é fina forma de amar.

 

Mentiram-me. Mentiram-me ontem,
e hoje mentem novamente.
Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente,
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impunemente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacionalmente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eternamente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas,
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil;
e, para alguns, é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à Democracia
pela ditadura.

 

Evidentemente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.

 

Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o Sol girar
em torno da Terra medievalmente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente,
mas o tribunal que o julga
heregemente.
Mentem como se Colombo, partindo
do Ocidente para o Oriente,
pudesse descobrir de mentira
um continente.

 

Tanta mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitentemente ou me exilar
com Mozart musicalmente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.

 

E a mentira repulsiva,
se não explode pra fora,
pra dentro explode
implosiva.

 

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos... Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas... É que as crianças crescem. Independentes de nós... Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto... Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto. Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.

 

Desde que conheci você,
sinto como se estivesse andando
com pequenas asas nos meus
sapatos,
como se meu estômago estivesse
cheio de borboletas.

 

O carnaval é, basicamente, um movimento diluidor da rebeldia.

 

 

 

 

 

Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que, silente,
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato;
quem toma uma por outra
confunde e mente.

 

Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar...

 

Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.

 

Como pode o amor trair o amor?
Amar o amor num outro amor
é um ritual que, amante, me permito.

 

O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeus-se.

 

Gosto de me iludir
pensando
que hoje amo
melhor que ontem amei.

Assim desculpo o jovem afoito
que, em mim, me antecedeu;
e, generoso, encho de esperanças
o velho sábio
que amará melhor que eu.

 

Pássaros cantando, insetos voam,
e eu sinto uma paz absurda,
como se essas cinco horas da tarde
fossem me transcender.

 

Não posso dizer ao meu amor
que comigo escolheu viver:
- pare de morrer.
Nem um nem outro pode
parar de envelhecer.

 

Naquele tempo,
o mundo cabia em frases
que não comportavam ironias.
Estava tudo decidido:
o mundo era uma rosa
em clara geometria.
O mundo era uma rosa
e o povo
– poesia.

 

Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto,
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.

 

Quando me atiram pedras, é justo.
Quando me atiram estrelas, quem sabe?
Não vou de mim, de vós, viver a contrapelo.
Sou como Ulisses,
na ida e no regresso:
a soma dos descaminhos,
a contradição em progresso.

 

Certas coisas não se podem deixar para depois... O amor não se adia como se adiam o imposto, a viagem, a utopia... Como o amor e as pessoas, não se pode recuperar a poesia.

 

Então, poeta, não vai ter fim
do amor, o nosso aprendizado?
— Até quando e quantas vezes
amargaremos, na paixão,
o mel crucificado?
Ele me olha assim de lado, além do horizonte
que em mim troveja,
e para meu desespero, não me consola
antes, confessa
sentir do meu amor
enorme inveja.

 

Dou-te prosa, e o desejo era dar-te poesia.

 

Imperativo, só o amor.
Algo a acrescentar?
— Sim, há outro: morrer.
— Mas, morrer
faz parte do amar.

 

Já propus um museu da transgressão. Já se transgrediu tudo que se poderia transgredir de alguma maneira. Fazer transgressão é a coisa mais fácil que tem. O difícil é fazer arte. Há uma confusão hoje em dia entre a simples transgressão e o produto artístico. A arte pode ser transgressora ou não. E ninguém pode garantir que uma arte transgressora seja melhor do que uma arte que esteja dentro de certos paradigmas. Se toda arte tivesse que ser transgressão, cerca de quatro mil anos da Grécia até o princípio do Século XX teria que ser jogado no lixo.

 

Existe uma superposição contemporânea entre experiência e arte. Nem toda experiência é arte. Muita coisa que ocorre dentro de um laboratório deve continuar num laboratório. Muitos remédios, muitos produtos e máquinas são testados dentro de laboratório durante anos antes de serem lançadas no mercado. Em arte, no entanto, desde Duchamp,4 decidiu-se que qualquer pessoa, qualquer coisa chamada de arte passa a ser arte. É uma falácia. Nesse livro e nos anteriores, eu faço uma análise profunda do pensamento Duchamp, que até hoje não foi analisado. Ele foi simplesmente repetido acriticamente. Duchamp se equivocou em vários itens. Sempre digo que pessoas notáveis cometem notáveis equívocos.

 

Se eu não entendesse a lógica da arte do meu tempo, eu enlouqueceria. Os meus ensaios, exatamente, visam repor, explicar e dar vazão a esta perplexidade.

 

Não há autor responsável, em qualquer área, que não desenvolva um pensamento teórico. Como alguém já disse, no plano da Filosofia do Conhecimento, todo mundo tem uma Epistemologia, e quem diz que não tem nenhuma, tem é uma péssima epistemologia. Claro que a teoria pode envenenar, turvar a criatividade. Sempre me precavi quanto a isto...

 

Chega de fazer leituras subalternas, de joelho. É bom ler de pé, sem concessões, os mestres que nos formaram nos anos 60. São pessoas fascinantes, brilhantes sofistas; mas uma análise rigorosa do discurso que elaboram mostra o que chamo de 'oximoro5 paralisante'...

 

O professor pensa ensinar o que sabe, o que recolheu nos livros e da vida; mas o aluno aprende do professor não necessariamente o que ele quer ensinar, mas aquilo que quer aprender.

 

Tem uma frase que sempre me impressionou quando eu era adolescente: 'Catão, um grande personagem da vida romana, aprendeu grego aos 80 anos'. Ou seja: é sempre tempo de você estar aprendendo alguma coisa.

 

Sou o Guerreiro,
a palavra, a seta,
o objeto, a meta.
O Guerreiro solta a seta
e no alvo se completa.

 

 

 

 

Para Concluir: Uma Sextilha

 

 

 

O .htm já vai grande;

de mim, isto se expande:

— sem poesia, nada feito;

com poesia, talvez, defeito!

Mas, defeitos se transmutam;

certezas, não: às vezes, abrutam!

 

 

 



 

 

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Nota:

1. Ezra Weston Loomis Pound (Hailey, Idaho, 30 de outubro de 1885 – Veneza, 1º de novembro de 1972) foi um poeta, músico, crítico e uma das maiores figuras do movimento modernista da poesia do início do século XX. Ele foi o motor de diversos movimentos modernistas, notadamente do Imagismo e do Vorticismo.

2. A grande questão para a qual não encontrei nenhuma resposta durante trinta anos de pesquisas sobre a natureza da mulher é a seguinte: o que elas querem, enfim?

3. Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,/Quanto mais personalidades eu tiver,/Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,/Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,/Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,/Estiver, sentir, viver, for,/Mais possuirei a existência total do universo,/Mais completo serei pelo espaço inteiro fora./Mais análogo serei a Deus, seja Ele quem for,/Porque, seja Ele quem for, com certeza que éTudo,/E fora d’Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco./Cada alma é uma escada para Deus,/Cada alma é um corredor – Universo para Deus,/Cada alma é um rio correndo por margens de Externo/Para Deus e em Deus com um sussurro soturno. (Fernado Pessoa; pelo seu heterônimo mais atribulado: Álvaro de Campos).

4. Marcel Duchamp (Blainville-Crevon, 28 de julho de 1887 – Neuilly-sur-Seine, 2 de outubro de 1968) foi um pintor e escultor francês (cidadão americano a partir de 1955), inventor dos ready made, isto é: uso de objetos industrializados no âmbito da arte, desprezando noções comuns à arte histórica como estilo ou manufatura do objeto de arte, e referindo sua produção primariamente à idéia.

5. Oximoro é uma figura em que se combinam palavras de sentido oposto que parecem se excluir mutuamente, mas que, no contexto, reforçam a expressão (por exemplo: obscura claridade, música silenciosa, Voz Silente do Coração).

 

Páginas da Internet consultadas:

http://confrariadatiabeth.blogspot.com/
2008_08_01_archive.html

http://fabianomafia.spaceblog.com.br/
60299/Affonso-Romano-de-Sant-Anna/

http://www.desenredos.com.br/4ent_a_123.html

http://webcache.googleusercontent.com/

http://pt.wikipedia.org/wiki/Marcel_Duchamp

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ready_made

http://escrevereprolongarotempo.blogspot.com/

http://www.aindamelhor.com/
poesia/poesias19-affonso-romano.php

http://www.pensador.info/autor/
Affonso_Romano_de_Sant'Anna/

http://www.releituras.com/arsant_menu.asp

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ezra_Pound

http://azevedodafonseca.sites.uol.com.br/
santanna1.html

http://www.riototal.com.br/expressao-
poetica/affonso_romano002.htm

http://www.umacoisaeoutra.com.br/
cultura/affonso2.htm

http://www.fotolog.com.br/guto_bunda/20557006

http://www.slideshare.net/vkgslindinha/amor-o-
interminavel-aprendizado-affonso-romano-de-santana

http://www.pensador.info/
afonso_romano_de_santana/

http://www.affonsoromano.com.br/

 

Música de fundo:

Por Causa de Você
Composição: Tom Jobim e Dolores Duran

Fonte:

http://www.beakauffmann.com/
mpb_p/por-causa-de-voce.html