Arte
e vida se misturam. Fantasia e realidade se acrescentam.
O passado não passa,
o futuro não chega,
e o presente ameaça.
Ainda
bem.
Se assim não fosse,
a vida não tinha graça.
A
memória vai girando em torno de si mesma como esses fusos que tecem
tapetes e tecidos com tramas e urdiduras. Ter memórias é um
luxo.
O
mar é o mestre da primeira vez e não pára de ondear
suas lições. Nenhuma onda é a mesma onda. Nenhum peixe
é o mesmo peixe. Nenhuma tarde é a mesma tarde. O mar é
um morrer sucessivo e um viver permanente. Ele se desfolha em ondas e não
pára de brotar. A contemplá-lo, ao mesmo tempo sou jovem e
envelheço. O mar é recomeço.
Os
Trilhos da Mudança
Debaixo
de minha mesa
tem sempre um cão faminto
– que me alimenta a tristeza.
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
– que perturba quem me ama.
Debaixo
de minha pele
alguém me olha esquisito
–
pensando que eu sou ele.
Debaixo
de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
–
e alguém calado que grita.
Precisamos
de literatura para pensar sobre a condição humana por uma
razão muito simples: a literatura é uma espécie de
parábola da realidade e da condição humana, e através
das parábolas você espelha muito mais a realidade do que através
de análises objetivas e científicas. Mesmo porque um dos efeitos
da parábola – ou seja, da ficção e da poesia
– é solicitar da cabeça do leitor que ela se ponha também
em movimento para articular o imaginário. Então, é
uma obra a muitas mãos, uma leitura a muitas mãos.
A
mídia, hoje, é o grande romance de folhetim. A novela é
apenas uma parte de um grande romance de folhetim, que começa no
jornal de manhã, continua nos programas infantis, nos desenhos animados,
nos esporte e nas mesas redondas, no Jornal Nacional, no Fantástico.
É um mundo como espetáculo, como representação.
E isto provoca até situações muito intrigantes, porque
o indivíduo que não está equipado para decompor esses
elementos, que são atabalhoadamente jogados na telinha ou que se
amontoam no jornal, tem uma visão das coisas muito surrealista. Eu
tenho a impressão de que grande parte do povo brasileiro mistura
o Fantástico com o Jornal Nacional, com a Bíblia, e faz um
'melê' que é difícil deslindar exatamente.
A
escritura e a leitura são modos de extensão da vida, de complementação
da vida. Eu não posso ir à Lua. Julio Verne também
não podia. Mas ele descreveu a viagem à Lua. Julio Verne não
podia fazer uma viagem submarina. Mas ele imaginou como seriam as 20 mil
léguas submarinas. José de Alencar ou um dos autores românticos
não viveram na Idade Média, mas viajaram lá através
da imaginação. Mesmo o romancista que narra histórias
fantásticas está dilatando o seu universo e dilatando o universo
dos outros. As pessoas não cabem dentro do seu próprio corpo.
Por isso, elas sonham de noite. Como elas não cabem dentro do próprio
corpo elas têm que ler livros e ver novelas. E têm que amar
os outros.
O
amor é um ato de transferência de você para o outro.
Você se muda para dentro do ser alheio. E no caso dos místicos,
eles tentam imigrar de vez para a Humanidade inteira, se fundir com a figura
de Deus.
O real é uma construção.
Assim como em um teatro de arena, onde cada espectador está vendo
a cena de um ângulo diferente, o real é algo sempre construído
e desconstruído. O que a arte faz sistematicamente é destruir
e reconstruir a realidade. Veja as peças de Shakespeare: de repente,
como tem no Rio agora, e ocorre de vez em quando em várias partes
do mundo, vem um diretor e apresenta um Hamlet, um McBeth totalmente diferente,
e, às vezes, até oposto e contraditório ao que seria
o Shakespeare original. Não existe um Shakespeare original, assim
como a realidade em si é uma coisa que nós temos que aprender
a construir e ler diariamente.
Metade
do autor é o leitor. E, às vezes, há casos até
curiosíssimos de autor que é um leitor voraz, um leitor insaciável,
como é o caso do Borges, que vivia dizendo: 'Enquanto outros se orgulham
dos livros que escreveram, eu me orgulho dos livros que eu li.' Porque,
para ele, escrever é uma forma de ler e reler.
Tudo
pode ser perigoso ou não. A palavra farmácia vem do grego
'farmakon', que significa ao mesmo tempo veneno e remédio. Então,
quando você entra na farmácia, você acha veneno e remédio.
Se tomar alguma coisa errada, você pode morrer; se tomar a coisa certa,
você pode se curar. Nesse sentido, a literatura, como a música,
não é em si nem boa nem má. Pode potencializar nas
pessoas aquilo que elas têm numa ou noutra direção.
Por exemplo: na música você pode pensar assim: Mozart é
uma coisa sublime, rock é coisa pesada; uma é angelical, outra
é diabólica. Isto é um estereótipo, porque se
algumas pessoas já cometeram violência e crime 'por causa'
do rock, nem todas as pessoas cometem crime e violência por causa
do rock. E ao contrário, muitos dos carrascos nazistas gostavam de
Bach, de Mozart. Então... é o 'farmakon'.
O
problema da cópia é interessantíssimo
porque a sociedade em que vivemos, que é chamada de pós-moderna,
instituiu perversamente a idéia de que o autor não existe.
Qualquer um pode se apoderar de qualquer coisa. O sujeito não existe.
Isto, filosoficamente, redunda em uma tragédia epistemológica,
porque se o sujeito não existe somos todos objetos. Eu não
gosto de uma cultura onde todos são objetos. O esforço é
para que as pessoas se transformem em sujeitos.
Em
a Natureza nada se cria; tudo se transforma. É uma lei da Química.
Por outro lado, dentro do folclore, da literatura, as histórias são
recriadas. Você encontra pedaços da lenda do Rei Arthur em
Mil e Uma Noites, em Decameron e em vários lugares. Agora, isso é
uma coisa, é um fato real – o processo de metamorfose, de transformação
que existe na Natureza, na cultura. Outra coisa é a cultura da leviandade
que a pós-modernidade cultiva. Ou então certas coisas que
são veiculadas através da chamada estética do falso,
isto é, autores que fazem romance jogando com a idéia da falsidade,
levantando uma questão que, em última instância, é
a seguinte: alegam que numa sociedade se mente muito, numa sociedade tudo
é falso, tudo é 'fake' [fraude].
Então, a pessoa produz uma obra falsa, uma obra 'fake'. Então,
eu digo: é juntando mentira à mentira que vamos combater a
mentira? É juntando falsidade à falsidade que nós vamos
combater a falsidade? Em termos de arte e escatologia, é juntando
merda à merda que nós vamos sair da merda? A estética
do falso pretende que não há autoria. Há um deslizamento
constante através do qual todos participam, que tem seu lado verdadeiro.
Quando entra na moda usar um tipo de calça, de camisa, todo mundo
se apropria daquilo. Mas, estou desenvolvendo, já há algum
tempo, um raciocínio que, ao lado de reconhecer o que há de
natural nisto, há um outro lado perverso: a questão da apropriação.
Em arte, se usa muita técnica de apropriação, mas os
bandidos também usam. Como um caso de um artista na França
que resolveu fazer uma exposição chamada 'Tudo Aquilo que
Roubei de Vocês'. Ele roubou vários objetos dos amigos e fez
uma exposição. Os amigos não gostaram e chamaram a
polícia.
A
grande ansiedade do ser humano é entender as coisas.
O escritor é uma espécie
de sonhador de utilidade pública. Ele fantasia coisas que não
são apenas fantasias pessoais, mas fantasias comunitárias.
Ele é apenas, como propunha Ezra Pound,1
'uma
antena que está captando algumas coisas'. Daí, certos livros
terríveis, O Médico e o Monstro, os livros policiais etc.
Por que as pessoas lêem isso? Você pode pensar: o autor devia
ser um neurótico. Mas por que milhões de pessoas lêem
Agatha Christie? Porque através do crime e do mistério elas
estão elaborando os seus fantasmas. Então, a literatura e
a arte em geral é o lugar de elaboração de grandes
fantasmas e de fantasias.
O
Modernismo foi muito importante, mas cometeu vários equívocos,
várias injustiças. Ensinou uma geração a ter
preconceito contra o século XIX, contra certos poetas parnasianos,
simbolistas, contra a literatura romântica, e isto por um vezo futurista
de querer ser diferente do outro. Entende-se perfeitamente que isto tenha
ocorrido num primeiro momento. Agora, além disso, eu tenho uma outra
colocação sobre a Semana de Arte Moderna. É que, a
rigor, ela não aconteceu em fevereiro de 1922. Ela não só
começou a acontecer muito antes disso, com Brás Cubas, com
Sertões de 1902, com Lima Barreto e por aí afora, como em
1922 aconteceu uma certa coisa da qual o País não tomou o
menor conhecimento na ocasião. Mas aquela coisa tinha uma força
original que foi captada por outras pessoas. Então, a Semana da Arte
Moderna começou a acontecer, sistematicamente, depois. Ou seja, todo
autor que estudou um autor modernista é um modernista, ajudou a fazer
o Modernismo. Quando alguém analisa Oswald de Andrade, dá
interpretação nova, analisa Drummond, José Lins do
Rego, Jorge Amado, Graciliano, é como se estivesse batendo esse bolo
que está fermentando, que está crescendo, como se estivesse
sendo um acionista de uma grande empresa. E isso chegou a um ponto tal que
virou essa novela da Globo. Essa novela foi a apoteose popular de uma semana
que continua sendo inventada. O que aparece ali não tem nada a ver
com o que foi em 1922. Ou seja, a idéia da Semana é uma idéia
em construção. Ela não acontece em 22.
Eu
comecei a colecionar notícias policiais envolvendo canibalismo. Que
é impressionante. Não é apenas essa coisa imaginária
que existe na literatura ou um ato episódico dos jogadores uruguaios
que caíram na neve e começaram a comer os companheiros e tal.
Isto existe como um impulso neurótico e Freud consegue explicar,
de certa maneira, essa perversidade oral. E é muito comum. Ainda
agora aquele programa Linha Direta vai mostrar um criminoso de São
Paulo chamado Chico Picadinha, que pegava as mulheres, sobretudo prostitutas,
retalhava, picava e comia; como aquele canibal alemão que pôs
um anúncio na Internet porque queria comer uma pessoa e, entre vários
candidatos, um se ofereceu realmente e foi devorado por ele. Existe uma
coisa, um desvio, uma perversão, que no lado mais ameno e mais normal,
se dá numa relação amorosa, que são grandes
'entredevorações'.
Há
um canibalismo masculino, como existe um canibalismo feminino. Em alguns
animais, alguns insetos, a fêmea é a devoradora; assim como
existe um grande mito no imaginário masculino, sobre o qual eu falo
no Canibalismo: o mito da Vagina Dentada, o grande medo da grande mãe
castradora, como os folclores todos trabalham isso, e como é que
até a ficção moderna trabalha isso. O José Rubem
Fonseca, por exemplo.
As
mulheres são seres superiores. São adoráveis, mais
inteligentes. Em segundo lugar, existe uma resposta para essa pergunta do
Freud.2
Eu até fiz uma crônica sobre isso, que é uma parábola
sensacional, que remete à lenda do Rei Arthur. Ela começa
quando o Rei Arthur, ainda jovem, invadiu o terreno de um rei, e como punição
foi condenado à morte. E o rei falou que ele só poderia escapar
da morte se conseguisse resolver a seguinte questão: o que querem
as mulheres? Há todo um desenvolvimento disso e a solução
que se encontra é uma coisa maravilhosa. O Arthur contou isso para
um colega, um dos cavaleiros, que disse: — Eu vou resolver esse problema
pra você. Eu soube que tem uma bruxa na montanha que tem a resposta.
Esse cavaleiro era belíssimo, inteligente, e então foi lá
no lugar do Arthur e falou com a bruxa. — Escuta aqui, tenho um problema
e preciso saber: o que querem as mulheres? A bruxa falou assim: —
Olha, eu posso te contar, mas tem o seguinte: você tem que casar comigo.
Só se você casar comigo eu respondo. E para salvar o amigo,
casou com a bruxa. — Vou te contar na noite de núpcias. No
banquete, a bruxa estava comendo, toda desgrenhada, sem dente, vesga, jogando
comida no chão e o pessoal se perguntando: — pô, ele
vai casar com essa mulher? Aí, quando ele entrou no quarto nupcial,
perguntou: — Bom, então me diz agora, finalmente! Estamos casados!
A bruxa disse o seguinte: — Eu vou te fazer uma revelação.
Eu sou bruxa de dia, mas de noite eu sou outra pessoa. E se transformou
numa mulher deslumbrante, a mulher mais deslumbrante que qualquer homem
pode imaginar; nem precisa descrever, cada um descreve a sua. E apareceu
aquela mulher! Na alcova do cavaleiro! E aí a bruxa transformada
na bela mulher disse: — Mas você vai ter que decidir com qual
de nós duas você quer ficar: a bruxa ou essa deusa. Aí
o cavaleiro, como era um cavaleiro mítico, um herói, de caráter
sem jaça, um sábio, disse para ela: — Você decide.
Você é que decide quem você quer ser. Então, o
resultado dessa melódia é: o que querem as mulheres? As mulheres
querem ser o que elas querem ser, e não o que os homens querem que
elas sejam.
O
imaginário humano é muito rico; ele desliza muito. Há
um princípio básico da Psicanálise que continua válido
até hoje porque, na verdade, corresponde até a uma lei da
Física e da Química: assim como Lavoisier disse que tudo se
transforma, em termos de Psicanálise e inconsciente, Freud mostrou,
entre outras coisas, que nós não suportamos nenhuma frustração.
Nós não abrimos mão das coisas; nós substituímos.
Então, o nosso imaginário vive fazendo substituições.
Se você não pode ter uma coisa, troca por outra, consciente
ou inconscientemente, dentro de um jogo que a Psicologia chama de redução
da dissonância cognitiva. Você quer casar com uma mulher, ela
não gosta de você, mas você casa com outra, em outras
circunstâncias. Mas você tem que 'justificar' aquele casamento.
Então, você diz: — casei, mas ela é rica, né?
Ela me dá tudo, e tal, eu não preciso trabalhar... Tem que
ter alguma vantagem! Eu trabalho naquela empresa ali, eu não gosto
muito não, mas me pagam muito bem. E assim por diante. Então,
isto existe em relação a tudo. A parte erótica, a parte
amorosa, social, econômica...
Nós
temos várias pessoas dentro de nós. Fernando Pessoa3
não inventou nada de extraordinário. Ele apenas contextualizou
uma esquizofrenia que todos nós temos. Balzac criou tantos personagens
que diziam que ele estava fazendo concorrência com os cartórios,
de tanta gente que ele tinha criado. Ele era todas aquelas pessoas e também
não era. Então, o escritor é isso. Aliás, isso
é até terapêutico. Inclusive no teatro eu acho que isso
é mais terapêutico ainda. Quando você faz Psicanálise,
às vezes você pode entrar para a terapia de grupo. Você
vê nos seus colegas uma série de reflexos seus que te ajudam.
Então, você pode se tratar através do psicodrama; cada
um representa uma série de obsessões, de fobias, de fantasias
e põe aquilo para fora em termos de catarses que exorcizam. Um ator,
um dia, representa um amante; um dia, um assassino; um dia, um pai; um dia,
um filho, empregado, patrão; ele está exercendo um universo
dentro dele terapêutico incrível. E o leitor é isso
também. O leitor vai encarnando. O espectador de celebridades é
a mesma coisa. A pessoa que está vendo Darlene queria ser também
célebre. Condena a Darlene por uma série de ações,
mas também fica meio siderada com a fama. Há uma transferência.
De
alguma maneira, sim; somos responsáveis por aqueles que nós
cativamos. Mas a sua relação com alguém nessa troca
de emoções, de afetos, de conhecimento, deve também
fazer com que o outro cresça, que o outro não seja um dependente,
de tal maneira que haja uma relação de maturidade, uma relação
adulta. O outro não deve ser tratado nunca como uma criança;
mas com respeito. E vice-versa.
Às
vezes, você perde vários poemas, porque sente uma frase, sente
algo murmurado no seu espírito, e não presta atenção
porque está ocupado com os ruídos da vida. É necessário
apurar o seu ouvido; ter a humildade de anotar a coisa, mesmo quando ela
não é muito boa. Pode, de repente, um texto meio nebuloso,
meio esquisito, meio simplório demais, dar raiz a um poema posteriormente
interessante.
A
águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas
para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria
e difícil decisão. Nessa idade, suas unhas estão compridas
e flexíveis. Não conseguem mais agarrar as presas das quais
se alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas
e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra
o peito. Voar já é difícil. Nesse
momento crucial de sua vida a águia tem duas alternativas: não
fazer nada e morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação
que se estenderá por 150 dias. A nossa águia decidiu enfrentar
o desafio. Ela voa para o alto de uma montanha e recolhe-se em um ninho
próximo a um paredão, onde não precisará voar.
Aí, ela começa a bater com o bico na rocha até conseguir
arrancá-lo. Depois, a águia espera nascer um novo bico, com
o qual vai arrancar as velhas unhas. Quando as novas unhas começarem
a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. Só após cinco
meses ela pode sair para o vôo de renovação e viver
mais 30 anos. [Texto mandado
para Affonso Romano de Sant'Anna como um cartão de fim de ano por
Rose Saldiva, da Saldiva Propaganda.]
Parece
que estamos condenados à metamorfose. Morrer várias vezes
e várias vezes renascer. Até que, enfim, cheguemos à
metamorfose final, onde o que era sonho e carne se converte em pó.
Pedras
passam também por silenciosas metamorfoses.
Silêncio Amoroso.
Preciso do teu silêncio,
cúmplice sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal pode me desamparar.
E se eu abrir a boca minha alma vai rachar.
O silêncio, aprendo, pode construir. É um modo
denso/tenso - de coexistir.
Calar, às vezes, é fina forma de amar.
Mentiram-me.
Mentiram-me ontem,
e hoje mentem novamente.
Mentem de
corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente,
que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impunemente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacionalmente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eternamente.
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas,
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil;
e, para alguns, é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à Democracia
pela ditadura.
Evidentemente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.
Mentem
no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o Sol girar
em torno da Terra medievalmente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem
mente,
mas
o tribunal que o julga
heregemente.
Mentem
como se Colombo, partindo
do
Ocidente para o Oriente,
pudesse
descobrir de mentira
um
continente.
Tanta
mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitentemente ou me exilar
com Mozart musicalmente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.
E
a mentira repulsiva,
se
não explode pra fora,
pra
dentro explode
implosiva.
Há
um período em que os pais vão ficando órfãos
dos próprios filhos... Longe já vai o momento em que o primeiro
mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas... É
que as crianças crescem. Independentes de nós... Elas cresceram
sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto... Os netos são
a última oportunidade de reeditar o nosso afeto. Por isso, é
necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.
Desde
que conheci você,
sinto como se estivesse andando
com pequenas asas nos meus
sapatos,
como se meu estômago estivesse
cheio de borboletas.
O
carnaval é, basicamente, um movimento diluidor da rebeldia.
Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que, silente,
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato;
quem toma uma por outra
confunde e mente.
Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar...
Às
vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Como
pode o amor trair o amor?
Amar o amor num outro amor
é um ritual que, amante, me permito.
O
que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeus-se.
Gosto
de me iludir
pensando
que hoje amo
melhor que ontem amei.
Assim desculpo o jovem afoito
que, em mim, me antecedeu;
e, generoso, encho de esperanças
o velho sábio
que amará melhor que eu.
Pássaros cantando, insetos
voam,
e eu sinto uma paz absurda,
como se essas cinco horas da tarde
fossem me transcender.
Não
posso dizer ao meu amor
que comigo escolheu viver:
- pare de morrer.
Nem um nem outro pode
parar de envelhecer.
Naquele tempo,
o mundo cabia em frases
que não comportavam ironias.
Estava tudo decidido:
o mundo era uma rosa
em clara geometria.
O mundo era uma rosa
e o povo
– poesia.
Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto,
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.
Quando me atiram pedras, é
justo.
Quando me atiram estrelas, quem sabe?
Não vou de mim, de vós, viver a contrapelo.
Sou como Ulisses,
na ida e no regresso:
a soma dos descaminhos,
a contradição em progresso.
Certas
coisas não se podem deixar para depois... O amor não se adia
como se adiam o imposto, a viagem, a utopia... Como o amor e as pessoas,
não se pode recuperar a poesia.
— Então, poeta, não
vai ter fim
do amor, o nosso aprendizado?
— Até quando e quantas vezes
amargaremos, na paixão,
o mel crucificado?
Ele me olha assim de lado, além do horizonte
que em mim troveja,
e para meu desespero, não me consola
antes, confessa
sentir do meu amor
enorme inveja.
Dou-te
prosa, e o desejo era dar-te poesia.
—
Imperativo, só o amor.
Algo a acrescentar?
— Sim, há outro: morrer.
— Mas, morrer
faz parte do amar.
Já
propus um museu da transgressão. Já se transgrediu tudo que
se poderia transgredir de alguma maneira. Fazer transgressão é
a coisa mais fácil que tem. O difícil é fazer arte.
Há uma confusão hoje em dia entre a simples transgressão
e o produto artístico. A arte pode ser transgressora ou não.
E ninguém pode garantir que uma arte transgressora seja melhor do
que uma arte que esteja dentro de certos paradigmas. Se toda arte tivesse
que ser transgressão, cerca de quatro mil anos da Grécia até
o princípio do Século XX teria que ser jogado no lixo.
Existe
uma superposição contemporânea entre experiência
e arte. Nem toda experiência é arte. Muita coisa que ocorre
dentro de um laboratório deve continuar num laboratório. Muitos
remédios, muitos produtos e máquinas são testados dentro
de laboratório durante anos antes de serem lançadas no mercado.
Em arte, no entanto, desde Duchamp,4
decidiu-se que qualquer pessoa, qualquer coisa chamada de arte passa a ser
arte. É uma falácia. Nesse livro e nos anteriores, eu faço
uma análise profunda do pensamento Duchamp, que até hoje não
foi analisado. Ele foi simplesmente repetido acriticamente. Duchamp se equivocou
em vários itens. Sempre digo que pessoas notáveis cometem
notáveis equívocos.
Se
eu não entendesse a lógica da arte do meu tempo, eu enlouqueceria.
Os meus ensaios, exatamente, visam repor, explicar e dar vazão a
esta perplexidade.
Não há autor responsável,
em qualquer área, que não desenvolva um pensamento teórico.
Como alguém já disse, no plano da Filosofia do Conhecimento,
todo mundo tem uma Epistemologia, e quem diz que não tem nenhuma,
tem é uma péssima epistemologia. Claro que a teoria pode envenenar,
turvar a criatividade. Sempre me precavi quanto a isto...
Chega
de fazer leituras subalternas, de joelho. É bom ler de pé,
sem concessões, os mestres que nos formaram nos anos 60. São
pessoas fascinantes, brilhantes sofistas; mas uma análise rigorosa
do discurso que elaboram mostra o que chamo de 'oximoro5
paralisante'...
O
professor pensa ensinar o que sabe, o que recolheu nos livros e da vida;
mas o aluno aprende do professor não necessariamente o que ele quer
ensinar, mas aquilo que quer aprender.
Tem
uma frase que sempre me impressionou quando eu era adolescente: 'Catão,
um grande personagem da vida romana, aprendeu grego aos 80 anos'. Ou seja:
é sempre tempo de você estar aprendendo alguma coisa.
Sou
o Guerreiro,
a palavra, a seta,
o objeto, a meta.
O
Guerreiro solta a seta
e no alvo se completa.
Para
Concluir: Uma Sextilha
O .htm
já vai grande;
de
mim, isto se expande:
— sem poesia, nada
feito;
com poesia, talvez, defeito!
Mas, defeitos se transmutam;
certezas, não:
às vezes, abrutam!